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Processo n.º 228/10
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. Por sentença proferida em 26 de Outubro de 2009 no Tribunal do Trabalho de Setúbal, foi decidido julgar inconstitucional a norma constante da alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º7/2009 de 12 de Fevereiro (que aprovou a revisão do Código do Trabalho), na redacção conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009 de 18 de Março de 2009 e, em consequência, não aplicar as normas do artigo 273º n.º 1 alíneas a), b), j) e n) em conjugação com o artigo 671.º do Código do Trabalho, na redacção da Lei n.º 99/2003 de 27 de Agosto. Diz a decisão:
«A questão que cumpre elucidar e decidir previamente, neste recurso prende-se com a inconstitucionalidade do procedimento contraordenacional, atenta também a inconstitucionalidade da norma vertida na al. e) do nº 3 do artigo 12°, na versão constante da Declaração de Rectificação nº 21/2009 de 18 de Março de 2009.
Nos presentes autos estava em causa a prática pelas recorridas em comparticipação, de uma contra-ordenação pela violação do disposto nos artigos 273.°, n.º 1, e 671.°, nº 1, ambos do Código de Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto.
No referido artigo 273.°, n.º 1, dispunha-se que “o empregador é obrigado a assegurar aos trabalhadores condições de segurança, higiene e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho”. E o artigo 671.º, n.º 1, estatuía que “constitui contra-ordenação muito grave a violação do disposto no artigo 273.°, na alínea b) do nº 1 do artigo 274.° e nos nºs 1, 2 e 3 do artigo 275.°”.
O primeiro dos citados preceitos consagrava um dever do empregador nas relações laborais, enquanto o segundo tipificava como contra-ordenação muito grave a violação desse dever.
O artigo 12.°, n.º 1, a), da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, revogou a referida Lei n.º 99/2003, tendo, contudo, o n.º 3, do mesmo artigo, excepcionado que “a revogação dos preceitos a seguir referidos do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, produz efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regular a mesma matéria: a) Artigos 272.° a 312.°, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, acidentes de trabalho e doenças profissionais, na parte não referida na actual redacção do Código”.
No dia 18 de Março de 2009 foi publicada a Declaração de Rectificação nº 21/2009, na qual se declarou que a Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprova a revisão do Código do Trabalho, publicada no Diário da República, 1ª Série, n.º 30, de 12 de Fevereiro de 2009, havia saído com inexactidões que importava rectificar. Assim, e em conformidade com esta declaração de rectificação, e ao que aqui nos interessa, “na alínea a) do n.º 3 do artigo 12.°, “Norma revogatória”, onde se lê: “a) Artigos 272.° a 312.°, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, acidentes de trabalho e doenças profissionais, na parte não referida na actual redacção do Código;”deve ler-se: “a) Artigos 272.° a 280.° e 671.°, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, na parte não referida na actual redacção do Código...”.
Nos termos da Lei nº 74/98, de 11 de Novembro (sobre a publicação, a identificação e formulário de diplomas), dispõe o artigo 5.°, o seguinte:
“1 - As rectificações são admissíveis exclusivamente para correcção de lapsos gramaticais, ortográficos, de cálculo ou de natureza análoga ou para correcção de erros materiais provenientes de divergências entre o texto original e o texto de qualquer diploma publicado na 1.ª série do Diário da República e são feitas mediante declaração do órgão que aprovou o texto original, publicada na mesma série.
2 - As declarações de rectificação devem ser publicadas até 60 dias após a publicação do texto rectificando.
3 - A não observância do prazo previsto no número anterior determina a nulidade do acto de rectificação.
4 - As declarações de rectificação reportam os efeitos à data da entrada em vigor do texto rectificado.”
