Imprimir acórdão
Processo n.º 124/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, foi proferida a seguinte decisão sumária:
“I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, da decisão proferida pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, em 6 de Dezembro de 2010 (fls. 111 a 117), que indeferiu reclamação de despacho do Juiz-Relator junto da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 7 de Julho de 2010 (fls. 105), que, por sua vez, rejeitou recurso ordinário interposto para o Supremo Tribunal de Justiça.
Após notificado, pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (fls. 158), para aperfeiçoar o requerimento de interposição de recurso, o recorrente esclareceu que pretende que seja julgada a inconstitucionalidade da norma extraída do “artigo 5º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de julgar inaplicáveis as normas constantes dos artigos 432°, n°1, alínea b) e 400°, n°1, alínea f), com a redacção que lhes era atribuída pela lei 59/98, de 25 de Agosto, a processos que, embora sejam decididos em 1ª instância em data posterior à entrada em vigor da lei 48/2007, de 28 de Agosto, tenham tido o seu início, bem como a constituição de arguido, em data anterior à entrada em vigor desta lei, por violação dos artigos 13°, nº1, 18°, nº 2 e 3, 29°, n°4 e 32°, nº 1, todos da Constituição da República Portuguesa”.
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Desde a entrada em vigor da reforma processual penal decorrente da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, a questão normativa ora em apreço já foi alvo de inúmeras decisões por parte do Tribunal (cfr. Acórdãos n.º 263/09, n.º 551/09, n.º 645/09, n.º 125/10, n.º 174/10, n.º 276/10, n.º 277/10, n.º 308/10, n.º 314/10, n.º 359/10 n.º 471/10, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), sempre no sentido da não inconstitucionalidade de interpretações normativas dos artigos 5º, n.º 2, alínea a), 400º, n.º 1, alínea f), e 432º, n.º 1, todos do CPP, similares à que foi aplicada nos autos recorridos. Parte dessa jurisprudência constitucional consolidada é, aliás, citada pela própria decisão recorrida (cfr. fls. 115), com vista a sustentar a decisão de não inconstitucionalidade.
Em todos estes acórdãos, tem vindo o Tribunal Constitucional a esclarecer que o direito fundamental ao recurso (artigo 32º, n.º 1, da CRP) não é configurável como um direito ilimitado nem sequer pressupõe um duplo grau de jurisdição, sendo constitucionalmente admissível que o legislador ordinário promova outros valores constitucionais – tais como, a celeridade processual e a protecção dos direitos contrapostos das vítimas de crimes –, limitando o acesso à última instância de recurso.
A título de exemplo, cite-se o Acórdão n.º 551/09:
«7. O Tribunal Constitucional tem uma jurisprudência consolidada no sentido de que no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição se consagra o direito ao recurso em processo penal, com uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido. Mas também que a Constituição não impõe, directa ou indirectamente, o direito a um duplo recurso ou a um triplo grau de jurisdição em matéria penal, cabendo na discricionariedade do legislador definir os casos em que se justifica o acesso à mais alta jurisdição, desde que não consagre critérios arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados. E que não é arbitrário nem manifestamente infundado reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada (Cfr., entre muitos, a propósito da anterior redacção da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na peculiar interpretação acima referida do que era a pena aplicável, acórdão n.º 64/2006 (Plenário), publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Maio de 2006). Essa limitação do recurso apresenta-se como “racionalmente justificada, pela mesma preocupação de não assoberbar o Supremo Tribunal de Justiça com a resolução de questões de menor gravidade (como sejam aquelas em que a pena aplicável, no caso concreto, não ultrapassa o referido limite), sendo certo que, por um lado, o direito de o arguido a ver reexaminado o seu caso se mostra já satisfeito com a pronúncia da Relação e, por outro, se obteve consenso nas duas instâncias quanto à condenação” (citado Acórdão n.º 451/03).
