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Processo n.º 175/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
O Município de Ovar instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra A., Lda., pedindo que fosse declarada a resolução do contrato de compra e venda do lote 29 da “C.” ou, em alternativa, que fosse declarada a perda do direito de propriedade sobre o referido lote a favor do Autor e que a Ré fosse condenada a restituí-lo, com todas as benfeitorias que aí tivesse implantado, e que fosse ordenado o cancelamento do registo de propriedade a favor desta.
Por sentença proferida em 6 de Julho de 2010 foi a acção julgada procedente e, em consequência, declarou-se resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre Autor e Ré, reconhecendo-se ao Autor o direito de propriedade sobre o lote de terreno objecto de tal contrato, devendo a Ré restituir ao Município o referido imóvel e as benfeitorias aí implantadas, ordenando-se ainda o cancelamento do registo de propriedade da Ré sobre tal imóvel.
A Ré recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 1 de Fevereiro de 2011, negou provimento ao recurso.
Foi então interposto recurso para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
“A., L.DA, recorrentes nos autos em epígrafe, vem nos termos das disposições combinadas dos artigos 721.º - 3 do CPC, 70.º - 1/b), 75º-A e 76.º da Lei n.º 28/82, interpor recurso, do acórdão proferido nesta Relação, para o Tribunal Constitucional.
1.º - Pretende-se que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade dos artigos 10.º e 12.º do Regulamento de Venda e Condições de Ocupação dos Lotes de Terreno na Zona Industrial a Norte de Ovar – 2ª fase.
2.º - Tais normas foram aplicadas e fundamentaram a decisão ora recorrida.
3.º - Consideramos que tais normas são inconstitucionais por violarem o Princípio da Proporcionalidade – artigo 266.º - 2 da CRP.
4.º - Tal questão, a da inconstitucionalidade dessas normas, foi suscitada desde logo na nossa contestação, concretamente no artigo 53.º.”
Neste Tribunal foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso com os seguintes fundamentos:
“No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, da dimensão normativa arguida de inconstitucional pelo recorrente.
A Recorrente, segundo refere no requerimento de interposição de recurso, pretende que seja fiscalizada a constitucionalidade dos artigos 10.º e 12.º do Regulamento de Venda e Condições de Ocupação dos Lotes de Terreno na Zona Industrial a Norte de Ovar – 2ª fase, por considerar que tais normas violam o princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 266.º, n.º 2, da CRP.
As referidas normas do Regulamento de Venda e Condições de Ocupação dos Lotes de Terreno na Zona Industrial a Norte de Ovar – 2ª fase têm o seguinte teor:
“(…)
Décima
O adquirente do lote obriga-se a ter a construção das instalações concluídas no prazo de dois anos a contar da data da celebração da escritura de compra e venda, devendo a laboração iniciar-se 120 dias após a conclusão das mesmas.
(…)
Décima segunda
O não cumprimento do prazo referido no artigo 10º ou sua prorrogação, nos casos em que for concedida, implicará reversão do lote para a Câmara, com todas as suas benfeitorias, se a Câmara, na sequência da análise da situação, concluir que a reversão constitui a solução mais adequada ao interesse Municipal.
(…)”.
Da leitura da decisão recorrida resulta, contudo, que a solução nela sustentada, não se apoiou no disposto nestes preceitos, mas sim no conteúdo do contrato outorgado entre as partes que reproduziu o seu conteúdo.
Foi a seguinte a fundamentação aduzida no Acórdão recorrido:
«V - A Mma. Juiz do Tribunal “a quo” no enquadramento jurídico que fez do contrato firmado entre Autor e Ré e do clausulado respectivo, designadamente, daquele que consta do aludido “Regulamento de Venda e Condições de Ocupação dos Lotes de Terreno na Zona Industrial a Norte de Ovar – 2ª fase” (doravante designado, tão-só, por “Regulamento”), entendeu estar-se perante um contrato de compra e venda sujeito a condição resolutiva, condição esta que considerou estar plasmada no estipulado nas cláusulas 10º e 12º do Regulamento.
O STJ, em caso com patente afinidade com aquele que está aqui em análise, de contrato com cláusula de teor equivalente ao das referidas 10º e 12º do mencionado Regulamento, entendeu estar-se perante contrato de compra e venda com condição resolutiva.
