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Processo n.º 260/2011
2.ª Secção
Relator: Conselheiro José Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual redacção (LTC), da decisão sumária proferida nos autos que decidiu não tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto pelo ora reclamante.
2. A decisão reclamada tem o seguinte teor:
“(...)
1. A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual redacção (LTC), pretendendo ver sindicada “a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 358. ° do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de que a obrigação de comunicação ao arguido não se aplica quando o tribunal se limita a desqualificar o furto de qualificado para simples, isto é, quando tribunal sem atender às consequências efectivas da alteração da qualificação jurídica, se dispensa de efectuar a comunicação a que alude o n.º 1 do artigo 358. ° do C.P.P., por violação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 32. ° da CRP” e também a “inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 358. ° do CPP quando interpretada no sentido de que a alteração da qualificação jurídica dos factos, de furto qualificado para furto simples, não tem relevo para a decisão da causa por o arguido não ser minimamente prejudicado com tal alteração, dado que não foi perturbada a sua estratégia de defesa, não foi prejudicada ou não lhe foram coarctados os seus direitos de defesa, sem apurar em concreto a situação”, igualmente por violação do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 32. ° da Constituição da República Portuguesa (CRP).
2. Como é consabido, o recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – igualmente previsto no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP) – exige, como pressuposto processual específico, que a questão de constitucionalidade objecto do recurso tenha sido suscitada durante o processo de modo a que o tribunal recorrido se encontrasse vinculado ao seu conhecimento, como decorre, igualmente, do disposto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC.
O sentido daquele pressuposto tem sido esclarecido, por várias vezes, por este Tribunal Constitucional.
Assim, por exemplo, no Acórdão n.º 352/94, publicado no Diário da República II Série, de 6 de Setembro de 1994, disse-se que esse requisito deve ser entendido “não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão, ou seja, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”.
No Acórdão n.º 560/94, publicado no Diário da República II Série, de 10 de Janeiro de 1995, mais se considerou que «a exigência de um cabal cumprimento do ónus de suscitação atempada - e processualmente adequada - da questão de constitucionalidade não é [...] “uma mera questão de forma secundária”. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame da questão (e não a um primeiro julgamento de tal questão».
Neste domínio, há assim que acentuar que nos processos de fiscalização concreta a intervenção do Tribunal Constitucional se limita ao reexame ou reapreciação da questão de (in)constitucionalidade que o tribunal a quo apreciou ou devesse ter apreciado (nesta linha de pensamento, podem ver-se, entre outros, o Acórdão n.º 155/95, publicado no Diário da República II Série, de 20 de Junho de 1995, o Acórdão n.º 192/2000, publicado no mesmo jornal oficial, de 30 de Outubro de 2000, e sobre o sentido de tal requisito, José Manuel Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª edição, Coimbra, 2007, pp. 40 e 72), razão pela qual as partes, ao encararem ou equacionarem na defesa das suas posições a aplicação das normas, não estão dispensadas de entrar em linha de conta com o facto de estas poderem ser entendidas segundo sentidos divergentes e de os considerar na defesa das suas posições, aí prevenindo a possibilidade da (in)validade da norma em face da lei fundamental, impendendo sobre elas um dever de prudência técnica na antevisão do direito plausível de ser aplicado e, nessa perspectiva, quanto à sua conformidade constitucional.
Por outro lado, nada impede que, ao invés de se suscitar a inconstitucionalidade de um preceito legal, se questione apenas um seu segmento ou uma determinada dimensão normativa (cf., entre a abundante jurisprudência do Tribunal Constitucional, o Acórdão n.º 367/94 – publicado no DR, II Série, de 7 de Setembro de 1994 –: “ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma interpretação que do mesmo se faça (…) esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado por, desse modo, violar a constituição”), sendo no entanto necessário, em tal hipótese, que a dimensão normativa que se coloca à apreciação do Tribunal Constitucional tenha sido previamente controvertida perante o Tribunal a quo e que tenha constituído a ratio decidendi do juízo proferido) – cf., nesse sentido, entre outros, o Acórdão n.º 139/95, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º volume, 1995, o Acórdão n.º 197/97, publicado no Diário da República II Série, n.º 299, de 29 de Dezembro de 1998 e, mais recentemente, o Acórdão n.º 214/03, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
Para tais efeitos, importa, pois, colocar o tribunal recorrido perante o dever de apreciação da constitucionalidade de uma norma legal individualizada, havendo de concretizar-se o sentido desse preceito de modo a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual é o preceito e com que sentido ele não deve ser aplicado por, desse modo, violar a Constituição.