8. Porém, o problema colocado não é exactamente este, mas o de saber se é constitucionalmente admissível suprimir, mediante a aplicação da lei nova a processos pendentes, um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que era consentido pela lei vigente no momento em que o processo foi instaurado.
O artigo 5.º do Código de Processo Penal institui a regra de que a lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior (tempus regit actum). Com duas excepções (n.º 2 do artigo 5.º). A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua entrada em vigor quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar: a) agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; b) quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.
O Tribunal tem admitido que a questão de constitucionalidade dos regimes de aplicação da lei processual penal no tempo pode e deve ser vista à luz do princípio constitucional da aplicação da lei mais favorável ao arguido constante do nº 4 do artigo 29º da nossa Lei Fundamental. Segundo esta jurisprudência, o domínio deste princípio não se restringe à aplicação da lei penal substantiva, antes deverá ser alargado até ao ponto de serem colocadas sob a sua protecção certas situações em que esteja em causa uma norma processual penal de natureza material. A projecção dessas normas no processo e na responsabilização penal do arguido não pode deixar de ter-se por intimamente conexionada com o próprio princípio da legalidade e, consequentemente, com a garantia por ele conferida.
(…)
Essa norma elege como critério de determinação da lei aplicável em matéria de admissibilidade de recurso de acórdão das relações para o Supremo o momento em que tenha sido proferida a sentença de 1ª instância que seja confirmada pelo acórdão de que se pretende recorrer. Foi este, aliás, o critério adoptado no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/2009, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República, I Série, de 19 de Março de 2009, embora aplicado a uma situação inversa daquela que agora está em consideração (a decisão de 1ª instância era anterior à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007).
Este critério não pode ser censurado por abrir a porta aos riscos que levam a estender as consequências do princípio constitucional da legalidade penal a certas normas de processo penal respeitantes à situação processual do arguido. Na verdade, só com a sentença fica definida a resposta judicial à pretensão punitiva do Estado. O direito de recorrer, nos termos da lei, das decisões que lhe forem desfavoráveis que passa a integrar o estatuto do arguido (alínea i) do n.º 1 do artigo 61.º do CPP) só se define perante uma concreta decisão que lhe seja desfavorável. É perante o conteúdo desta que se fixam os elementos determinantes para a formulação do juízo de interessado sobre o exercício do direito de recorrer, os pressupostos e o âmbito possível do recurso. Até aí o direito de recorrer, o âmbito do recurso e a sua extensão possível na hierarquia dos tribunais constituem uma mera potencialidade no estatuto do sujeito processual, que se ignora se virá a concretizar-se e em que termos. Perante essa situação de incógnita – para o arguido, para os restantes sujeitos processuais, para o poder legislativo –, não se verificam as razões que levam a proibir soluções legislativas que comportem o risco de um possível arbítrio ou excesso do poder estatal, diminuindo o legislador (ou gerando objectivamente a suspeita de diminuir), de forma direccionada e intencional, o nível de protecção da liberdade e dos direitos fundamentais de defesa dos arguidos em processos concretos já iniciados.
Por outro lado, a eleição do momento em que é proferida a sentença condenatória como factor de determinação do regime de admissibilidade dos recursos para o Supremo acautela suficientemente os direitos de defesa, também na perspectiva de que o arguido é livre de escolher e adequar a sua estratégia processual aos meios legais existentes no momento em que exerce determinado direito. Só perante a sentença o arguido saberá se dela discorda e em que termos pode ou lhe convém atacá-la. Se a lei vigente nesse momento lhe permitir levar o recurso até ao Supremo Tribunal, é legítimo que opte por reservar a discussão de algum aspecto da questão ou a apresentação de determinados argumentos para a fase de recurso perante o Supremo. Ora, a fixação da extensão admissível dos recursos de acordo com a lei vigente no momento da sentença de 1ª instância preserva integralmente essa liberdade e a tutela da confiança no seu exercício, que a escolha da lei vigente em momento posterior, designadamente o do acórdão da relação, poderia vulnerar.