Esta Relação, abordando situação idêntica àquela que se nos depara, entendeu que cláusula com conteúdo semelhante ao que ora está em análise, consubstanciava, não uma condição - em sentido próprio - do negócio, mas antes, «… uma cláusula visando convencionar a resolução do negócio, nos termos dos art.ºs 432 e seguintes do C. Civil...», considerando, entre o mais, que “... o acontecimento cujo desencadear envolva o cumprimento ou não cumprimento das prestações negociais de qualquer das partes não pode ser incluído na categoria legal de condição.”.
Quer-nos parecer que, podendo os contraentes, atenta a autonomia privada, estipular variadas condições, estas, se relacionadas com o cumprimento ou incumprimento de prestações contratuais, correspondem a cláusulas de resolução convencional.
Assim, no caso “sub judice” o incumprimento da obrigação do adquirente, prevista na cláusula 10º do Regulamento - ter a construção das instalações concluída no prazo de dois anos a contar da data da celebração da escritura de compra e venda, devendo a laboração iniciar-se 120 dias após a conclusão das mesmas permitiria, segundo a cláusula 12º, a reversão do prédio vendido à propriedade do vendedor, ora Apelado, ficando a efectivação desse direito apenas dependente de a Câmara Municipal de Ovar concluir que a reversão constituiria a solução mais adequada ao interesse municipal.
Não está em causa que é ao Autor - que pretende fazer-se valer do convencionado direito de reversão -, que compete o ónus da prova da verificação do circunstancialismo que permite o reconhecimento de tal direito (art.º 342º, nº 1, do CC).
Sucede que, ao contrário daquilo que o Tribunal “a quo” entendeu, a Apelante considera que se mostra cumprida a sua obrigação, pelo que, sustenta, não se pode dar como verificada a condição resolutiva.
A carência de razão deste entendimento da ora Apelante está bem explicitada no seguinte trecho da decisão recorrida: «No caso dos autos, está demonstrado que a Ré não edificou no lote transmitido pelo A. as instalações destinadas à sua laboração. Prova disso é a circunstância de ter solicitado licença para construir e, ainda, prorrogação do alvará sem que edificação alguma tenha resultado dessas formalidades, ao que parece por “problemas surgidos com o empreiteiro” (artº 36º da contestação).
A transmissão é de Março de 1998 e em Fevereiro de 2005 ainda a Ré andava a requerer junto da Câmara que lhe fosse concedido novo prazo para construção.
De modo que, as obras levadas a efeito no local, como alegado pela Ré e demonstrado (aterro, aplicação de tout venant, vedação com muros, instalação de energia eléctrica e água, coberto e arrumo para óleos), não são construção de instalações, muito embora o espaço seja utilizado no prosseguimento de actividades colaterais à prestação de serviços de transporte, objecto da Ré.».
Dos autos nada resulta que nos leve a concluir que as obras que acima se referiram terem sido efectuadas pela Ré, consubstanciam a construção que esta, nos termos do art.º 10º do Regulamento, se obrigou a fazer no prazo de 2 anos (prorrogável por mais 1 ano, se devidamente justificado) a contar da data da outorga da escritura de compra e venda (03/03/1998).
A conclusão que se deve tirar é antes, em face dos elementos que os autos transmitem, aquela que acima se disse ter a Mma. Juiz do Tribunal “a quo” extraído.
Refugia-se a Ré na circunstância de não ter sido ajustado qualquer valor mínimo de construção que permitisse agora afirmar, face ao que foi erigido, que essa obrigação de edificação não havia sido cumprida.
A aceitar-se esse entendimento, bastaria à Ré ter edificado, em prazo, o arrumo para óleos, para que se desse por satisfeita a obrigação.
Mas não se afigura ser esse o sentido e alcance que daria, nas circunstâncias em que contrataram Apelante e Apelado, um declaratário normalmente diligente, esclarecido, de boa fé, à obrigação que está expressa na cláusula 10º do Regulamento.
Vejamos.
Conforme resulta do Regulamento, os lotes de terreno a que o mesmo respeita destinam-se à construção de instalações. Têm, pois, tais lotes, esse destino específico, que está intimamente ligado às respectivas condições particulares de venda, cujo escopo é o de fomentar a instalação em Ovar de indústrias geradoras de postos de trabalho e riqueza.