Se a redacção original da Lei n.º 7/2009 revogava imediatamente a tipificação, como contra-ordenação, da inobservância pelo empregador do dever de assegurar aos trabalhadores condições de segurança, higiene e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho, constante do Código do Trabalho de 2003, a redacção resultante da rectificação operada com a Declaração n.º 21/2009 diferia essa revogação para momento posterior (quando entrasse em vigor o novo diploma que iria reger essa matéria), mantendo entretanto vigente a punição, como contra-ordenação, da violação daquele dever do empregador.
Conforme resulta do debate parlamentar que antecedeu a aprovação da referida Declaração (vide a acta n.º 84/X148, da Comissão Parlamentar de Trabalho, Segurança Social e Administração Pública, acessível em www.parlamento.pt), a mesma visou colmatar um esquecimento do legislador da lei rectificada e não corrigir qualquer lapso material de redacção ou erro na publicação, pelo se traduziu no preenchimento duma lacuna legislativa involuntária, visando manter a tipificação duma determinada conduta como contra-ordenação após essa tipificação ter sido eliminada por lapso legislativo.
Na verdade, considerando os efeitos retroactivos das Declarações de Rectificação (artigo 5.°, n.º 4, da Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro), verificamos que, no presente caso, a rectificação da redacção da alínea a), do n.º 3, do artigo 12.°, da Lei n.º 7/2009, resulta na manutenção em vigor, sem qualquer hiato, da tipificação como contra-ordenação constante do artigo 671.°, n.º 1, do Código de Trabalho de 2003, das condutas previstas no seu artigo 273.°, n.º 1, apesar da revogação genérica deste diploma efectuada pelo artigo 12.°, n.º 1, a), da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro.
Exposta a questão de fundo nestes termos, impõe-se decidir tendo como pano de fundo a decisão do Tribunal Constitucional vertida no Acórdão n.º 490/2009
(…)
Da análise do acórdão supra mencionado retira-se que vigora em matéria contra-ordenacional, tal como em matéria penal, no domínio da sucessão de leis, a regra da imposição da aplicação da lei mais favorável (artigo 3.°, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82), em obediência a uma ideia de desnecessidade de intervenção destes instrumentos sancionatórios, o acto legislativo de descontra-ordenação compromete o Estado perante os cidadãos, no sentido de que já não serão sancionados os respectivos comportamentos, mesmo que praticados em data em que tal punição se encontrava prevista na lei.
E este compromisso não pode ser quebrado, apesar do Estado verificar que se equivocou ao abandonar o sancionamento como contraordenação daquelas condutas, em defesa da fiabilidade da actividade de um Estado de direito democrático.
Ora, da redacção rectificada da alínea a), do n.º 3, do artigo 12.°, da Lei n.º 7/2009, resulta a manutenção em vigor, sem qualquer hiato, da tipificação como contra-ordenação constante do artigo 671.°, n.º 1, do Código de Trabalho de 2003, das condutas previstas no seu artigo 273.°, n.º 1, retirando, assim, qualquer efeito à descontra-ordenação operada pela redacção primitiva do referido artigo 12.°, n.º 1 a) e n.º 3, a), o que viola o principio da segurança jurídica, inerente ao modelo de Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.°, da C.R.P.
O Tribunal Constitucional pronunciou-se pela inconstitucionalidade, por violação do princípio da segurança jurídica, inerente ao modelo do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.°, da C.R.P., da norma constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 12.°, do Código do Trabalho, na redacção conferida pela Declaração de Rectificação n.º 2112009, de 18 de Março de 2009, posição que sufragamos por inteiro.
Decisão:
Em face do que acima ficou escrito, o Tribunal entende ser inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica (está, portanto, em causa, uma inconstitucionalidade em sentido material) a norma da alínea e) do n.º3 do art. 12.º, na versão introduzida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009 de 18.03 e, em consequência, decide não aplicar ao caso concreto as normas do art. 273.º, n.º 1 als. a), b), j) e n) em conjugação com o art. 671.º do C.T. na redacção da Lei n.º 99/2003 de 27 de Agosto».