Nestes termos, exigir-se-á que, em sede de recurso, a questão de constitucionalidade seja concretizada de modo claro, directo e objectivo (cf. Acórdão n.º 1210/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt) nas conclusões da motivação do recurso uma vez que são estas que delimitam o âmbito e o objecto do recurso e, concretizando o sentido dessa exigência, tem este Tribunal estabelecido que «“suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que (...) tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido.” Impugnar a constitucionalidade de uma norma implica, pois, imputar a desconformidade com a Constituição não ao acto de aplicação do Direito – concretizado num acto de administração ou numa decisão dos tribunais – mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa determinada interpretação que enformou tal acto ou decisão (cf. Acórdãos nºs 37/97, 680/96, 663/96 e 618/96, este publicado no Diário da República, II Série, de 15-05-1996)». – cf. o referido Acórdão n.º 618/98 e os acórdãos para os quais aí se remete.
Analisando o teor das conclusões do recurso exaradas no tribunal recorrido, constata-se que o recorrente não cumpriu de forma adequada o ónus de suscitação prévia das questões de constitucionalidade que agora pretende ver sindicadas na jurisdição constitucional.
De facto, da arguição de nulidade da sentença (“a decisão impugnada deve ser declarada nula por violação do art. 379°, 1, b), ex vi da art. 1°, f) e 358° do C.P.P., uma vez que o arguido foi acusado pela prática de factos integradores de um crime de furto qualificado p. e p. pelo art. 22°, 23°, 26°, 203° e 204° n° 1 al. b) do Código Penal, e acabou por ser condenado por factos integradores de um crime de furto simples, na forma tentada p. e p. pelo art. 203°, n° 1, art. 23°, 26° e 73° do Código Penal, verificando-se, assim alteração não substancial dos factos descritas na acusação”, conclusão 1.ª; e “a sentença deve ser considerada nula por violação do art. 358° n° 1 do CPP e nos termos do previsto no art. 379° n° 1 ali. b) do CPP por ter existido alteração não substancial dos factos de que o arguido vinha acusado sem que o tribunal o tenho notificado dessa alteração para efeitos de defesa”, conclusão 2.ª), ainda que complementada pela menção de que “os direitos de defesa do arguido encontram-se violados com manifesta postergação do artigo 32.º, n.º 1 e 2 da CRP”, não decorre a alegação de uma questão de constitucionalidade normativa e a sua fixação em objecto do recurso, porquanto aí apenas se controverte o juízo de valoração efectuado, de acordo com o recorrente, em violação dos preceitos legais invocados, uma vez que, no seu entendimento, o tribunal não o notificara, para efeitos de defesa, de uma alteração não substancial dos factos, aí arvorando, consequentemente, a violação do disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal (CPP) e a violação dos seus direitos de defesa constitucionalmente protegidos.
Ora, para além de não decorrer das transcritas conclusões a suscitação de qualquer problema de constitucionalidade – por antonomásia, normativa –, não pode igualmente ignorar-se que entre o arrazoado motivador da pretensão recursiva perante o tribunal a quo, a decisão deste e o presente objecto do recurso não existe qualquer simetria.
Desde logo, quanto à diferença entre o entendimento expresso perante o tribunal a quo e a decisão deste, ressalta da ratio decidendi do acórdão recorrido uma valoração que não fora contestada pelo recorrente e que acabou por se estribar no entendimento de que, in casu, a diferente qualificação jurídica dos factos que apenas beneficie os recorrentes não constitui uma alteração não substancial dos factos nos termos previstos pelo artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, posto que, como ali se explicita: “(...) sem prejuízo de noutras situações concretas, que não nesta, a diferente qualificação jurídica ainda que não mais gravosa, poder ser classificada como de alteração não substancial dos factos e justificar/exigir, a dita comunicação, somos de entender que, in casu, não se verifica uma situação de alteração não substancial dos factos que justifique a comunicação aos arguidos com o consequente ou eventual requerimento destes para concessão de tempo para preparação da defesa”.
