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Processo n.º 62/00
2ª Secção Relator - Paulo Mota Pinto
(Cons. Fernanda Palma) Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional: I. Relatório A intentou uma acção de condenação contra o Estado, com o fim de ser ressarcida dos danos resultantes da situação de prisão preventiva que sofreu no âmbito de processo criminal em que veio a ser absolvida, por decisão transitada em julgado. A acção de indemnização foi julgada improcedente pelo Tribunal Judicial de Gondomar por sentença de 19 de Fevereiro de 1999, na qual se concluiu não ter
'ocorrido o erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de que dependeu a aplicação da prisão preventiva à autora' nem 'ter sido manifestamente ilegal a prisão preventiva suportada pela autora', pelo que se não verificavam os pressupostos de que dependia a existência de um direito de indemnização. Inconformada, a recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, no qual sustentou que a sentença recorrida resulta 'de uma muito errada interpretação da Constituição e da Lei'. Depois de, invocando apoios doutrinais, considerar demonstrada a 'irrazoabilidade da sentença sub judicio', a recorrente disse, sobre o artigo 225º do Código de Processo Penal, nesse recurso:
'(...) jamais constituirá obstáculo a este entendimento o disposto na Constituição, artº 27º, n.º 5, no tocante ao fumus de restrição ao dever de indemnização ‘nos termos que a lei estabelecer’; e à também apenas aparente restrição vertida no artº 225 do Código de Processo Penal.
É que os preceitos respeitantes a direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis, e vinculam tanto os administrados como o recorrido – artº 18º da Constituição. Pode a lei – e porventura deve a lei – estabelecer em abstracto o método e disciplina de indemnizar por banda do Estado, em caso de prisão preventiva ilegal ou injustificada. Mas nunca restringindo o direito, como intoleravelmente pretenderia, de acordo com esta interpretação, o legislador ordinário autor daquele artº 225º.
(...)' E, ainda quanto a tal artigo, disse, nas conclusões, que:
'(...) f) o artº 225º do Código de Processo Penal impõe o ressarcimento pelo recorrido dos danos em causa que infligiu à recorrente; g) ocorrem in casu todos os pressupostos de aplicação daquele normativo; h) se for decidido de modo diverso – e sem prescindir deste entendimento – a interpretação feita pelo Mº Juiz a quo é inconstitucional por violação além do mais do disposto no artº 27º, conjugado com o artº 18º, da Constituição.' Por Acórdão de 8 de Julho de 1999, o Tribunal da Relação do Porto, confirmou o decidido na 1ª instância, com fundamento, no que à questão de constitucionalidade diz respeito, em que o artigo 225º do Código de Processo Penal não é de considerar inconstitucional, em face do disposto no artigo 27º, n.º 5, da Constituição, resultando, antes, do próprio preceito constitucional a consagração legislativa prevista no artigo 225º do Código de Processo Penal. Com a 'mais frontal e veemente discordância relativamente ao decidido', a demandante interpôs então recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, dizendo, designadamente, nas alegações:
'É indiscutível há décadas que o Estado é obrigado a indemnizar por actos administrativos mesmo que legais e materialmente lícitos (...) Nada isenta de igual dever se estiverem em causa actos jurisdicionais, ainda que
– como é o caso – possam ser apenas formalmente lícitos. Apenas formalmente, concede-se; porquanto se é certo que eventualmente seja possível concluir que in casu o acto que decidiu a prisão será lícito, num ponto de vista meramente formal – mas sem conceder, sublinha-se – não o é, seguramente, num ponto de vista material. Esta é a resposta única que resulta da interpretação conforme a Constituição, que tem em conta a unidade do sistema jurídico, as regras do artº 9º do Código Civil e ‘a norma que o próprio intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema’ (...).' E nas conclusões destas alegações disse:
'a) a recorrente – absolvida a final – foi objecto de privação prolongada de liberdade, durante mais de dois anos, o que configura ofensa grave a um seu direito fundamental, expressa e solenemente consagrado em sede constitucional; b) assim sendo, o enclausuramento que sofreu – e que lhe causou danos patrimoniais e pessoais gravíssimos – resultou de actividade materialmente ilícita do recorrido; c) mesmo que assim se não entenda, resulta de actividade apenas formalmente lícita (!) do recorrido, que igualmente é fonte do dever de indemnizar; d) o Tribunal a quo considera que a prisão não foi injustificada, ou manifestamente ilegal; e) a recorrente entende que a sua prisão foi injustificada, e manifestamente ilegal; f) os prejuízos advenientes foram fatalmente anómalos e de particular gravidade