2. É desta decisão que o Ministério Público interpõe recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC). Recebido o recurso, o Ministério Público alegou e concluiu:
«1. A Lei nº 74/98, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 2/2005, de 24 de Janeiro, nº 26/2006, de 30 de Junho e nº 42/2007, de 24 de Agosto, define e circunscreve rigorosamente o âmbito em que podem ser feitas rectificações a diplomas legais.
2. Subjacente, a um tal quadro jurídico, está a preocupação de assegurar que se não alterem diplomas fora do quadro definido pelos requisitos constitucionais e legais que legitimem uma tal alteração.
3. A Declaração de Rectificação nº 21/2009, no entanto, procedeu a alterações substanciais no texto do diploma que, aparentemente, vinha rectificar (Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprovou o novo Código do Trabalho), designadamente “recuperando” matéria contra-ordenacional que deixara, entretanto, de vigorar no ordenamento jurídico, por força da versão inicial da referida Lei.
4. Na verdade, relativamente ao presente recurso, havia contra-ordenações de natureza laboral, que se encontravam contempladas no Código de Trabalho de 2003, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto.
5. Posteriormente, certos factos, por força da Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprovou o actual Código do Trabalho, na sua versão original (cfr. art. 12, nº 1, alíneas a) e b) da lei preambular que aprovou o novo Código do Trabalho), deixaram de ser considerados “ilícitos”, não podendo, portanto, nenhum Tribunal, ou entidade competente, proceder contra-ordenacionalmente com base nesses factos, após a publicação daquela Lei.
6. Com efeito, nos termos do art. 12, nº 1, alínea a), da versão original da Lei 7/2009, o Código de Trabalho de 2003 foi revogado.
7. No entanto, no elenco das excepções, previstas no nº 3, alínea a), deste mesmo art. 12º, excepcionaram-se expressamente os arts. 272º a 312º, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, do Código de Trabalho de 2003 – aprovado pela Lei 99/2003, devendo, em consequência, a revogação destes preceitos apenas produzir efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regulasse a mesma matéria.
8. Não se fazia, contudo, qualquer referência, na mesma disposição, ao art. 671º do referido Código, que considerava os factos previstos no art. 273º do mesmo diploma como constituindo uma contra-ordenação muito grave, pelo que tal preceito ficou abrangido pela revogação genérica do Código de Trabalho, efectuada pelo art. 12º, nº 1, alínea a), da Lei 7/2009.
9. Num terceiro momento, houve, finalmente, uma “inovação” incriminatória (através da repristinação de normas), por meio de uma “rectificação” retroactiva (cfr. alterações introduzidas ao art. 12º, nº 3, alínea a) da lei preambular que aprovou o novo Código do Trabalho, pela Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março).
10. Ora, uma tal actuação do legislador acaba por infringir, inapelável e negativamente, os princípios da não retroactividade da lei penal (e contra-ordenacional), da igualdade e da segurança jurídica, protegidos pela Constituição da República Portuguesa (cfr. artigos 9º, alínea b), 13º e 29º, nºs 1, 3 e 4 do texto constitucional).
11. Na verdade, a pretensa “rectificação”, com a vultuosa dimensão da que foi efectuada pela Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março de 2009, ultrapassa largamento o âmbito de aplicação que a Constituição autoriza e que a lei rigorosamente delimita para este efeito.
12. Deve, pois, julgar-se inconstitucional a norma vertida na alínea a), do nº 3, do artigo 12º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, na versão constante da Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março de 2009, por violação dos arts. 112º, nº 1, 161º, alínea c), 166º, nº 3 e 168º, nºs 1 e 2 da Constituição.
13. Crê-se, pois, de manter o juízo de inconstitucionalidade feito pelo Tribunal a quo, com as consequências legais daí decorrentes»
3. A recorrida A., S.A., apresentou alegação, tendo concluído:
«19. Deve manter-se o juízo de inconstitucionalidade feito pelo Tribunal “ a quo” porquanto:
20. A Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março de 2008, ultrapassa notoriamente o âmbito da aplicação que a Constituição autoriza e que a lei rigorosamente delimita para este efeito.