Por outro lado, também não existe identidade entre o objecto do recurso tal como o mesmo foi definido pelo recorrente perante este Tribunal Constitucional e a questão previamente equacionada a pretexto da “violação das garantias de defesa”, o que determina a conclusão, de sentido contrário ao que o recorrente deixou consignado no respectivo requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, de que as questões que agora se pretendem ver apreciadas não foram suscitadas perante o tribunal a quo.
Consequentemente, não se encontram verificados os requisitos determinantes do conhecimento do recurso.
(...)”.
3. Por seu turno, a reclamação encontra-se suportada nos seguintes argumentos:
“(...)
1. O arguido ora recorrente foi acusado da prática de factos integradores de um crime de furto qualificado p. e p. pelos artigos 22°, 23°, 26°, 203° e 204° n° 1 al. b) do Código Penal e acabou por ser condenado por factos integradores de um crime de furto simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 203°, n° 1, 23°, 26° e 73° do Código Penal.
2. No caso de furto simples “O procedimento criminal depende de queixa”. (nº 3 do artigo 203º do C.P.). - sublinhado nosso.
3. No caso de furto qualificado não é admissível desistência de queixa, pois o procedimento criminal não depende de queixa (cfr. artigo 204° do Código Penal).
4. O Tribunal de 1ª Instância procedeu à alteração da qualificação jurídica dos factos sem ter procedido à comunicação a que alude o artigo 358° nºs 1 e 3 do Cód. Proc. Penal.
5. Nos termos do n° 2 do artigo 116° do Código Penal, “O queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença em 1ª instância” (sublinhado nosso).
6. Assim, se tivesse sido dada a possibilidade ao arguido de se pronunciar antes da publicação da sentença, o mesmo teria tido a possibilidade de alterar nomeadamente a sua estratégia de defesa.
7. Se tivesse sido comunicada a alteração introduzida pelo tribunal de 1ª instância, o arguido, ora recorrente, teria obtido da ofendida a desistência da queixa, conforme melhor se vê da declaração por esta agora emitida, nos termos da qual “sempre esteve na disposição de conceder perdão ao arguido A. e que só não o fez porque foi informada que o crime de que o mesmo vinha acusado não admitia desistência de queixa”. (cfr. doc. n° 1 que se junta e dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
8. Aliás, a ofendida B., subscreveu um requerimento dirigido ao Exm° Senhor Juiz de Direito titular do processo em causa (processo n° 1099/07.4GAVNF, a correr seus termos pelo 2° Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de V.N. de Famalicão) a “desistir da queixa apresentada contra o arguido A., requerendo o arquivamento dos autos” (cfr. doc. n° 2 que se junta e dá por reproduzido para todos os efeitos legais).
9. Tal requerimento revela-se, porém, inoperante porque enquanto pôde ser apresentado em Tribunal o crime pelo qual o arguido respondia não admitia desistência de queixa e após publicação da sentença da 1ª instância o queixoso deixou de poder desistir da queixa, por força do estatuído no n° 2 do artigo 116° do Código Penal.
10. Assim, só a comunicação a que alude o artigo 358° do C.P.P. podia ter obviado a este gravíssimo problema.
11. É por causa de não lhe ter sido feita a comunicação a que alude o artigo 358° do C.P.P. que o arguido, aqui recorrente, está sujeito ao cumprimento de uma pena de 7 (sete) meses de prisão efectiva.
12. Pena de prisão efectiva por ter praticado um crime de furto simples na forma tentada!
13. Está, assim, cometida uma TREMENDA INJUSTIÇA, que importa reparar.
14. Vejamos, então, se o presente recurso satisfaz – pelo menos minimamente – o pressuposto ínsito no artigo 70º da LTC, segundo o qual a questão de constitucionalidade objecto do recurso tem de ser suscitada durante o processo de modo a que o tribunal recorrido fique vinculado ao seu conhecimento, como decorre, igualmente, do disposto no artigo 72°, n° 2, da LTC.