– e tratando-se, como se trata, de privação de liberdade, nem outra conclusão seria possível extrair; g) o artº 225º do Código de Processo Penal impõe o ressarcimento pelo recorrido dos danos em causa que infligiu à recorrente; h) ocorrem in casu todos os pressupostos de aplicação daquele normativo; i) esta interpretação é a única conforme à Constituição da República, harmónica com a unidade do sistema jurídico – desde logo considerando-se o legislado pelo Decº Lei n.º 48051 – e condizente com os ditames do artº 9º do Código Civil, bem como do seu artº 10º, ‘segundo a norma que o próprio intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema’; j) se for decidido de modo diverso – e sem prescindir deste entendimento - a interpretação feita pelo Tribunal a quo é inconstitucional por violação além do mais do disposto no artº 27º, conjugado com o artº 18º, da Constituição.' Por Acórdão de 6 de Janeiro de 2000, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou o decidido pelas instâncias, considerando, em conclusão, que 'o artigo 225º, do Código de Processo Penal de 1987, é a consagração legislativa correcta do princípio constitucional estabelecido no n.º 5 do artigo 27, da Constituição da República Portuguesa', e que, 'nos termos do artigo 225º do Código de Processo Penal de 1987, está prevista a indemnização por parte do Estado por privação da liberdade em dois casos: por detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal e por prisão preventiva legal, mas injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto, exigindo-se prejuízos anómalos e de particular gravidade, sem concurso de conduta dolosa ou negligente do arguido para a formação do erro.' Deste acórdão foi interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, com fundamento na 'inconstitucionalidade, discutida nos autos', do artigo 225º do Código de Processo Penal de 1987, por violação do artigo 27º, n.º 5, da Constituição. Admitido o recurso, e notificada a recorrente, pela primitiva relatora, nos termos do artigo 75º-A, da Lei do Tribunal Constitucional, para indicar, querendo a peça processual onde suscitou, durante o processo e de modo processualmente adequado, a inconstitucionalidade da norma contida no artigo
225º do Código de Processo Penal, veio aquela indicar 'as alegações de recurso dirigidas ao Tribunal da Relação do Porto e as alegações de recurso dirigidas ao Supremo Tribunal de Justiça'. Ordenada então a produção de alegações, a recorrente concluiu-as da seguinte forma:
'a) a recorrente - absolvida a final - foi objecto de privação prolongada de liberdade, durante mais de dois anos, o que configura ofensa grave a um seu direito fundamental, expressa e solenemente consagrado em sede constitucional; b) assim sendo, o enclausuramento que sofreu - e que lhe causou danos patrimoniais e pessoais gravíssimos - resultou de actividade materialmente ilícita do recorrido; c) mesmo que assim se não entenda, resultou de actividade apenas formalmente lícita (!) do recorrido, que igualmente é fonte do dever de indemnizar; d) o Tribunal a quo considera que a prisão não foi injustificada, ou manifestamente ilegal; e) a recorrente entende que a sua prisão foi injustificada, e manifestamente ilegal; f) os prejuízos advenientes foram fatalmente anómalos e de particular gravidade
- tratando-se, como se trata, de privação de liberdade, nem outra conclusão seria possível extrair; g) o artigo 225º do Código de Processo Penal impõe o ressarcimento pelo recorrido dos danos em causa que infligiu à recorrente; h) ocorrem in casu todos os pressupostos de aplicação daquele normativo; i) esta interpretação é a única conforme à Constituição da República, harmónica com a unidade do sistema jurídico - desde logo considerando-se o legislado pelo Decreto-Lei n.º 48.051 - e condizente com os ditames do artigo 9º do Código Civil, bem como do seu artigo 10º, ‘segundo a norma que o próprio intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema’; j) tendo decidido de modo diverso, a interpretação feita pelo Tribunal a quo é inconstitucional por violação além do mais do disposto no artigo 27º, conjugado com o artigo 18º, da Constituição.' Junto do Tribunal Constitucional, o Ministério Público, por sua vez, concluiu as suas contra-alegações do seguinte modo:
'1 - Não compete a este Tribunal decidir acerca da correcção da subsunção, realizada pelos Tribunais Judiciais, da matéria de facto apurada pelas instâncias à norma constante do artigo 225º do Código de Processo Penal - determinando se ocorrem in casu os pressupostos de aplicação de tal normativo, sindicando se a prisão preventiva sofrida pela recorrente se configura como
‘injustificada’ ou ‘manifestamente ilegal’.
2 - Tendo a recorrente fundado a sua pretensão indemnizatória exclusivamente na imputação dos danos sofridos à ‘ilegalidade manifesta’ da prisão, decorrente - na sua óptica - da circunstância de ter sido absolvida em julgamento - sem curar de, a nível subsidiário, alegar outros factos em que pudesse assentar o nexo de imputação ao Estado - a título objectivo ou subjectivo - dos referidos danos, é manifesto que a acção sempre teria de improceder no momento em que a prisão fosse qualificada como ‘legal’, por não competir ao Tribunal averiguar oficiosamente da existência de matéria de facto não alegada, para nela fundar, em termos alternativos, o reconhecimento da pretensão do autor.
3 - Face à concreta configuração da causa de pedir, invocada pela autora como fundamento da pretensão indemnizatória deduzida, a única questão de constitucionalidade que cumpre apreciar traduz-se em saber se o n.º 5 do artigo
27º da Constituição da República Portuguesa impõe uma responsabilidade civil ao Estado pelo automático ressarcimento de todos os danos decorrentes de uma prisão preventiva que - não sendo ilegal nem devida a erro grosseiro do juiz - foi decretada em processo penal em que veio a ser proferida, em julgamento, decisão absolutória da arguida.
4 - A norma constante do n.º 5 do artigo 27º da Constituição da República Portuguesa, ao remeter a regulamentação da responsabilidade civil do Estado por privação da liberdade contra o disposto na Constituição ou na lei para os
‘termos que a lei estabelecer’, rejeita claramente tal responsabilização automática do Estado, facultando ao legislador o estabelecimento de um particular regime jurídico, assente na criação de específicos pressupostos de tal responsabilidade.