21. Foram assim violados os princípios da não retroactividade da lei penal (e contraordenacional), da igualdade e da segurança jurídica, previstos e regulados pela Constituição da República Portuguesa (cfr. artigos 9°, alínea b), 13.° e 29°, n.ºs 1, 3 e 4 do texto constitucional.
22. Por consequência só pode julgar-se inconstitucional a norma vertida na alínea a), do n.º 3, do artigo 12.° do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, na versão constante da Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março, por violação dos artigos 112.°, n.º 1, 161°, alínea c), 166°, n.º 3 e 168°, nºs 1 e 2 da Constituição».
4. Também a recorrida B., SA alegou e concluiu:
«- Só é possível rectificar diplomas legislativos “para correcção de lapsos gramaticais, ortográficos, de cálculo ou de natureza análoga ou para correcção de erros materiais provenientes de divergências entre o texto original e o texto de qualquer diploma legal publicado na 1ª Série do Diário da República e são feitos mediante declaração do órgão que aprovou o texto original, publicado na mesma série”;
- A Declaração de Rectificação n.º 21/2009, na parte que visa suprimir invocadas “inexactidões” constantes do artigo 12.º da Li n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, é manifestamente inconstitucional, pois extravasa claramente os limites referidos».
II Fundamentação
5. Impõe-se, em primeiro lugar, delimitar o objecto do recurso.
O Tribunal de Trabalho de Setúbal julgou inconstitucional a norma constante da alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro, na redacção que lhe foi conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009 de 18 de Março, embora na sentença tenha sido escrito 'alínea e)' do mesmo preceito. Não obstante, a referência à alínea e) constitui um lapso manifesto, aliás repetido pelo Ministério Público no requerimento de interposição do recurso. Nos presentes autos estava em causa a prática pela recorrida de uma contra-ordenação pela violação do disposto nos artigos 273.º n.º 1 e artigo 671.º nº 1, ambos do Código de Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/2003 de 27 de Agosto. É a alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro que diz respeito à revogação dessas normas e não a alínea e) do mesmo número e artigo. Tanto assim é que, na fundamentação da decisão, o Tribunal de Trabalho de Setúbal se refere correctamente à alínea a) do n.º 3 do referido artigo 12.º da Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro.
Deve, por isso, entender-se que o objecto do recurso é a norma constante da alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro, na redacção conferida pela Declaração de Rectificação nº 21/2009 de 18 de Março de 2009.
6. Cumpre ainda ter em conta uma outra questão de carácter prévio, que se prende com a jurisprudência que tem vindo a consolidar-se neste Tribunal sobre a ocorrência de falta de interesse na apreciação das questões de inconstitucionalidade relativas, como no caso em presença, à Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março de 2009, sempre que a decisão recorrida adopte outros fundamentos alternativos para afastar a aplicação da norma rectificada (neste sentido, Acórdãos n.º 469/2009, 576/09, n.º 584/09, n.º 187/10, n.º 269/2010, n.º 270/2010). Em todos estes Acórdãos, considerou-se haver falta de interesse na apreciação da constitucionalidade porque a decisão do tribunal a quo assentava em dois fundamentos alternativos, um dos quais estranho ao objecto do recurso e que, mantendo-se incólume fosse qual fosse o juízo sobre a questão de constitucionalidade, seria suficiente para assegurar o sentido da decisão recorrida. Assim, o Acórdão n.º 584/2009, referente à inconstitucionalidade da alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro na redacção introduzida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009:
«É indubitável que a decisão recorrida recusa validade à Declaração de Rectificação n.º 21/2009, publicada no Diário da República, I Série, de 18 de Março de 2009, por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque “não cumpre o disposto no artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro, na versão actualmente em vigor, sendo, por isso, ilegal”. Em segundo lugar (“ a tanto acresce”), por entender que “esta declaração de rectificação padece, também, de inconstitucionalidade, a saber: porque, a coberto de uma rectificação, se está a alterar a lei, violando, assim, o disposto no artigo 161º, alínea c), da Constituição da República; e porque qualquer rectificação que recupere uma censura contra-ordenacional que não figurava no texto publicado subverte a teleologia do artigo 29º, nº 4, da Constituição da República”.