Mas só isso pode reclamar-se em nome da preservação dos direitos de defesa, não sendo legítimo que o arguido confie em que o sistema de recursos vigente no momento em que o processo é instaurado se mantenha inalterado. Não se concebe a existência de estratégia processual que venha a ser comprometida pela alteração do regime de recursos antes de ter sido proferida a decisão que se pretende atacar, porque só perante esta surge, em concreto, o interesse em recorrer e se define o seu âmbito possível.»
O supra referido acórdão foi, aliás, votado favoravelmente pela Relatora, na 3ª Secção deste Tribunal, não se vislumbrando qualquer razão superveniente para modificação daquele entendimento que é integralmente transponível para os presentes autos.
A questão a decidir afigura-se, assim, como manifestamente simples, para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 78º-A da LTC. Consequentemente, não se julga inconstitucional a norma extraída do “artigo 5º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de julgar inaplicáveis as normas constantes dos artigos 432°, n°1, alínea b) e 400°, n°1, alínea f), com a redacção que lhes era atribuída pela lei 59/98, de 25 de Agosto, a processos que, embora sejam decididos em 1ª instância em data posterior à entrada em vigor da lei 48/2007, de 28 de Agosto, tenham tido o seu início, bem como a constituição de arguido, em data anterior à entrada em vigor desta lei”.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, pelos fundamentos supra expostos, decide-se não conceder provimento ao presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.”
2. Inconformado com a referida decisão, o recorrente veio reclamar, nos termos que ora se resumem:
“(…)
Não obstante, entende a arguido/ recorrente, s.m.o., que o acórdão uniformizador, na sua parte decisória final ou estatui “( …) que confirme decisão de 1ª instância anterior àquela data (…) – colide frontalmente com os princípios constitucionais da igualdade, previsto no artigo 13º, n.º1 da C.R.P., da aplicação da lei penal favorável, previsto no artigo 29º, n.º4 da C.R.P., da mínima restrição dos direitos, liberdades e garantias, previsto no artigo 18º, n.º2 e 3 da C.R.P., e com os direitos de defesa do arguido em processo penal, in casu, o recurso, consagrado no artigo 32º, n.º1 da C.R.P., este último visto em conjugação com o princípio da aplicação da lei penal mais favorável, da proibição da retroactividade desfavorável e imposição da retroactividade favorável, e com o princípio da igualdade, fazendo uma interpretação incorrecta do artigo 5º n.º2, alínea a) do C.P.Penal e que, repita-se, salvo melhor opinião, se afigura inconstitucional por violação dos preceitos constitucionais citados pelas razões que infra se exporão.
(…)
É indesmentível que a aplicação da lei nova, conforme sustenta até o acórdão uniformizador que vimos citando, lei essa que é posterior à constituição do recorrente como arguido, momento que achamos relevante para efeitos de aplicação da norma processual material mais favorável, na esteira do pensamento dos Conselheiros SANTOS CABRAL e OLIVEIRA MENDES, e dos professores GOMES ANOTILHO e VITAL MOREIRA, vem agravar retroactivamente a sua situação jurídico-processual, vedando-lhe um grau de recurso que anteriormente lhe era reconhecido, Porque assim é, impõem-se a aplicação do antigo artigo 400.º, n.º 1, alínea f) e artigo 432.º, n.º1, alínea b), da redacção anterior à lei n.º 48/2007, de 28 de Agosto, por forma a cumprir-se os comandos constitucionais.
A aplicação dos artigos citados, na redacção anterior à lei 48/2007, de 28 de Agosto, impõe-se ainda para total cumprimento ao princípio da igualdade, entre nós, consagrado no artigo 13.º, n.º1 da C.R.P. Dispõe o preceito constitucional que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”. O entendimento sustentado no acórdão uniformizador 4/2009, salvo melhor opinião, vem colidir também como este princípio constitucional.