15. Considerou V. Exa. que não. Que não se verificava tal pressuposto porque o recorrente “não cumpriu de forma adequada o ónus de suscitação prévia das questões de constitucionalidade que agora pretende ver sindicadas na jurisdição constitucional”,
16. limitando-se a arguir a “nulidade da sentença (...) ainda que completada pela menção de que “os direitos de defesa do arguido encontram-se violados com manifesta postergação do artigo 32°, n° 1 e 2 da CRP”
17. Ora, salvo o devido respeito – que é muito e merecido – o recorrente não pode conformar-se com tal posição.
18. O recorrente reconhece que a sua alegação de inconstitucionalidade não foi traduzida por uma linguagem primorosa capaz de satisfazer a mais exigente jurisprudência e doutrina nesta matéria, mas ainda assim, suficiente para poder ser julgada “processualmente adequada”.
19. De tal sorte que o Tribunal ‘a quo’ a entendeu e tratou.
20. Ou seja, o recorrente colocou o tribunal recorrido perante o dever de apreciação da constitucionalidade de uma norma legal individualizada.
21. Ademais, com o presente recurso pretende-se a intervenção do Tribunal Constitucional para reexaminar ou reapreciar a questão de (in)constitucionalidade que o tribunal ‘a quo’ apreciou.
22. Aliás, é a interpretação feita pelo tribunal ‘a quo’, relativamente ao artigo 358° do CPP, que verdadeiramente o revela inconstitucional e, enquanto tal, merecedora de censura por parte deste Tribunal Constitucional.
23. É o tribunal ‘a quo’ quem interpreta o artigo 358° do CPP no sentido de que uma alteração da qualificação jurídica dos factos que apenas beneficia os recorrentes não importa uma alteração não substancial dos factos nos termos previstos no artigo 358° nºs 1 e 3 do CPP.
24. É o tribunal ‘a quo’ quem afirma que “Não se vislumbra, pois, que os recorrentes tenham sido minimamente prejudicados com a alteração da qualificação jurídica operada na sentença.”.
25. É, pois, a interpretação feita pelo tribunal “a quo” que define verdadeiramente o sentido interpretativo da norma em apreço.
26. Até aí apenas tínhamos a decisão do tribunal de 1ª instância que, sem esclarecer o verdadeiro sentido interpretativo do artigo 358° do CPP, coarctou o direito de pronúncia ao arguido, violando assim o seu direito de defesa consagrado constitucionalmente.
27. Daí que a alegação de inconstitucionalidade tenha sido menos rigorosa.
28. Ainda assim cumprindo o que a LTC impõe.
29. Senão vejamos!
30. O recorrente concluiu perante o tribunal ‘a quo’ que “os direitos de defesa do arguido encontram-se violados com manifesta postergação do artigo 32° n° 1 e 2 da CRP” (conclusão III).
31. Tal conclusão vem no seguimento de uma outra segundo a qual “A sentença deve ser considerada nula por violação do artigo 358° n° 1 do CPP (...) por ter existido alteração não substancial dos factos de que o arguido vinha acusado sem que o tribunal o tenha notificado dessa alteração para efeitos de defesa” (conclusão II).
32. Concluiu finalmente (conclusão XX) que “Mostra-se violado o vertido no artigo 32° da CRP”.
33. Salvo o devido respeito por melhor opinião contrária, parece resultar suficientemente claro das conclusões de recurso que a referência à postergação do direito de defesa consagrado constitucionalmente diz respeito a uma qualquer interpretação do artigo 358° do CPP que afastasse o dever de comunicação a que alude o n° 1 de tal preceito legal.
34. Quer porque considerou – sem o afirmar explicitamente – que a alteração não teve relevo para a decisão da causa, quer porque considerou que não se trata de uma decisão surpresa a impor o contraditório, na medida em que não prejudica os arguidos, antes os beneficia claramente, como considerou o Exm° Senhor Procurador-Geral Adjunto, no seu douto parecer, no que foi sufragado pelo douto acórdão recorrido.
35. Foi o douto acórdão recorrido que permitiu ao recorrente melhor identificar o sentido interpretativo do artigo 358° do CPP e, em consequência, melhor especificar a inconstitucionalidade de que padecia.
36. E – repete-se – a eventual falha do recorrente, ou a sua falta de rigor na alegação de inconstitucionalidade do preceito legal em causa, não impediu, nem desviou o tribunal “a quo” de apreciar e decidir tal questão.