Verifica-se, pois, que a decisão assenta em fundamentos alternativos, isto é, que a sentença recusou aplicar o conteúdo legal de que a Declaração de Rectificação pretendeu dotar a alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, com dois fundamentos, um dos quais estranho ao objecto do presente recurso e que, mantendo-se incólume fosse qual fosse o juízo sobre a questão de constitucionalidade, seria suficiente para assegurar o sentido da decisão recorrida.
Vem o Tribunal entendendo que, face à função instrumental do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, não deve conhecer dos recursos de constitucionalidade quando a decisão recorrida comporte fundamentos alternativos, um dos quais estranho ao objecto do recurso e suficiente para suportar o sentido da decisão.(…)
A esta luz, mesmo que se considere que, tal como a fundamentação da sentença se desenvolve, o juízo de inconstitucionalidade não constitui um mero obiter dictum, o presente recurso não teria utilidade processual, uma vez que, fosse qual fosse a decisão sobre a questão de constitucionalidade, nunca o tribunal a quo admitiria decidir a causa por aplicação do conteúdo da Declaração de Rectificação, uma vez que considera que essa rectificação não se conteve nos limites que a lei consente a tal figura».
Conforme este Tribunal tem repetidamente afirmado, o recurso de inconstitucionalidade tem uma função instrumental, pelo que o interesse em apreciar o seu objecto reside na virtualidade de o julgamento se projectar, de forma útil, na decisão recorrida, de modo a poder alterar a solução jurídica que se obteve no caso concreto. Como se afirmou no Acórdão n.º 498/96:
«o interesse no conhecimento de tal recurso há-de depender da repercussão da respectiva decisão na decisão final a proferir na causa. Não visando os recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso».
Carece, por isso, de utilidade o julgamento do recurso quando a solução a dar pelo Tribunal Constitucional à questão de inconstitucionalidade é insusceptível de se projectar na solução dada ao caso concreto, que se manterá inalterada qualquer que venha a ser o julgamento da questão jurídico-constitucional.
7. Diferente é, no entanto, o caso presente. O juiz do Tribunal de Trabalho de Setúbal desaplicou a norma constante da alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, na redacção conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março de 2009, com um fundamento apenas: a sua inconstitucionalidade: “por violação do princípio da segurança jurídica (está, portanto, em causa, uma inconstitucionalidade em sentido material)”.
Não tendo invocado um outro fundamento, não há motivo para concluir pela inutilidade do recurso. Refere o Acórdão n.º 112/84 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º vol., pp. 329-334): “o recurso é útil, subsistindo interesse processual na sua apreciação, quando a alegada inconstitucionalidade haja sido «determinante da decisão recorrida e que esta poderia ter sido outra se não houvesse previamente concluído por aquela inconstitucionalidade»”. Ora, de acordo com a fundamentação da sentença recorrida, a questão de inconstitucionalidade foi determinante na decisão recorrida, tendo sido o seu único fundamento, a sua única ratio decidendi. Nesse caso, a decisão de constitucionalidade é susceptível de influir no julgamento do caso concreto, pelo que a questão de inconstitucionalidade deverá ser conhecida.