5 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.' No Plenário do Tribunal Constitucional, não tendo a decisão proposta obtido vencimento, decidiu-se, por Acórdão de 16 de Maio de 2001, o seguinte:
'Na discussão do presente recurso, foi suscitada a questão prévia do seu não conhecimento, por a recorrente não ter ‘suscitado a questão da inconstitucionalidade (...) de modo processualmente adequado perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer’ (artigo 72º, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional), isto é, identificando a interpretação do artigo 225º do Código de Processo Penal cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, de forma clara e perceptível. Após mudança de relator - por a primitiva relatora discordar da presente decisão
- , acorda-se em mandar notificar a recorrente, nos termos do artigo 3º, n.º 3, do Código de Processo Civil (aplicável por força do artigo 69º da Lei do Tribunal Constitucional), para, querendo, se pronunciar sobre a referida questão prévia, no prazo de 10 (dez) dias.' A recorrente veio pronunciar-se no sentido de se desatender a questão prévia, dizendo, no que ora interessa:
'(...) Antecipando razões, adianta a recorrente que suscitou a questão da constitucionalidade de modo processualmente adequado, observou a obrigação do n.º 2 do artº 72º da Lei do Tribunal Constitucional, e nada obsta a que se conceda provimento à pretensão formulada no presente recurso. Jamais ocorreu aquilo que o Mº Pº muito erradamente apelidou de ‘indeterminação e flutuação da autora ao longo do processo’. E ainda que tal houvesse sucedido, admitir-se-ia o juízo de censura quanto ao grau de perfeição ou imperfeição técnico-jurídica do texto da recorrente. Por muito que purista fosse tal crítica, a recorrente garante que teria o fair-play suficiente para a receber e dela humildemente tirar proveito. Mas tal seria em absoluto despiciendo no contexto do recurso que ora nos ocupa, dependente só da circunstância de a questão da (in)constitucionalidade ter sido suscitada nas instâncias, ‘de forma adequada’
(...) Há que ser claro: se o Estado cometeu um facto ilícito – uma prisão ilegal – e deste seu comportamento resultaram danos, é seu dever indemnizar nos termos gerais do direito. A Constituição da República remete para a lei ordinária a regulamentação da indemnização. Mas será que esta remissão se destina a anular ou de algum modo restringir a consagração anteriormente feita, ainda por cima em sede hierarquicamente superior? A resposta é óbvia. Não pode a Constituição afirmar o direito à indemnização para que a lei ordinária subrepticiamente a restrinja só porque aquela – a Constituição – definiu uma remissão para os ‘termos que a lei estabelecer’. Estes ‘termos’ – a estabelecer pela lei ordinária – poderão ter que ver com pressupostos processuais, fixação do tribunal competente, estabelecimento de prazo para o exercício do direito, legitimidade e tutti quanti. O que não podem
é regular um direito previamente consagrado de forma solene em sede constitucional em termos de tal modo redutores ou restritivos que equivalham à sua anulação. Isso é que não pode ser! Consoante ensinam os mais ilustres constitucionalistas (Prof. Doutor Gomes Canotilho e Doutor Vital Moreira), ‘o facto de a Constituição remeter para a lei a regulamentação da indemnização não tolhe a aplicabilidade directa e imediata (cfr. art. 18º-1) deste preceito, devendo os órgãos aplicadores do direito dar-lhe eficácia mesmo na falta da lei’
(apud Constituição da República Portuguesa, Anotada, 2ª ed., 1º Vol., Coimbra Editª, 1984, em anotação ao artº 27º). Isto posto, não é sustentável que não esteja identificada e mais que identificada a interpretação do artº 225º do Código de Processo Penal cuja constitucionalidade pretende ver apreciada. ‘De forma clara e perceptível’, como se demonstra. Vejamos o que a recorrente convoca em abono da sua tese em sede de alegações dirigidas ao Tribunal da Relação. Aí se refere que nada obsta ao dever de indemnizar ‘nos termos que a lei estabelecer’ (apenas fumus de restrição, sublinha-se). E alude-se à aparente restrição vertida no artº 225º do Código de Processo Penal. ‘Pode a lei – e porventura deve a lei’ (in alegações, fls. 7)
‘estabelecer em abstracto o método e disciplina de indemnizar por banda do Estado, em caso de preventiva ilegal ou injustificada. Mas nunca restringindo o direito, como intoleravelmente pretenderia, de acordo com esta interpretação, o legislador ordinário autor daquele artº 225’. Que mais é necessário para afirmar a desconformidade flagrante entre a interpretação restritiva do artº 225º, feita pelo Estado, com a norma constitucional do n.º 5 do artº 27º? Tudo vem reafirmado sob ‘conclusões’, mormente f) e h): ‘o artº 225º do Código de Processo Penal impõe o ressarcimento pelo recorrido dos danos em causa que infligiu à recorrente’, e ‘se for decidido de modo diverso – e sem prescindir desse entendimento – a interpretação feita pelo Mº Juiz a quo é inconstitucional por violação além do mais do disposto no artº 27º, conjugado com o artº 18º, da Constituição’. Não é possível sustentar-se, e com todo o respeito se reafirma, que a questão da inconstitucionalidade foi suscitada de modo processualmente adequado em termos de o Tribunal ‘estar obrigado a dela conhecer’ (n.º 2 do artº 72º da Lei do Tribunal Constitucional). Ainda em sede de alegações para o Supremo Tribunal de Justiça se reafirmou ex abundanti a discordância da interpretação do artº 225º com a Constituição: vide por exemplo alíneas g) e j) das conclusões. De todo este contexto resulta que a recorrente vem defendendo a ideia que a interpretação do artº 225º feita nas instâncias e no Supremo Tribunal no sentido de que o Estado tem responsabilidade por perdas e danos quando comete um acto ilícito (a prisão preventiva legal), mas injustificado, não se compagina com a leitura que nos autos ele próprio faz do artº 27º da Constituição. O artº 225º do Código de Processo Penal, numa palavra, não é a consagração do princípio constitucional do n.º 1 do artº 27º, segundo a interpretação de que o dever de indemnizar só é gerado em caso de ‘erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto, exigindo-se prejuízos anómalos e de especial gravidade sem concurso de conduta dolosa e negligente do arguido para a formação do erro’.