É o que se diz na parte introdutória desse Regulamento aí se referindo, como forma de atingir o aludido fomento, fixar-se aos lotes um preço abaixo do seu valor (de mercado), o que é reforçado na cláusula 4ª, de onde consta: «A venda ou dação em pagamento dos lotes far-se-á em condições excepcionais de preço, abaixo do valor real, em função da sua localização e área, conforme tabela anexa».
E as instalações de uma empresa, designadamente, as de uma empresa de transportes de mercadorias, possuidora de veículos pesados para esse efeito, como é o caso da Ré Apelante (IV-3 e 4, supra), num lote com uma área de 1781 m2, é normal que, para além de outras edificações acessórias, possuam um edifício principal onde se localizem as instalações destinadas à guarda dos veículos e, eventualmente, a outras finalidades necessárias ao normal funcionamento de uma empresa (v.g., serviços administrativos).
É a construção desse tipo de instalações, de maior envergadura e de custo mais avultado, que, em princípio, dá maiores garantias de fixação geográfica das empresas adquirentes àquela “zona industrial” do Município, não se estranhando, pois, que na cláusula 14º, se haja estipulado que os lotes só poderiam ser transaccionados após a “construção das instalações”.
Nem se compreenderia que, se acaso as construções de que trata o Regulamento, fossem apenas do tipo das que a Ré efectuou, ou seja, em termos de edificação, a construção de uma cabine para energia eléctrica, de uns muros de vedação, de um coberto para recolha de viaturas, de um arrumo para óleos e de outro para peças e ferramentas, se concedesse o prazo de 2 anos, susceptível de ser prorrogado por mais 1 ano.
Explicitado, pois, o sentido que deve ser entendida, para um declaratário normal, posicionado nas circunstâncias em que a Ré contratou com o Autor, a construção de instalações que se exige no art.º 10º do Regulamento, diga-se que nos autos há elementos que denotam que a Apelante foi esse mesmo sentido que deu à expressão.
Neste âmbito, desde logo se assinala a referência que fazem os requerimentos da Ré dirigidos ao Autor para efeitos de licenciamento ou respeitando à matéria da reversão, à “Construção de Armazém” (cfr. doc de fls. 78), salientando-se o pedido efectuado em 25/2/2005, no sentido de “... poder requerer um novo licenciamento para edificar de vez e num prazo razoável que lhe seja concedido um armazém para armazenamento e assistência às viaturas de que depende a actividade da empresa...”.
E da informação nº 137/GAP/SP, o que consta, efectivamente, é que foi logo para a construção de um armazém que a Ré pediu licenciamento em 02.06.1998, tendo o respectivo projecto de arquitectura sido aprovado em 05.08.1999 e o pedido de licenciamento sido aprovado em 16.06.2000, estabelecendo-se 9 meses como prazo de conclusão da obra.
Acresce que a própria Ré alega na contestação (artºs 35º e 36º), que, tendo-lhe sido concedido o licenciamento pelo alvará n.º 272/01, “... por problemas surgidos com o empreiteiro que deveria executar tais obras as mesmas não foram executadas na íntegra.”.
Assim, as instalações que, no caso da Ré, caberia construir, nos termos e prazos previstos na cláusula 10º do Regulamento, seriam, precisamente, as do armazém que nunca veio a erigir e cujo licenciamento pediu logo em 1998.
[…]
Sustenta a Apelante, ainda, que estando a laborar no local já há mais de dez anos, tendo empregados ao seu serviço, é claramente uma violação do princípio da proporcionalidade - artigo 266.º -2 da CRP- optar-se pela resolução.
Mais precisamente, todavia, o que se alegou na contestação para sustentar a violação deste princípio, foi o seguinte (art.º 53º): «... interpretar-se os artigos 10.º e 12.º do Regulamento referido no sentido que é possível a reversão no caso de a compradora do lote não ter construído tudo o que se propusera, apesar de ter instalado aí uma actividade produtiva, dotando o lote de infra-estruturas e apoios que lhe permitem aí exercer a sua actividade, viola-se o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 266.º - 2 da CRP, sendo pois uma interpretação inconstitucional.».
Entendeu-se na sentença impugnada inexistir a violação de tal princípio, dizendo-se a esse propósito o seguinte: «... não colhe a invocação que faz a Ré da desconformidade do regulamento camarário com a Constituição por via de qualquer violação do princípio da proporcionalidade.
É que quando adquiriu o lote, o particular assumiu no negócio privado que este se regeria pelas cláusulas nele constantes e também pelas constantes do citado regulamento. Donde, aceitando adquirir o lote e nele construir as suas instalações no prazo fixado, assumiu uma obrigação singular e não lhe foi imposta qualquer regra administrativa cuja constitucionalidade venha esgrimir, designadamente para saber se basta a criação de postos de trabalho e de riqueza (quais, não refere) para ver preenchida uma condição negocial que aceitou num acordo livre de vontades.».
Parece-nos acertado este entendimento da Mma. Juiz do Tribunal “a quo” havendo que salientar, ainda, para reforçar a inexistência da violação do citado princípio, que o equilíbrio entre a “sanção” contratualmente estipulada e o incumprimento que lhe dá causa, também encontra conforto na circunstância de o Regulamento prever expressamente a compensação do adquirente revertido, através do pagamento do valor pelo qual haja sido efectuada a venda do lote e do valor das benfeitorias.”
O acórdão recorrido subscreveu o entendimento da sentença da 1.ª instância, segundo o qual a resolução do contrato de compra e venda resultou do funcionamento duma cláusula resolutiva inserida naquele contrato com o conteúdo dos questionados preceitos do Regulamento de Venda e Condições de Ocupação dos Lotes de Terreno na Zona Industrial a Norte de Ovar – 2ª fase, pelo que a solução adoptada pelo acórdão recorrido não resultou da aplicação desses preceitos, mas sim do princípio da eficácia dos contratos, segundo o qual as partes estão vinculadas às regras que livremente acordaram.
Não integrando, pois, esses preceitos regulamentares a ratio decidendi da decisão recorrida, o presente recurso carece de qualquer utilidade, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, uma vez que a decisão que fosse aqui proferida nunca seria susceptível de determinar uma reformulação do acórdão recorrido.
Por estas razões deve ser proferida decisão sumária de não conhecimento, nos termos previstos no artigo 78.º - A, n.º 1, da LTC.
A Recorrente reclamou desta decisão, expondo os seguintes argumentos:
Entendeu-se não conhecer do recurso por, sumariamente, se considerar que os preceitos regulamentares cuja constitucionalidade da sua interpretação a aqui recorrente punha em causa, não integravam a ratio decidendi da decisão recorrida.
Mais se entendeu que a resolução contratual operada resultou duma cláusula resolutiva inserida no contrato de compra e venda e não da aplicação dos preceitos do Regulamento de Venda e Condições de Ocupação dos Lotes de Terreno na Zona Industrial a Norte de Ovar –2.ª fase.
Com todo o respeito mas defender-se este entendimento é escancarar-se a porta à ausência de controlo da constitucionalidade.
Como explica o autor na p.i., artigo 13.º: “a escritura de compra e venda foi celebrada em estrito cumprimento do disposto no Regulamento Interno de Venda e Condições de ocupação dos Lotes de Terreno na Zona Industrial a Norte de Ovar, aprovado em reunião de Câmara de 15 de Setembro de 1994 e em sessão da assembleia Municipal realizada em 30 de Setembro do mesmo ano...”.
Em tal escritura (vide cópia da mesma junta com a p.i.) não consta qualquer cláusula resolutiva.
Remete-se sim “em tudo quanto estiver omisso” para “a legislação em vigor e as cláusulas do Regulamento atrás mencionado”. Defender-se o entendimento da douta decisão agora reclamada é considerar que o Regulamento deixa de ser um Regulamento Municipal para passar a ser um mero repositório de regras privadas dum negócio privado.
Com todo o respeito mas não há qualquer fundamento para tal.
A Câmara quando efectua a venda fá-lo, como o alegou em 13.º da p.i., no estrito cumprimento do disposto no Regulamento Interno de Venda e Condições de ocupação dos Lotes de Terreno na Zona Industrial a Norte de Ovar, é pois desprovido de fundamento vir agora dizer-se que afinal aquele Regulamento Municipal deixa agora de ser um Regulamento pelo simples facto de para ele remeter um contrato.
O próprio Município na sua p.i. deixa muito claro que actua na salvaguarda dum “interesse público” (artigo 16.º) e que a obrigação da reclamante em instalar no terreno uma unidade industrial resulta da “imposição de um acto com força normativa equiparada à lei – o Regulamento citado”.