8. O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar sobre a questão de inconstitucionalidade da norma constante da alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, na redacção conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009 de 18 de Março de 2009. Fê-lo nos Acórdãos n.ºs 490/2009 e 628/2009. Nos arestos citados o Tribunal decidiu julgar inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica, inerente ao modelo do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, a norma da alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro, na redacção que lhe foi conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009 de 18 de Março. Entendeu-se, essencialmente, que a retroactividade da norma cuja redacção foi alterada pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009 de 18 de Março, atentaria contra o princípio constitucional da segurança jurídica inerente ao Estado de direito democrático, já que a punição como contra-ordenação de comportamentos ocorridos anteriormente à sua tipificação legal, constituiria uma violação da confiança que os cidadãos devem depositar na ordem jurídica, compromisso que não podia ser quebrado apesar de o Estado verificar que se equivocou deixando de prever como contra-ordenação aquelas condutas.
9. Não obstante, a rectificação da redacção da alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009 através da Declaração de Rectificação n.º 21/2009 coloca um outro problema de carácter prévio. Com efeito, independentemente do seu sentido útil, a Declaração de Rectificação em causa não veio suprir um lapso gramatical, ortográfico, de cálculos ou de natureza análoga, nem um erro de publicação; visou-se, através de tal declaração, colmatar um esquecimento do legislador e provocar uma verdadeira alteração à norma da alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro. Tratou-se, afinal, da alteração substancial de um acto legislativo. No contexto do presente recurso, estava em causa a prática de uma infracção ao artigo 273.º, n.º 1 do Código do Trabalho, na redacção da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto. Tal infracção estava prevista como contra-ordenação grave no artigo 671.º, do Código do Trabalho, também na redacção da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto. Posteriormente, a Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, veio determinar, no artigo 12.º, n.º 1, alínea a), a revogação da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto. No entanto, no n.º 3, alínea a), deste mesmo artigo 12°, excepcionaram-se expressamente os artigos 272° a 312° sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, acidentes de trabalho e doenças profissionais do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, cuja revogação apenas deveria produzir efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que viesse regular a mesma matéria. Dispõe, com efeito, o artigo 12.º n.º 3, alínea a), da Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro:
Artigo 12.º
Norma revogatória
(…)
3 – A revogação dos preceitos a seguir referidos do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, produz efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regular a mesma matéria:
(…)
a) Artigos 272.º a 312.º, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, acidentes de trabalho e doenças profissionais, na parte não referida na actual redacção do Código;
Não se fez, contudo, qualquer ressalva quanto ao artigo 671° do referido Código do Trabalho, que qualificava os factos previstos no artigo 273.º, n.º 1 como contra-ordenação muito grave, pelo que o preceito foi abrangido pela revogação genérica do Código de Trabalho determinada no artigo 12° nº 1 alínea a) da Lei n.º 7/2009. Posteriormente, a Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março veio dizer:
«Para os devidos efeitos se declara que a Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprova a revisão do Código do Trabalho, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 30, de 12 de Fevereiro de 2009, saiu com as seguintes inexactidões, que assim se rectificam:
Na alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º, «Norma revogatória», onde se lê:
«a) Artigos 272.º a 312.º, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, acidentes de trabalho e doenças profissionais, na parte não referida na actual redacção do Código;
deve ler -se:
«a) Artigos 272.º a 312.º, e 671.º, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, acidentes de trabalho e doenças profissionais, na parte não referida na actual redacção do Código;» [sublinhado acrescentado]
Visou-se, assim, travar a imediata revogação do artigo 671.º do Código do Trabalho (que qualificava a infracção ao artigo 273.º n.º 1 como contra-ordenação muito grave), que a Lei n.º 7/2009 impunha, adiando a revogação desse preceito para uma data posterior, a da entrada em vigor do diploma que viesse regular a mesma matéria. O efeito jurídico inovador que a Declaração de Rectificação n.º 21/2009 quis introduzir na alínea a) nº 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro foi o de provocar a vigência do referido ilícito contra-ordenacional.
10. O referido efeito não pode, todavia, considerar-se como correcção de lapsos gramaticais, ortográficos, de cálculo ou de natureza análoga, nem de um erro material proveniente da divergência entre o texto original e o texto da publicação do diploma na 1ª série do Diário da República.