Está fora de causa que não ocorreu esta conduta dolosa ou negligente da arguida, ora recorrente, para a formação do acto. Idem a qualificação dos prejuízos como anómalos e de particular gravidade. O erro grosseiro do Tribunal ao manter uma prisão que ab ovo era ilegal – o próprio Tribunal assim o decidiu em sentença transitada em julgado – foi exactamente isso mesmo: grosseiro. Atenuar a conclusão com a enviesada exegese feita ao artº 225º é manifestamente interpretar a lei contra princípios previamente consagrados no texto jurídico fundamental. Nestes termos, deve ser desatendida a questão prévia suscitada, conhecendo-se do recurso e considerando-se procedente a pretensão da recorrente.' Cumpre decidir. II. Fundamentos O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e, como se sabe, são requisitos para se poder tomar conhecimento deste tipo de recurso, além da aplicação como ratio decidendi, pelo tribunal recorrido, da(s) norma(s) cuja constitucionalidade se impugna e do esgotamento dos recursos ordinários que no caso cabiam, que a inconstitucionalidade normativa tenha sido suscitada durante o processo. Este último requisito, como este Tribunal tem vindo repetidamente a decidir, e se diz, por exemplo, no Acórdão n.º 352/94 (publicado no Diário da República
[DR], II série, de 6 de Setembro de 1994), deve ser entendido, 'não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)', mas 'num sentido funcional', de tal modo 'que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão', 'antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita'. É, na verdade, este o sentido que corresponde à natureza da intervenção do Tribunal Constitucional em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal a quo pudesse e devesse ter apreciado – ver, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, publicado no DR, II série, de 10 de Janeiro de 1995, onde se escreveu que 'a exigência de um cabal cumprimento do ónus da suscitação atempada – e processualmente adequada – da questão de constitucionalidade não é, pois, [...] uma ‘mera questão de forma secundária’. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão'
(assim, também, por exemplo, o Acórdão n.º 155/95, publicado no DR, II série, de
20 de Junho de 1995). O requerimento do recurso de constitucionalidade não é já, pois, como este Tribunal repetidamente tem afirmado, momento idóneo para pela primeira vez suscitar uma questão de constitucionalidade (v. também, além dos Acórdãos citados, por exemplo o Acórdão n.º 166/92, publicado no DR, II série, de 18 de Setembro de 1992). Antes o recorrente tem o ónus de suscitar a inconstitucionalidade perante o tribunal a quo, para este se pronunciar sobre ela. E, como ao Tribunal Constitucional só compete apreciar em via de recurso a constitucionalidade de normas, a questão de constitucionalidade suscitada perante o tribunal a quo, cuja apreciação pode vir a constituir objecto daquele recurso, há-de ser igualmente uma questão de constitucionalidade normativa, isto
é, referida à conformidade constitucional de norma(s). Como se disse no Acórdão n.º 199/88 (DR, II Série, de 28 de Março de 1989):
'[...] este Tribunal tem decidido de forma reiterada e uniforme que só lhe cumpre proceder ao controle da constitucionalidade de ‘normas’ e não de
‘decisões’ – o que exige que, ao suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito legal cuja legitimidade constitucional se questiona, ou, no caso de se questionar certa interpretação de uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem por violador da lei fundamental.' (ver também, por exemplo, os Acórdãos n.ºs
178/95 – publicado no DR, II Série, de 21 de Junho de 1995 –, 521/95 e 1026/96, inéditos).' Neste mesmo sentido, escreveu-se no Acórdão n.º 269/94 (DR, II série, de 18 de Junho de 1994):
'[...] Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido. Ora, sendo assim – e não se vê que possa ser de outro modo, pois não é exigível que os tribunais decidam questões (designadamente questões de constitucionalidade) sem que as partes lhes indiquem as razões por que entendem que elas devem ser decididas num determinado sentido, e não noutro.' Se o recorrente entende que um preceito não é inconstitucional 'em si mesmo', mas apenas num segmento ou numa sua determinada dimensão ou interpretação normativa, a exigência de suscitação da questão de constitucionalidade de forma clara e perceptível implica, pois, o ónus de, ao suscitar a inconstitucionalidade, identificar devidamente tal questão, através da indicação do segmento ou da enunciação da dimensão ou sentido normativo reputados inconstitucionais – o que é evidentemente diverso de sustentar apenas que a hipótese de uma norma se encontra preenchida no caso concreto (mesmo que se aduzam argumentos de constitucionalidade nesse sentido). Como se escreveu no Acórdão n.º 367/94 (DR, II Série, de 7 de Setembro de 1994):
'Ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma interpretação que do mesmo se faça.
[...] esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado por, desse modo, violar a Constituição.' E, no Acórdão n.º 178/95 (DR, II Série, de 21 de Junho de 1995), além de se remeter para os fundamentos dos referidos Acórdãos n.ºs 269/94 e 367/94, conclui-se:
'[...] impunha-se que os reclamantes tivessem indicado – o que não fizeram – o segmento de cada norma, a dimensão normativa de cada preceito – o sentido ou interpretação, em suma – que eles têm por violador da Constituição. De facto, tendo a questão da constitucionalidade de ser suscitada de forma clara e perceptível (cf., entre outros, o Acórdão n.º 269/94, in Diário da República,
2ª Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a lei fundamental.' Tal necessidade de individualização do segmento ou de enunciação do sentido ou interpretação normativos que o recorrente reputa inconstitucional torna-se, aliás, particularmente evidente – notar-se-á ainda – quando o preceito ao qual se imputa a inconstitucionalidade, logo pela sua redacção, contém vários segmentos normativos, ou se reveste de várias dimensões ou sentidos interpretativos, susceptíveis de suscitar questões de constitucionalidade diversas, eventualmente passíveis, também, de respostas distintas. Posto isto, indaguemos se a suscitação da inconstitucionalidade normativa ocorreu, no caso dos autos, durante o processo e de forma processualmente adequada, nos termos indicados, interessando, para o efeito, consultar as alegações da recorrente perante o tribunal recorrido (fls. 257 a 262 dos autos). Nestas alegações, a recorrente começou por afirmar a sua discordância perante o decidido e por expor o pressuposto de facto do qual resultaria, a seu ver, o direito a uma indemnização, sem, porém, questionar ainda a constitucionalidade de qualquer norma. Especificamente no que diz respeito à constitucionalidade da inexistência de uma indemnização, afirmou, depois, que '(...) se é certo que eventualmente seja possível concluir que in casu o acto que decidiu a prisão será lícito, num ponto de vista meramente formal – mas sem conceder, sublinha-se
– não o é, seguramente, num ponto de vista material', e que 'esta é a resposta
única que resulta da interpretação conforme a Constituição, que tem em conta a unidade do sistema jurídico, as regras do artº 9º do Código Civil e ‘a norma que o próprio intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema’ (...).' Também aqui se impõe, porém, a conclusão de que a recorrente não identificou, como inconstitucional, um preceito, um segmento, um determinado sentido ou interpretação de uma norma. Antes imputou a eventual inconstitucionalidade (e a contrario) a uma 'resposta' que no caso concreto não considerasse a prisão como materialmente ilícita. Seguidamente, a recorrente salientou que estava em causa uma prisão injustificada que, 'independentemente de outros prejuízos, é anormal', e, 'numa palavra merecedora da tutela do direito à indemnização' – apontando, pois, para qualificação da anormalidade dos prejuízos (assim, também a conclusão f) das alegações) –, reiterou e deu como reproduzido o que alegara perante o Tribunal da Relação – onde, porém, também não identificara o segmento normativo ou enunciara devidamente, isto é, de forma clara e perceptível, o sentido interpretativo do artigo que tinha por inconstitucional (sendo, designadamente, as conclusões das alegações perante o Tribunal da Relação e perante o Supremo Tribunal de Justiça quase idênticas). E a recorrente concluiu, afirmando (fls. 261) que o artigo 225º do Código de Processo Penal 'impõe o ressarcimento pelo recorrido dos danos em causa que infligiu à recorrente' (conclusão g)), pois que 'ocorrem in casu todos os pressupostos de aplicação daquele normativo' (conclusão h)), sendo que 'esta interpretação é a única conforme à Constituição da República (...)'(conclusão i)), pelo que 'se for decidido de modo diverso – e sem prescindir deste entendimento – a interpretação feita pelo Tribunal a quo é inconstitucional por violação além do mais do disposto no artº 27º, conjugado com o artº 18º, da Constituição' (conclusão j)). Da simples leitura destas conclusões pode retirar-se, com meridiana clareza, que a recorrente afirmou estar preenchida, no caso concreto, a hipótese normativa do artigo 225º do Código de Processo Penal de 1987 – que, aliás, pela primeira vez cita nas alegações na conclusão g), deixando em aberto apurar a que número deste artigo se referia –, verificando-se todos os seus elementos. E retira-se, ainda, que a recorrente sustentou, novamente a contrario, que a 'interpretação' no sentido de não ocorrerem in casu todos os pressupostos de aplicação daquele artigo 225º (num dos seus números, não precisado) era desconforme com a Constituição (conclusões i) e j)). Como se vê, porém, com as expressões referidas apenas se conclui pela necessidade constitucional de existência de uma indemnização no caso concreto, e, mesmo quando se refere uma 'interpretação', não só esta não se imputa a um dos números ou a um segmento do artigo 225º do Código de Processo Penal, como não se identifica o alegado sentido interpretativo em causa. Antes se trata apenas, e a contrario – '(...)a única conforme(...)', '(...)se for decidido de modo diverso (...)' –, de uma 'interpretação' segundo a qual, no caso concreto, não ocorreriam todos os pressupostos para a indemnização, sem se precisar qual ou quais destes estavam em causa no sentido normativo questionado. Tem, pois, perfeito cabimento perguntar se a recorrente não se estaria apenas a referir à subsunção da matéria de facto apurada pelas instâncias à norma constante do artigo 225º do Código de Processo Penal – determinando se ocorrem in casu os pressupostos de aplicação de tal normativo, por a prisão preventiva se configurar como 'injustificada' ou 'manifestamente ilegal'. Seja como for, porém, não pode deixar de considerar-se que tal forma de referir uma inconstitucionalidade de uma 'interpretação' é insuficiente logo para o tribunal a quo se poder e dever aperceber de qual o exacto sentido normativo que está questionado na sua conformidade constitucional – muito menos correspondendo
à exigência, que é a que decorre da jurisprudência deste Tribunal (vejam-se, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 367/94 e 178/95), de que tal 'sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado por, desse modo, violar a Constituição' – ou, sequer, de que se 'indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir (...).'
7. Importa, ainda, frisar que, estando apenas em questão um determinado segmento ou uma dimensão interpretativa do artigo 225º do Código de Processo Penal de
1987, a exigência de indicação desse segmento, ou – caso não estivesse em causa uma parte, mas apenas uma determinada interpretação – de enunciação do sentido normativo que a recorrente reputava inconstitucional era particularmente clara em face do próprio teor literal do preceito legal que prevê os pressupostos da obrigação de indemnização em caso de detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal ou injustificada por erro manifestamente grosseiro – o artigo 225º do Código de Processo Penal. Este dispunha:
'Artigo 225º
(Modalidades)
1. Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade.
2. O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, se a privação da liberdade lhe tiver causado prejuízos anómalos e de particular gravidade. Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro.' O dever de indemnizar por privação ilegal ou inconstitucional de liberdade está, por sua vez, previsto no artigo 27º, n.º 5, da Constituição, segundo o qual:
'(...)
5. A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer.' Resulta, pois, logo da leitura do citado artigo 225º que nele se prevêem diversos fundamentos para a obrigação de indemnização – desde logo, nos seus dois números – e que estes estavam submetidos a requisitos susceptíveis de mais do que uma interpretação – assim, por exemplo, a exigência de anormalidade e particular gravidade dos prejuízos (a que a recorrente também se refere nas alegações, e que foi revogada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto), e o entendimento do que seja uma ilegalidade manifesta, podiam suscitar divergências de interpretação. Ora, não se pode excluir – e é mesmo o mais certo – que este artigo 225º do Código de Processo Penal de 1987 devesse merecer, no confronto com a Lei Fundamental, apreciações diversas, consoante estivesse em causa um ou outro segmento normativo (um ou outro requisito), previsto num ou noutro dos seus números, e entendido segundo uma ou outra interpretação. Comportando tal artigo, referido pela recorrente, mais do que um número, vários requisitos nos seus vários segmentos normativos, e podendo revestir-se de várias dimensões ou sentidos interpretativos, susceptíveis de suscitar questões e apreciações diversas, é manifesto que uma imputação de inconstitucionalidade apenas àquele artigo 225º, entendido no sentido de no caso concreto não fundar uma obrigação de indemnização, era insuficiente para identificar uma questão de constitucionalidade normativa com a exactidão mínima indispensável para poder ser apreciada pelo tribunal recorrido e apresentada como tal na sua decisão, em termos de os destinatários desta poderem ficar a saber, sem margem para dúvidas, o sentido com que o preceito em causa não era aplicado por, desse modo, violar a Constituição.
8. Não se pode, aliás, considerar que a resposta da recorrente sobre a suscitação da inconstitucionalidade perante o tribunal a quo tenha contribuído para contrariar o que se disse – assim, enquanto nas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça a recorrente referia que a sua prisão preventiva fora manifestamente ilegal, aparentemente fundando-se no n.º 1 do artigo 225º, e causara prejuízos anómalos – requisito referido no n.º 2 desse artigo –, nesta resposta, citando a decisão recorrida, parece pôr em causa a exigência normativa de um 'erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto'. Não tendo a recorrente cumprido devidamente o ónus de suscitação da inconstitucionalidade normativa durante o processo, de forma clara e perceptível, não pode, agora, o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do presente recurso de constitucionalidade. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do presente recurso. Custas pela recorrente, com 8 (oito) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 13 de Março de 2002 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Artur Maurício Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma (vencida,nos termos da declaração de voto junta) Guilherme da Fonseca (vencido,conforme declaração de voto da Exª Consª Maria Fernanda Palma) José de Sousa e Brito (vencido, por entender que o Tribunal devia Ter tomado conhecimento do recurso, pelas razões da alínea a) da declaração de voto da Conselheira Maria Fernanda Palma) Luís Nunes de Almeida (vencido, por entender que se devia tomar conhecimento do recurso, pelo essencial das razões aduzidas na declaração de voto da Exª Consª Fernanda Palma, no que a essa questão se reporta). Declaração de Voto
A - Votei vencida a solução dada pelo Tribunal Constitucional à questão prévia pelas seguintes razões:
A questão suscitada pela recorrente desde as alegações para o Tribunal da Relação do Porto manifesta uma dupla dimensão: a dimensão, efectivamente normativa, segundo a qual violaria a Constituição uma interpretação do artigo 225º do Código de Processo Penal que restringisse os casos suceptíveis de gerar indemnização às hipóteses de prisão formalmente ilícita e a dimensão, meramente subsuntiva, nos termos da qual o caso em apreço seria ainda um caso de prisão injustificada e manifestamente ilegal embora não tenha sido apreciado como tal pelo tribunal a quo.
As duas dimensões surgem intrinsecamente conexionadas na argumentação da recorrente, mas a dimensão meramente subsuntiva, em que a recorrente apela a uma errónea aplicação pelo tribunal recorrido do artigo 225º do Código de Processo Penal, é sempre apoiada numa interpretação do preceito com um âmbito normativo diverso daquele que foi reconhecido pelo tribunal recorrido. O reconhecimento dessa dimensão normativa, que segundo a recorrente está ínsita no próprio artigo 225º do Código de Processo Penal, pressupõe uma verdadeira questão de constitucionalidade: a de saber se decorre obrigatoriamente da Constituição a interpretação daquele preceito legal, segundo a qual a injustificação da prisão preventiva seria necessariamente demonstrada por uma ulterior absolvição do arguido, compatível com a formal licitude da prisão preventiva.
Assim, para a recorrente, duas alternativas se colocam relativamente ao artigo 225º do Código de Processo Penal: a de ser inconstitucional a interpretação levada a cabo pelo tribunal a quo e a da inconstitucionalidade tout court do artigo 225º, na medida em que a sua letra não seja susceptível de englobar situações em que a questão decisiva seja a da absolvição do arguido.
Já não integram, porém, um verdadeiro plano de constitucionalidade normativa, mas apenas um problema de correcta aplicação da lei ao caso, os argumentos apresentados pela recorrente meramente orientados, na base de factos, para a comprovação de que a prisão preventiva teria sido ilegal ou injustificada, no momento da sua decretação ou manutenção.
Todavia, este último plano é secundário na argumentação da recorrente, pois o que a leva desde as alegações para o Tribunal da Relação a discordar da decisão recorrida não é a possível relevância de factos não considerados pelo tribunal, mas uma objecção sobre os conceitos de prisão manifestamente ilegal e de prisão injustificada pressupostos pela decisão recorrida, bem como sobre os conceitos de prejuízos anómalos e de particular gravidade.
Consequentemente, configura-se uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa (perante os tribunais recorridos e perante o Tribunal Constitucional) para além de uma questão relativa à correcta aplicação da lei ao caso, isto é, à verificação no caso dos pressupostos legalmente exigidos.
