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Processo n.º 474/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. e B., Reclamantes nos presentes autos em que figura como Reclamado o Ministério Público, foram condenados, por acórdão do Tribunal Judicial de Santa Comba Dão, nas penas únicas, respectivamente, de 6 anos e 3 meses de prisão e de 6 anos e 4 meses de prisão, pela prática de vários crimes. Esta condenação foi alterada, na sequência de recurso, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que fixou, relativamente a cada um dos arguidos, a pena única de 6 anos de prisão.
Da decisão do Tribunal da Relação foi interposto, pelos arguidos, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Por acórdão de 31 de Março de 2011, este Tribunal entendeu que, quanto ao arguido B., o seu recurso não era admissível com fundamento nos artigos 432.º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal (CPP). Quanto ao arguido A., o Tribunal recusou tomar conhecimento da questão suscitada a propósito do artigo 188.º do CPP, pelo facto de a mesma não ter sido previamente suscitada perante a Relação, tendo negado provimento ao recurso na parte restante.
2. Na sequência de tal acórdão, os arguidos apresentaram requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações subsequentes (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), suscitando a inconstitucionalidade do artigo 187.º do CPP (na redacção anterior), nos seguintes termos:
“Por entenderem que o art. 187° (na sua anterior redacção), foi interpretado de forma inconstitucional ao longo de todo o processado nos presentes autos, e, bem assim, pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, na medida em que, os conteúdos das intercepções telefónicas realizadas apenas poderiam valer enquanto mera ‘notícia de crime’, relativamente aos crimes pelos quais vieram os Recorrentes a ser condenados nos presentes autos, por se apresentarem os mesmos, e relativamente a tais crimes, como autênticos ‘conhecimentos fortuitos’, na medida em que, as aludidas intercepções telefónicas foram requeridas, ordenadas, e, realizadas na investigação de factos susceptíveis de serem integradores da prática de crimes de Tráfico de Estupefacientes, de Lenocínio e Auxílio à Imigração Ilegal, seja, na investigação da prática de crimes cuja especificidade levou a concluir por absolutamente indispensável o recurso à realização desse meio de prova, tão lesivo da esfera privada dos cidadãos, e, mesmo, atentatório dos seus mais elementares direitos fundamentais.
Relativamente à factualidade apurada, na realização das aludidas intercepções telefónicas, na parte respeitante à matéria susceptível de ser integradora da prática dos crimes pelos quais vieram os Recorrentes a ser condenados, os conteúdos de tais transcrições sempre se afiguram como autênticos ‘conhecimentos fortuitos’, e, já não como ‘conhecimentos de investigação’, não sendo, por isso, os mesmos, e com fundamento de reserva constitucional de lei, susceptíveis de serem valorados enquanto meio de prova, mas, apenas e só, como uma mera ‘notitia criminis’,
Pelo que, e nos termos do preceituado nos arts. 18°, n° 2, 32°, n.° 8 e 34.º, n.° 4 da C.R.P., sendo as escutas uma devassa de direitos fundamentais, devendo, por isso, os seus requisitos de validade constar de materialização legal, e, não existindo lei que legitimasse a valoração dos denominados ‘conhecimentos fortuitos, obtidos por meio de obtenção de prova extremamente lesivo para os direitos fundamentais do cidadão, sempre seria de ter proibida a sua valoração como meio de prova’ (Neste sentido, Cfr. Francisco Aguilar, ‘Dos Conhecimentos Fortuitos Obtidos Através de Escutas Telefónicas’).
Donde, atento tudo o exposto, e não obstante o vertido no douto Acórdão recorrido (de que tal questão não poderia ser objecto de conhecimento), concluem os ora Recorrentes que já no Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra deveria ter sido apreciada e conhecida a inconstitucionalidade do art. 187° do C. P. Penal (versão anterior), por violação dos arts. 18°, n° 2, 32°, n.° 8 e 34°, n.° 4 da C.R.P., pelo que, a sua aplicação ao caso ‘sub judice’, afecta a totalidade da prova recolhida, no que às intercepções telefónicas, e subsequentes transcrições, se refere, devendo decidir-se, nessa sequência, por proibida a sua valoração.”
Este recurso não foi admitido por se considerar que a norma em questão não foi aplicada. Nesta sequência foi deduzida a seguinte reclamação:
1. Sempre com o devido e merecido respeito, permitem-se os Reclamante discordar com o entendimento explanado pelo Venerando Sr. Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, quando alude à não verificação do pressuposto invocado (art., 70.º, n.º 1, al. b) da L.T.C.) na interposição de recurso, decidindo assim pela não admissão do recurso interposto pelos Recorrentes, ora Reclamantes.
2. Pois que, com aquele seu recurso, interposto do douto Acórdão proferido por aquele Egrégio Supremo Tribunal de Justiça, pretendiam, desde logo, os ora Reclamantes ver apreciada a questão, por eles suscitada aquando do seu Recurso interposto para aquele Supremo Tribunal, da interpretação inconstitucional, ao longo de todo o processado nos autos e, bem assim, pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, do art. 187º do CP.Penal (na sua anterior redacção), e da qual o mesmo Supremo Tribunal decidiu não tomar conhecimento,
3. Ora, certo é que o recurso interposto pelos ora Reclamantes o foi ao abrigo do preceituado na al. b) do n.º 1 do art. 70º da L.T.C., e que, conforme bem refere o Venerando Senhor Juiz Conselheiro no seu douto Despacho, tal decisão da qual foi então interposto o aludido recurso para este Egrégio Tribunal Constitucional não “aplica” a dita norma cuja inconstitucionalidade foi agora, como o havia já sido antes, suscitada.