A Lei n.º 7/2009 teve origem na Proposta de Lei n.º 216/X. O artigo 11.º da referida Proposta, sob a epígrafe de “norma revogatória” corresponde à norma que veio depois a constituir o artigo 12.º da Lei n.º 7/2009. No texto proposto para esse artigo, sobre o qual incidiu a discussão e o subsequente procedimento legislativo, omitiu-se o elemento depois acrescentado na Declaração de Rectificação n.º 21/2009. De facto, a alínea a) do n.º 2 do artigo 11.º da referida proposta (que veio a corresponder à línea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009), previa:
« 2 - A revogação dos preceitos a seguir referidos do Código do Trabalho produz efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regular a mesma matéria:
(…)
a) Artigos 272.º a 312.º, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, acidentes de trabalho e doenças profissionais, na parte não referida na actual redacção do Código; »
Não foi, assim, incluído neste ponto o artigo 671.º do Código do Trabalho – menção depois acrescentada pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009 – sobre a manutenção em vigor da norma do artigo 671.º do Código do Trabalho até à entrada em vigor do diploma que viesse regular essa matéria nunca houve, por isso, discussão. O texto final decorrente desses trabalhos preparatórios (Decreto da AR n.º 262/X), publicado no Diário da Assembleia da República, (II série A, n.º 61, de 26/01/2009, p. 2 e ss.) corresponde, aliás, totalmente ao texto da Lei n.º 7/2009, tal como foi publicado no Diário da República, Iª Série, n.º 30, de 12 de Fevereiro de 2009. Assim, os elementos acrescentados à norma pela Declaração de Rectificação eram totalmente estranhos ao procedimento legislativo que deu origem à Lei n.º 7/2009.
A Declaração de Rectificação n.º 21/2009 não constituiu, por isso, uma rectificação, já que “a rectificação não se destina a alterar o original dos diplomas publicados, mas tão-só a corrigir os actos instrumentais de revelação desses mesmos diplomas, procurando repor a genuinidade dos textos originários, no exacto sentido em que foram remetidos para publicação” (Carlos Blanco de Morais, “Problemas relativos à Rectificação de actos legislativos dos órgãos de Soberania”, Legislação, n.º 11 (1994), p. 54). Neste caso, como se viu, o original do diploma coincidia com a versão publicada. O que ocorreu, sob o nome de “rectificação”, foi uma verdadeira alteração, aditamento ou suprimento de lacuna ao artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro. Perante essa possibilidade, “quaisquer erros de direito, de facto, ou mesmo de cálculo ou de redacção, respeitantes aos momentos formativos ou constitutivos do acto (os quais a doutrina denomina de «vícios patológicos») traduzem disfunções reportadas a um momento anterior à extrinsecação de um texto original, momento no qual o acto se pretende como definitivamente perfeito, embora não eficaz. Como tal deverá entender-se que qualquer falta referente a esse estádio anterior, preso à elaboração e controlo do acto, apenas poderá, independentemente da natureza do lapso, ser sanada através de novo acto normativo de idêntica natureza, e aprovado pelo procedimento previsto na Constituição ou na lei” (A. e op. cit., p. 37).
11. A alteração de um acto legislativo por um acto que não assume também a natureza de acto legislativo é proibida constitucionalmente. De facto, a Constituição assume o papel de “norma primária sobre a produção jurídica”, o que implica três importantes funções: a identificação das fontes de direito do ordenamento jurídico português, o estabelecimento de critérios de validade e eficácia de cada uma das fontes, e a determinação de competência das entidades que revelam normas de direito positivo (J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, p. 605). Jorge Miranda fala, neste contexto, de uma autêntica “reserva de Constituição no domínio das competências legislativas, das formas e da força de lei” (Manual de Direito Constitucional, Tomo V, 3ª Edição, Coimbra Editora, 2004, p. 197). Como refere este último autor, se é certo que “a Constituição permite ao legislador escolher o tempo e as circunstâncias da sua intervenção e determinar ou densificar o seu conteúdo, desde que respeitados os fins, os valores e os critérios constitucionais (…) já no plano orgânico-formal é completa a vinculação, sob um tríplice aspecto: o dos órgãos, o das formas, e o da força jurídica”.