O objecto do recurso de constitucionalidade é, portanto, descritível como a interpretação do artigo 225º do Código de Processo Penal que considera não injustificada ou manifestamente ilegal, ipso facto, a prisão preventiva daquele que venha a ser absolvido no julgamento. Será, por via desta compreensão, uma certa interpretação normativa do que seja prisão preventiva manifestamente ilegal e injustificada o próprio objecto do recurso. Só dessa questão poderia o Tribunal Constitucional tomar conhecimento, não podendo já controlar a correcta aplicação do Direito ao caso segundo a interpretação perfilhada pelo tribunal recorrido.
B - Votaria a inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 225º do Código de Processo Penal questionada pelas seguintes razões:
1. Definido o objecto do recurso, nos termos anteriores, considero que se deverão distinguir possíveis configurações do objecto do recurso segundo a sua relevância. Assim, parece claro que a Constituição não pode limitar o legislador ordinário quanto ao que ele venha a entender por prisão preventiva manifestamente ilegal e injustificada, na medida em que tais qualificativos dependem dos pressupostos legais da prisão preventiva que são definidos, com alguma amplitude, pelo legislador ordinário. Nesse sentido, do artigo 27º, nº 5, da Constituição, bem como dos preceitos constitucionais que regulam a prisão preventiva, não resulta, esgotantemente, um conceito de prisão preventiva manifestamente ilegal ou injustificada, pelo que não se extrai de tais normas uma exigência absoluta quanto aos limites de tais conceitos, mas apenas, quando muito, um núcleo essencial da ilegalidade ou da 'injustificabilidade' da prisão preventiva de acordo com os parâmetros constitucionais.
Daqui resulta que não é óbvio, no plano do sentido das palavras, que uma prisão preventiva seja injustificada ou passe a ser manifestamente ilegal se, apesar de ser ex ante absolutamente legal e fundamentada, o arguido venha a ser absolvido.
Não há uma exigência constitucional do conteúdo de tais conceitos que se imponha ao legislador ordinário. Aliás, o sentido das palavras não é regulável, em absoluto, pela Constituição, mas há-de resultar da definição dos fundamentos da prisão preventiva pelo próprio legislador ordinário.
Assim, também no plano da constitucionalidade não surge como vinculativa uma interpretação lata do teor do artigo 225º do Código de Processo Penal pela via de um conceito pré-estabelecido constitucionalmente de ilegalidade ou de 'injustificabilidade'.
2. É já, porém, uma opção constitucional indiscutível a que se relaciona com a resposta à questão de saber se o artigo 225º do Código de Processo Penal seria inconstitucional por não contemplar todos os casos possíveis em que o arguido venha a ser absolvido (da injustificabilidade da prisão preventiva constatada a posteriori) restringindo, por isso, as hipóteses de indemnização a certas situações determinadas segundo critérios ex ante, independentemente da futura absolvição do arguido.
Deste modo, só também na medida em que a prisão preventiva ilegal ou injustificada seja, exclusivamente, o pressuposto da obrigação de indemnização por parte do Estado é que haverá interferência das exigências constitucionais em tais conceitos.
3. A constitucionalidade de uma interpretação da norma em causa que não contemple senão a ilegalidade e 'injustificabilidade' segundo um juízo prognóstico e técnico é, em primeira linha, sustentada por argumentos extraídos do texto constitucional.
Segundo tais argumentos, o artigo 27º, nº 5, da Constituição, não imporia uma obrigação de indemnização do Estado relativamente à prisão preventiva derivada de factos lícitos, quando o arguido viesse a ser absolvido, remetendo antes para os termos da lei os casos de privação da liberdade contra o disposto na Constituição [artigos 27º, nº 5, alínea b), e 28º]. Por outro lado, a indemnização pela prisão preventiva não poderia ser assimilada pela responsabilidade civil por factos lícitos do Estado que flui do artigo 22º da Constituição, não só porque tal preceito apenas se refere a entidades públicas e seus funcionários ou agentes, o que não abrangeria o exercício da função jurisdicional, mas também porque o artigo 27º, nº 5, é uma norma que especificamente regula a privação da liberdade contra a Constituição e, por isso, regularia em especial esse tipo de situações.
Assim, seguindo esta lógica argumentativa, o artigo 225º do Código de Processo Penal seria a concretização no direito ordinário do artigo 27º, nº
5, desenvolvendo os seus pressupostos, nomeadamente através da figura da prisão preventiva injustificada, que apenas pressuporia uma ponderação deficiente da aplicação de uma medida de coacção excepcional (artigo 28º, nº 2, da Constituição).
A questão de atribuição de indemnização sobretudo em função da absolvição do arguido estaria, assim, num nível diferente do relativo ao pressuposto da contrariedade da prisão preventiva à Constituição, em que o referido artigo 27º, nº 5, se apoia.
4. A toda esta argumentação subjaz, porém, um enclausuramento da questão em apreço no preceito constitucional sobre a prisão preventiva.
A questão que a este Tribunal, como intérprete dos valores constitucionais, cabe dilucidar é, todavia, a de saber se os danos pelo risco de uma inutilidade da prisão preventiva revelada ex post não devem ser suportados pelo Estado em vez de onerarem, exclusivamente, o arguido. Tal questão não é apenas atinente ao regime dos pressupostos da prisão preventiva e à sua legitimidade, mas antes um problema de justiça no relacionamento entre o Estado e os cidadãos.
5. Estamos, sem dúvida, perante um problema de ponderação de valores em que se questiona em que medida e com que consequências é que a privação da liberdade (em prisão preventiva) de quem veio a ser absolvido é justificada pelo interesse geral em realizar a justiça e prevenir a criminalidade. Num outro modo de abordagem, a pergunta fundamental será a de saber se é legítimo exigir-se, em absoluto e sem condições, a cada cidadão o sacrifício da sua liberdade em nome da necessidade de realizar a justiça penal, quando tal cidadão venha a ser absolvido.