4. No entanto, sempre se dirá que, entendem modestamente os Recorrentes ora Reclamantes que a Lei do Tribunal Constitucional, quando refere, no seu art. 70º, nº 1, al, b), que «Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais: Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo;», não está, conforme parece resultar do douto Despacho ora Reclamado, a cingir-se, apenas e só, à “última decisão”, ou seja, e no nosso caso concreto, ao douto Acórdão daquele Supremo Tribunal de Justiça,
5. Pois que, se assim não fosse, e desde logo, não se justificaria, de forma alguma, a utilização do plural «decisões» na redacção daquele n.º 1, pois que, caso fosse o de pretender cingir o conhecimento deste Tribunal às questões abordadas e decididas apenas na última instância de recurso socorrer-se-ia o legislador do termo “decisão”, pura e simplesmente
6. Ademais, sempre haverá ainda que atender ao facto de, um qualquer recurso a interpor para este Egrégio Tribunal Constitucional ser apenas admissível após o “esgotar” de todos os recursos ordinários, motivo pelo qual, obrigatoriamente teriam os ora Reclamantes, como efectivamente o fizeram, de suscitar aquela inconstitucionalidade numa primeira instância perante aquele Supremo Tribunal de Justiça,
7. Motivo pelo qual, e ainda que não haja aquele mesmo Supremo Tribunal “aplicado” a norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada por este Egrégio Tribunal, a verdade é que, tal norma não foi “aplicada” na decisão recorrida mas, foi efectivamente aplicada em todas as anteriores decisões, designada7nente, na decisão condenatória proferida em 1ª Instância, e em grande parte sustentada pelas escutas cuja inconstitucionalidade se suscitou.
8. Donde, e porque, nunca em momento anterior à prolação daquela decisão do Supremo Tribunal de Justiça poderia tal questão ser suscitada perante este Egrégio Tribunal Constitucional,
9. E porque, entendem modestamente os Recorrentes que um qualquer recurso a interpor para este Tribunal se poderá reportar a toda a “longevidade” de um qualquer processo, mormente, a uma qualquer decisão e/ou despacho no mesmo proferido,
10. Aliado ao facto de, descurando a mencionada alínea b) do n.º 1 do art. 70º, não existir na Lei do Tribunal Constitucional um qualquer outro preceito ao abrigo do qual devesse/pudesse haver sido interposto o recurso em questão,
11. Requerem os Recorrentes ora Reclamantes seja admitido o Recurso, interposto pelos mesmos, do douto Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de modo a poder ser então apreciado por este Tribunal Constitucional a aludida interpretação inconstitucional do art. 187º do C.P.Penal (na sua anterior redacção) efectivada ao longo de todo o processado nestes autos.
Termos em que, sopesados os argumentos acabados de aduzir, vêm os Recorrentes/Reclamantes requerer a V. Exas. se dignem revogar o douto despacho de inadmissibilidade do qual ora se reclama, devendo, nessa sequência, ser admitido e subir o recurso por si interposto do douto Acórdão proferido, pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Mais se requer a V. Exas. seja a presente reclamação instruída com os seguintes elementos:
- Decisão Condenatória proferida em 1ª Instância, Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, de fls... dos autos, Requerimento de Interposição de Recurso, e respectiva Motivação, do douto Acórdão da Relação de Coimbra para o Egrégio Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão proferido pelo Egrégio Supremo Tribunal de Justiça, de fls... dos autos, Requerimento de Interposição de Recurso do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para este Egrégio Tribunal Constitucional, e, douto Despacho de fls. 472 dos autos, que decidiu pela não admissibilidade do Recurso interposto.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. Em sede de reclamações deduzidas ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4 da LTC, compete ao Tribunal Constitucional averiguar se, em concreto, se encontravam reunidos os pressupostos necessários à admissão do recurso que foi recusada pelo tribunal a quo. É o que se passa a analisar.
A não admissão de recurso funda-se no facto de que o mesmo tem por objecto uma norma que não foi aplicada na decisão recorrida. De facto, o recurso de constitucionalidade não prescinde, em ordem ao seu conhecimento, de um juízo prévio acerca da sua utilidade. O Tribunal Constitucional apenas pode proferir decisão de mérito se a mesma puder produzir um reflexo útil na causa em que a questão de constitucionalidade emerge. Um tal juízo não procede, no entanto, no caso em apreço porque a norma cuja inconstitucionalidade é suscitada não foi aplicada pelo Tribunal recorrido.
Quanto ao Recorrente B., a decisão recorrida limita-se a certificar a inadmissibilidade do recurso então tentado interpor para o Supremo Tribunal de Justiça, recusando, portanto, o respectivo conhecimento. Relativamente ao Recorrente A., o Tribunal recusou conhecer da inconstitucionalidade suscitada pelo facto de se tratar de questão nova, excedendo, por conseguinte, os poderes de cognoscibilidade daquela instância. Também por aqui se conclui, portanto, que o artigo 187.º do Código de Processo Penal (na redacção anterior) não foi aplicado pela decisão recorrida.
Não tendo o artigo 187.º do CPP sido aplicado pela decisão recorrida, resta concluir pela impossibilidade de conhecimento do recurso e, consequentemente, pela improcedência da reclamação.
III – Decisão
5. Face ao exposto, acordam, em conferência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) uc.
Lisboa, 5 de Julho de 2011. – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.