O artigo 112.º da Constituição concretiza alguns dos princípios que enformam essa “reserva de Constituição”, alguns deles verdadeiros princípios inerentes ao Estado de Direito democrático: o princípio da hierarquia das fontes, o princípio da competência e o princípio da tipicidade das leis. Trata-se, nas palavras de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, de uma “norma concretizadora de vinculação constitucional do legislador quanto à produção normativa” (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4ª Edição, 2010, p. 52).
12. Relevo especial assume o princípio da tipicidade das formas de lei, ou, na terminologia de Jorge Miranda, um “princípio da fixação constitucional de competências legislativas” (op. cit., p. 206). Desse princípio decorre desde logo que apenas são actos legislativos os definidos pela Constituição nas formas por elas prescritas – e que são taxativamente identificados no artigo 112.º, n.º 1: as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais. Também o n.º 5 do artigo 112.º reforça o princípio da tipicidade dos actos legislativos e consequente proibição de actos legislativos apócrifos ou concorrenciais, com a mesma força e valor de lei, ao estipular: “Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”.
A declaração de rectificação não reveste a natureza de acto legislativo, mas a de simples acto de correcção de um erro na execução material da publicação de uma norma, cujo procedimento se não aproxima, sequer, do relativo à produção legislativa.
Deve, por isso, concluir-se que a Lei n.º 7/2009 foi alterada por um acto que não tem a natureza de acto legislativo.
13. Cabe, ainda, sublinhar que os actos legislativos possuem, como atributo, a característica da “força de lei”, categoria que faz apelo à ideia de resistência à revogação ou derrogação por outras normas hierarquicamente inferiores ou que não possuam força de lei (J.J. Gomes Canotilho, op. cit, p. 609). De facto, salvo os casos expressamente previstos na Constituição, uma lei só pode ser afectada na sua existência ou alcance por efeito de uma outra lei. Os actos legislativos só podem ser afectados por lei subsequente ou por decisão do Tribunal Constitucional; trata-se da realidade que Jorge Miranda designa por “força de lei formal negativa”, que consiste “na capacidade de resistir ou reagir a actos doutra natureza (…) ou, em certos casos, a outras leis, não se deixando modificar, suspender, revogar ou destruir por eles”.
Ao ter-se modificado ou realizado aditamentos à Lei n.º 7/2009 sem ter sido através de um novo acto legislativo, concedeu-se a esse acto não legislativo o atributo de “força de lei”, violando-se o princípio da tipicidade dos actos legislativos.
Também nesse sentido se tem desenvolvido a jurisprudência constitucional, desde a Comissão Constitucional, que referiu, no Parecer n.º 39/79, de 13 de Dezembro (in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. XI, p. 8):
«actos legislativos apenas podem ser os definidos como tais pela Constituição. Nem poderia deixar de ser de outro modo, sob pena de se frustrar a interdependência dos órgãos de soberania e evitar a sujeição das leis ao processo legislativo e fiscalização preventiva da constitucionalidade (…) é, pois, um princípio geral de Direito Constitucional que está em causa: o princípio da tipicidade dos actos legislativos».
Deve, concluir-se, em suma, que a norma da alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro, na redacção que lhe foi conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009 de 18 de Março, enferma de inconstitucionalidade formal, por violação do princípio da tipicidade dos actos legislativos, consagrado no artigo 112.º n.º 1 da Constituição.
III Decisão
14. Em consequência, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da tipicidade dos actos legislativos consagrado no artigo 112.º n.º 1 da Constituição, a norma da alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro (que aprovou a revisão do Código do Trabalho), na redacção que lhe foi conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009 de 18 de Março;
b) negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 3 de Maio de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Rui Manuel Moura Ramos.