Ora, à colocação da questão neste ponto extremo terá que se responder negativamente, isto é, pela não exigência, sem limites, de um tal dever, pelo menos em todos os casos em que a pessoa em questão não tenha dado causa a uma suspeita sobre si própria, mas surja como vítima de uma inexorável lógica investigatória.
6. Não se tratará porém de um problema de verificação dos pressupostos ex ante da prisão preventiva e de uma avaliação da sua justificação, mas sim, num plano objectivo (e necessariamente ex post), da contemplação da 'vitimização' do agente pelo próprio juízo de prognose correcto realizado pelo órgão de justiça penal.
Se o agente não foi, ele mesmo, fonte do risco da aparência de indícios da prática de um facto criminoso não poderá recair sobre si o ónus de suportar todos os custos da privação da liberdade sem qualquer posterior reparação. Na tradição jurídica portuguesa, esta lógica subjaz ao princípio da indemnização pelo erro judiciário que foi consagrado no Código de Seabra e no artigo 126º, §§
5º, 6º e 7º, do Código Penal de 1886 (em consequência de revisão de sentença condenatória) e que a Constituição de 1933 manteve (cf. Maria da Glória Garcia, A responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas, 1997, p. 24).
Mas é também um afloramento da mesma ideia de ressarcibilidade o que subjaz à exigência da reparação de prejuízos característica do conflito de interesses manifestada no estado de necessidade (artigo 339º, nº 2, do Código Civil) e que preside, obviamente, à responsabilidade civil do Estado por factos lícitos (artigos 22º da Constituição e 8º do Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967).
Tal contrapartida de uma ponderação de interesses que exige um dever de solidariedade manifesta-se na ordem jurídica como princípio geral, tanto pela exigência de reparação de danos como pelas limitações da própria justificação pelo estado de necessidade aos casos em que seja razoável exigir do terceiro inocente o sacrifício dos seus interesses (artigo 34º do Código Penal).
Esta ponderação não pode deixar de ter raiz constitucional e inserir-se numa ordem constitucional de valores. Com efeito, se a Constituição admite em certos casos a sobreposição do interesse público ao individual, também tal princípio tem como geral contrapartida a ressarcibilidade da lesão dos interesses e direitos individuais. Assim acontece, de modo muito claro, na expropriação por utilidade pública (artigo 22º, nº 2, da Constituição) e se revela, igualmente, no âmbito da responsabilidade por actos lícitos das entidades públicas (artigo 62º, nº 2, e 22º, respectivamente, da Constituição). Manifestações deste princípio surgem, aliás, na jurisprudência dos tribunais superiores relativamente à própria função jurisdicional (cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Abril de 1998).
Tal princípio de reparação das lesões dos direitos individuais sacrificados num conflito de interesses em que o agente sacrificado não provocou a situação de conflito terá de valer inteiramente, por igualdade ou maioria de razão, quando o interesse sacrificado é o direito à liberdade.
São os fundamentos do Estado de Direito baseado na dignidade da pessoa humana que justificarão esta solução - artigos 1º, 2º, e 18º, nºs 2 e 3 da Constituição (cf. sobre a questão no sentido da inconstitucionalidade do artigo 253º do Código de Processo Penal, Rui Medeiros, Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos, 1992, p.105 e Luís Catarino, A responsabilidade do Estado pela administração da justiça, 1995, p.
350 e ss.).
7. Analisada a questão sub judicio nesta perspectiva não poderá ser aceitável um sistema de responsabilidade civil pela prisão preventiva, revelada injustificada ex post, devido à absolvição do arguido, que se baseie apenas na legalidade ex ante da sua aplicação em face dos elementos então disponíveis.
Mesmo a mais perfeita justificabilidade da prisão preventiva numa perspectiva ex ante não pode, em nome do carácter absoluto de uma necessidade processual, sobrepor-se ao direito do arguido - que não deu causa a essa situação por qualquer comportamento doloso ou negligente - a ser reparado dos prejuízos sofridos nos seus direitos fundamentais.
Não deve, assim, um juízo provisório sobre a culpabilidade do arguido ser mais valioso do que um juízo definitivo de absolvição justificando, em absoluto, os danos sofridos nos seus direitos. Isso limitaria, do ponto de vista das consequências, o valor da presunção de inocência (artigo 32º, nº 1, da Constituição; cf., nesse sentido, Delmas-Marty, Procédures Pénales d’Europe, 1995, p. 499 e, sobretudo, as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nos casos Brogan, Ciulla e Sekanina, respectivamente de 29 de Novembro de 1988, Série A, nº 145-B, de 22 de Fevereiro de 1989, Série A, nº 181, e de 22 de Agosto de 1993, Série A, nº 266-A).
Não há, portanto, uma pura opção de sistema constitucional na reparação dos danos da prisão preventiva pelo legislador ordinário (note-se que o sistema de reparação abrangente é dominante no Direito europeu - cf. Luís Catarino, ob.cit., p. 350 e ss. e Delmas-Marty, ob.cit., p. 498 ss.) sobre aquilo que constitui uma prevalência de interesses de ordem constitucional.
Não é, apenas, a interpretação literal do artigo 27º, nº 5, que se equaciona neste problema, mas um conjunto mais amplo de princípios que formam a coerência global do Estado de Direito democrático baseado na dignidade da pessoa humana.
8. A esta razão de fundo acresce a da inexplicável desigualdade entre aquele que, sendo condenado, viria a ser compensado pelo período em que cumpriu a prisão preventiva, mesmo em caso de perfeita justificabilidade ex ante de tal medida, através do desconto na pena de prisão em que seja condenado, e o arguido absolvido que não obteria qualquer compensação pela privação da liberdade se revelada ex post injustificada. Maria Fernanda Palma