(…)
Esta é a solução preconizada pelo Juiz Conselheiro OLIVEIRA MENDES que, no seu voto de vencido aposto ao acórdão uniformizador n.º 4/2009, afirma que “o direito ao recurso, como direito fundamental de defesa que é, nasce, pois, pelo menos, no momento em que o arguido é como tal constituído (…)”, pelo Conselheiro SANTOS CABRAL que, também em voto de vencido por si lavrado ao uniformizador que vimos citando, refere “o direito a recorrer não nasce pelo facto de, em concreto, se recorrer de uma determinada decisão. Ele constava já do estatuto do arguido desde o momento da sua constituição como tal e pelo simples facto de o ser”. Esta solução era também já sustentada pelos ilustres constitucionalistas GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA que defendiam que “Todo o feixe de direitos inseridos no direito constitucional de defesa deve ser posto em acção pelo menos a partir do momento em que o sujeito assume a qualidade de arguido”.
Pelo exposto, defende-se que o acórdão uniformizador nº 4/2009, na interpretação que fez ao artigo 5º, nº2, alínea a) do C.P.Penal, viola o princípio constitucional da igualdade e posterga os direitos de defesa do arguido constitucionalmente consagrados. Será correcta e conforme à constituição a interpretação do artigo 5º, nº2, alínea a) do C.P.Penal, que determine que “nos termos dos artigos 432º, nº 1, alínea b) e 400º, nº 1, alínea f), do CPP, na redacção anterior à entrada em vigor da Lei 48/2007, de 29 de Agosto, é recorrível o acórdão condenatório proferido, em recurso, pela relação, após a entrada em vigor da referida lei, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão superior a 8 anos, que confirme decisão de 1ª instância, anterior ou posterior àquela data, contando que a constituição de arguido no processo seja anterior àquela data.
(…)”.
3. Após notificação para efeitos de resposta, o Ministério Público pronunciou-se no seguinte sentido:
“(…)
2º
Com base na jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional sobre tal matéria, que sempre se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade, a questão foi considerada simples.
3.º
O afirmado pelo recorrente na reclamação, em nada abala os fundamentos da decisão reclamada e da jurisprudência que lhe subjaz.
4.º
Efectivamente, vindo invocada a violação dos artigos 13.º, n.º 1, 18.º, n.ºs 2 e 3 e 29.º, n.º 4, da Constituição, para além do artigo 32.º, n.º 1, os Acórdãos n.ºs 263/2009 e 551/2009 (referidos na decisão) pronunciaram-se sobre tal matéria.
5.º
Nesse sentido, no Acórdão n.º 125/2010 (também mencionada na decisão), referindo-se àqueles dois arestos, diz-se o seguinte:
“Ao considerar a questão da aplicação retroactiva de normas a recursos em processo-crime pendentes, o Tribunal Constitucional já ponderou os problemas suscitados pelo princípio da confiança, pelo princípio da igualdade e pelo princípio da restrição retroactiva de direitos fundamentais”.
6.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Ao longo da reclamação deduzida, o recorrente persiste em defender o seu entendimento acerca da correcta interpretação das normas de natureza infra-constitucional que regem a sucessão no tempo do regime dos recursos penais. Sucede, porém, que não cabe a este Tribunal determinar qual a interpretação mais correcta daquelas normas, mas tão-só ajuizar da inconstitucionalidade da precisa interpretação normativa adoptada pelo tribunal recorrido.
Quanto a esse aspecto, a decisão sumária é claríssima, evidenciando a pré-existência de uma jurisprudência consolidada neste Tribunal acerca da não inconstitucionalidade da interpretação normativa objecto do presente recurso, não tendo o recorrente trazido aos autos quaisquer argumentos adicionais que lograssem alterar a posição deste Tribunal, que já apreciou, por inúmeras vezes, idênticos argumentos aos ora aduzidos, sempre no sentido da sua improcedência.
III – Decisão
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 29 de Abril de 2011.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.