37. Ou, se se quiser, quem verdadeiramente fez uma interpretação do preceito legal que manifestamente se mostrou inconstitucional, por atentar contra o direito de defesa do arguido, é o Tribunal da Relação do Porto ao julgar que “existiu efectivamente uma alteração da qualificação jurídica dos factos” mas que “esta qualificação apenas beneficiou os recorrentes, na medida em que lhes corresponde uma moldura penal abstracta substancialmente menor” sem ponderar que a falta de comunicação que a lei impõe os prejudicou seriamente e com influência na decisão final.
38. Na verdade, é o tribunal ‘a quo’ quem, em 1ª mão, considera que a alteração da qualificação jurídica dos factos não tem relevo para a decisão da causa por o arguido não ser minimamente prejudicado com tal alteração, dado que não foi perturbada a sua estratégia de defesa, não foram prejudicados ou não lhe foram coarctados os seus direitos de defesa, sem apurar em concreto a situação.
39. Assim, e em bom rigor, pode afirmar-se que a questão da inconstitucionalidade só pôde colocar-se perante um circunstancialismo ocorrido já após a sua última intervenção processual, ou melhor, a questão da inconstitucionalidade tal como ela é colocada agora só surgiu com a interpretação dada ao preceito em causa, na própria decisão de que se recorre.
40. Pelo menos, não era exigível ao recorrente, que no recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto, antevisse a interpretação concreta que veio a ser feita do preceito legal em causa.
41. Não é, pois, legítimo exigir ao recorrente uma alegação de inconstitucionalidade para além daquela que fez na motivação de recurso para o Tribunal da Relação.
42. Não era previsível que o tribunal ‘a quo’ considerasse que a falta de comunicação da alteração não tinha influência no desenrolar da decisão final, não representava qualquer prejuízo nem coarctava os direitos de defesa do arguido, quando era manifesto que, no caso em apreço, tais prejuízos existiam e influíam, como influíram, no desenrolar da decisão final.
43. É preciso ter presente que a interpretação que o Tribunal da Relação do Porto faz da norma em causa, não resulta claro do texto da mesma.
44. Aliás, a redacção do n° 3 do preceito em causa, introduzida posteriormente, procurou afastar exactamente qualquer interpretação que permitisse dispensar a comunicação da alteração da qualificação, quando tal alteração tiver relevo para a decisão da causa.
45. Pelo exposto, e salvo o respeito que é devido e merecido, está verificado o pressuposto da admissibilidade do recurso de constitucionalidade.
46. E trata-se, no caso em apreço, de gritante inconstitucionalidade, que a não ser apreciada, atirará para a prisão um cidadão condenado pela prática de um crime, na forma tentada, em relação ao qual obteve perdão e desistência de queixa da ofendida e que só não produziu efeitos porque o tribunal de 1ª instância não comunicou ao interessado que afinal o crime pelo qual iria ser condenado (em prisão efectiva) admitia desistência de queixa.
47. Ademais, o recorrente pode não ter usado a fórmula mais certa e sacramental, mas é certo que suscitou a questão atempadamente e de forma suficientemente clara para que o tribunal ‘a quo’ soubesse que tinha essa questão para resolver, sendo certo que a apreciou e resolveu, embora pronunciando-se pela constitucionalidade da norma em causa.
(...)”.
4. Notificado do teor da reclamação, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal, pugnou pela sua improcedência, sustentando que:
“(...)
1º
Pela Decisão Sumária n.º 253/2011, não se tomou conhecimento do recurso porque no momento processual adequado – a motivação do recurso para a Relação do Porto – o recorrente não suscitara adequadamente as questões de inconstitucionalidade que pretendia ver apreciadas e que enunciava no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal.
2º
Também se entendeu, na Decisão Sumária, que não existia identidade entre o objecto do recurso tal como o recorrente o definiu perante o Tribunal Constitucional e a questão que equacionou perante a Relação, não existindo também correspondência entre aquele e a dimensão normativa efectiva aplicada.
3.º
Desde já se diga que nos parece evidente que não se verificam aqueles pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
4.º
Na reclamação agora apresentada, o recorrente não impugna verdadeiramente os fundamentos da decisão reclamada, antes trazendo um novo elemento para o processo.
5.º
Resulta dos autos que tendo o arguido sido acusado da prática de um furto qualificado, foi condenado pela prática de um furto simples, na forma tentada.
6.º
O arguido, em síntese, entende que essa alteração da qualificação ainda que para crime menos grave, devia ter-lhe sido previamente comunicada, uma vez que se traduzia numa alteração não substancial dos factos (artigo 358.º do CPP).