Se toda a actuação do município resulta e é orientada por um Regulamento, se o munícipe quando contrata com o município o faz apoiado num Regulamento, não há qualquer fundamento para agora se dizer que já não é um Regulamento e sim apenas cláusulas dum contrato. Não estamos sequer perante um mero contrato privado, estamos sim perante um contrato que prossegue um fim público: o incremento da actividade industrial em Ovar. O município só vendeu àquele preço e naquelas condições porque queria incrementar a actividade empresarial.
E mesmo que, por mera hipótese que se não aceita, se entendesse que as normas do Regulamento passaram a ser meras cláusulas, nem mesmo assim se deveria negar o recurso à recorrente.
O Município, como supra se expôs, assenta a sua fundamentação no Regulamento. O alcance, a interpretação do Regulamento dita a interpretação das ditas cláusulas contratuais. Estamos perante um contrato que remete para o Regulamento, não se compreenderá, nem sequer foi alegado fundamento, para que as normas enquanto Regulamento se interpretem duma maneira e enquanto cláusulas dum contrato se interpretem doutra.
Por isso é crucial que, mesmo que estivéssemos perante um mero contrato privado, o TC afinal esclareça qual a interpretação constitucional das normas do Regulamento.
No artigo 53.º da nossa p.i. já então alegámos:
“Acresce que interpretar-se os artigos 10.º e 12.º do Regulamento referido no sentido que é possível a reversão no caso de a compradora do lote não ter construído tudo o que se propusera, apesar de ter instalado aí uma actividade produtiva, dotando o lote de infra-estruturas e apoios que lhe permitem aí exercer a sua actividade, viola-se o principio da proporcionalidade consagrado no artigo 266.º - 2 da CRP, sendo pois uma interpretação inconstitucional.”
Assim contrariamente ao decidido na douta decisão reclamada a “ratio decidendi” da decisão recorrida é a interpretação do Regulamento, concretamente do que se alegou no transcrito artigo 53.º da p.i.
É pois legitimo direito da reclamante que se comprometeu a cumprir com o Regulamento, obter decisão deste alto Tribunal, garante da Constituição, no sentido de saber se a interpretação dada aos artigos 10.º e 12.º do Regulamento Interno de Venda e Condições de ocupação dos Lotes de Terreno na Zona Industrial a Norte de Ovar cumpre com as normas constitucionais.
O Tribunal quando se pronunciou sobre o pedido do município julgou-o procedente em função do estipulado no Regulamento, nomeadamente nos artigos 10.º e 12.º. Mesmo que os consideremos meras cláusulas dum contrato privado elas não deixam de ser normas dum Regulamento. Se a interpretação dada a essas normas é inconstitucional a interpretação dada às ditas cláusulas pelo Tribunal é incorrecta, como tal a decisão do TC tem influência na decisão do Tribunal.
Fundamentação
A Recorrente pediu a fiscalização de constitucionalidade dos artigos 10.º e 12.º do Regulamento de Venda e Condições de Ocupação dos Lotes de Terreno na Zona Industrial a Norte de Ovar, emitido pela Câmara Municipal de Ovar.
A decisão recorrida decretou a resolução de um contrato de compra e venda de prédio urbano outorgado entre o Município de Ovar, como vendedor, e a Recorrente, como compradora, tendo considerado que a remissão constante de cláusula inserida naquele contrato para o disposto no referido Regulamento, resultava na existência duma cláusula resolutiva, de origem convencional, com o conteúdo dos questionados preceitos regulamentares. E foi por ter considerado que se verificava a situação prevista nessa cláusula resolutiva que decretou resolução do referido contrato.
Conforme se disse na decisão reclamada, a solução adoptada pelo acórdão recorrido resultou, pois, do princípio da eficácia dos contratos, segundo o qual as partes estão vinculadas às regras que livremente acordaram, e não da aplicação dos preceitos regulamentares cuja constitucionalidade foi questionada, apesar do seu conteúdo ser precisamente o daquelas regras convencionadas, atenta a remissão que o contrato efectuava para o Regulamento.
Não tendo a decisão recorrida o seu fundamento na aplicação directa dos referidos preceitos regulamentares, mas sim no seu conteúdo, enquanto integrante, por remissão, de um contrato, e não podendo ser objecto idóneo do recurso constitucional as regras de origem contratual, cuja força vinculativa resulta da autonomia privada, revela-se correcto o não conhecimento do mérito do recurso, pelo que deve ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A., Lda.
Custas do recurso pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios indicados no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa 4 de Maio de 2011.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.