7.º
Vem agora o recorrente dizer que a não comunicação prejudicou os seus direitos porque tendo o crime passado de público a semi-público, a desistência da queixa por parte da ofendida era relevante, mas teria de ser apresentada até à publicação da sentença da 1.ª instância (artigo 116.º, n.º 2, do Código Penal).
8.º
Ou seja, não havendo prévia comunicação, no momento em que tomava conhecimento da relevância da desistência, já tinha sido ultrapassado o prazo legalmente fixado para a apresentar.
9.º
Ora, discutir esta questão, por pertinente que seja, não tem qualquer sentido no presente recurso de constitucionalidade.
10.º
Efectivamente, esta é uma questão nova que o recorrente nunca apresentou na motivação do recurso para a Relação – obviamente não se tendo este Tribunal pronunciado sobre ela –, como nem sequer a ela também se referiu quando, no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional, enunciou as dimensões normativas que pretendia ver apreciadas, naturalmente não integrando este novo elemento tais dimensões.
11.º
Aliás, tendo em atenção a data que consta da declaração de desistência (28 de Março de 2011, fls.553), facilmente se constata que essa declaração foi emitida já depois de interposto e admitido o recurso para o Tribunal Constitucional (18 de Fevereiro de 2011 e 17 de Março de 2011, respectivamente).
12.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação”.
Cumpre agora julgar.
II. Fundamentação
5. A reclamação sub judicio não logra abalar os fundamentos que determinaram a decisão de não conhecimento do objecto do recurso.
Em primeiro lugar, afigura-se evidente que o reclamante não suscitou diante do Tribunal da Relação do Porto as questões que erigiu em objecto do recurso de constitucionalidade.
Por outro lado, também não colhe o argumento de que a “questão de constitucionalidade só pôde colocar-se perante um circunstancialismo ocorrido já após a sua última intervenção processual”, por ter sido o Tribunal da Relação do Porto, de acordo com a argumentação esgrimida na reclamação, a considerar em primeira mão que “a alteração da qualificação jurídica dos factos não tem relevo para a decisão da causa por o arguido não ser minimamente prejudicado com tal alteração, dado que não foi perturbada a sua estratégia de defesa, não foram prejudicados ou não lhe foram coarctados os seus direitos de defesa, sem apurar em concreto a situação”.
De facto, perante a decisão proferida em 1.ª instância, deve considerar-se que nada impedia o reclamante de ter suscitado em termos adequados a questão de constitucionalidade trazida a este Tribunal, sendo certo que o recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto teve como objecto a violação do disposto no artigo 358.º, do Código de Processo Penal, por o recorrente não ter sido ouvido a propósito da alteração da qualificação jurídica dos factos de crime de furto qualificado na forma tentada para crime de furto simples na forma tentada.
Não se encontrava, pois, o reclamante numa situação em que não seria possível – e, como tal, exigível – ter colocado a questão de constitucionalidade perante o tribunal de recurso, tanto que o exacto sentido com que a norma foi aplicada acabou por ser expressamente “enunciado” no parecer do representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação.
De resto, nem o recorrente, ao interpor o recurso de constitucionalidade, alegou a impossibilidade de ter previamente suscitado a constitucionalidade normativa dos preceitos que pretendeu controverter, tendo dito, pelo contrário, que as questões haviam sido suscitadas junto do tribunal a quo.
Em terceiro lugar, afigura-se também claro que o Tribunal recorrido não assumiu como objecto do recurso e, consequentemente, como questão decidenda, a prolação de um juízo de constitucionalidade relativamente à norma do artigo 358.º do Código de Processo Penal, tendo-se limitado a decidir da nulidade que o recorrente alegara no sentido de apurar se in casu existira, ou não, violação do disposto no referido preceito processual, concluindo, em concreto, pela negativa.
Por fim, quanto ao problema da declaração de desistência da queixa, apresentada já depois do presente recurso ter sido admitido, encontramo-nos perante uma questão nova que exorbita inclusivamente da motivação apresentada junto do Tribunal a quo e que, no que importa para a decisão da reclamação, não interfere na aferição do cumprimento dos requisitos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, aqui em causa por referência à reclamada decisão sumária.
III. Decisão
6. Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UCs.
*
Lisboa, 6 de Junho de 2011.- J. Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos.