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Processo n.º 885/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório1. A., Recorrente nos presentes autos em que figuram como Recorridos o Ministério Público e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social de Lisboa e Vale do Tejo, inconformado com a decisão do Tribunal de Família e Menores de Cascais que o condenou, pela prática de um crime continuado de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punido pelo artigo 105.º do RGIT, na pena de um ano de prisão (suspensa por 18 meses) e no pagamento, ao citado Instituto, da quantia de 76.347,61 Euros, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmou o julgado.
Posteriormente, apresentou requerimento invocando alteração da lei aplicada (na sequência da redacção dada ao n.º 1 do artigo 105.º do RGIT pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro) e consequente pedido de cessação da sua condenação, pedido esse que lhe foi negado.
Mais uma vez inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo visto a sua pretensão improceder.
Interpõe, agora, recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82 (Lei do Tribunal Constitucional – Lei do Tribunal Constitucional).
Diz, no seu requerimento:
“1- Pretende-se que o Tribunal Constitucional aprecie e declare a inconstitucionalidade do n° 1 do art. 105° do REGIT, aprovado pela Lei n° 15/2001, de 5/6, na redacção que lhe foi dada pelo art. 113° da Lei n° 64-A/08, de 31/ 12, na interpretação de que o regime introduzido pela nova redacção não é aplicável aos crimes de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no art. 107°, n° 1 do mesmo diploma.
2- São as seguintes as normas e princípios que se consideram violados:
a) o n° 1 do art. 13° da CRP, na dimensão normativa de que ninguém deve ser discriminado perante a lei e na lei, de forma arbitraria, perante situações essencialmente iguais.
b) a 2.ª parte do n° 4 do art. 29° da CRP, na medida em que proíbe que alguém seja condenado em virtude de lei anterior que foi alterada, deixando de punir a acção ou omissão em causa, por ampliação dos pressupostos da punição.”
2. Notificado para alegar, o recorrente concluiu do seguinte modo:
“1- A norma do n° 1 do art. 105.º, do RGIT, na redacção dada pelo art° 113.º da L. 64-A/08 de 31/12 que aprovou o O.G.E. para 2009, introduzindo-lhe o limite de € 7.500,00, na interpretação não é aplicável às prestações devidas à segurança social é inconstitucional, por violação do disposto no n° 1 do art. 13° da Constituição da República;
2- Já que faz uma discriminação arbitrária entre as prestações devidas à administração fiscal e à segurança social;
3- Quebrando, sem justificação, uma evolução histórica de identidade de regimes;
4- Nem há qualquer justificação para discriminar, exigindo um montante mínimo para criminalizar a falta de entrega de verbas fiscais e já não à segurança social, quando, na verdade, há similitude identitária do bem jurídico protegido, o qual exprime o interesse comunitário na manutenção da entrega legalmente obrigatória às entidades público-estaduais beneficiárias, de entrega à segurança até € 7500,00 já está a sua criminalização das prestações tributárias deduzidas, ou seja, o erário público;
5- Para além disso, o art. 42° do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, já prevê contra-ordenação, não se vendo justificação para criminalizar quanto às prestações devidas de valor até € 7500,00, contrariamente ao que sucede nas dívidas fiscais.
6- Havendo assim desproporção de meios e de um excesso, que afrontam os princípios da adequação e da necessidade ínsitos ao Estado de Direito Democrático, consagrado no art. 2° da C.R.P., igualmente violados.
Termos em que deverá deverá ser dado provimento ao recurso e ser decidida a inconstitucionalidade da norma do n° 1 do art. 105°, do RGIT, na redacção dada pelo art° 113° da L. 64-A/08 de 31/12 que aprovou o O.G.E. para 2009, introduzindo-lhe o limite de C 7.500,00, na interpretação de que não é aplicável às prestações devidas à segurança social, por violação do disposto no n° 1 do art. 13° da C.R.P., revogando-se a decisão recorrida que decidiu pela sua constitucionalidade, com as legais consequências, nomadamente, considerando-se descriminalizada a conduta do arguido, acarretando a absolvição do mesmo do crime por que foi acusado e condenado.”
3. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, contra alegou e concluiu:
“1 - O legislador ordinário - que terá de ser a Assembleia da República ou Governo se para tal autorizado por aquela - goza de uma ampla liberdade de conformação em matéria de definição de crimes e fixação de penas.
2 - As infracções contra a Segurança Social — até historicamente - têm alguma autonomia face ás infracções praticadas no âmbito fiscal, podendo variar o quadro sancionatório num e no outro ramo, face à constatação da sua suficiência, ou não, num determinado período e tendo em atenção as exigências e os fins próprios de cada um
3 - Com a alteração introduzida no n° 1 do artigo 105° do RGIT, pelo artigo 113° da lei n° 64-A/2008, de 31 de Dezembro, deixou de ser criminalmente punível como abuso de confiança fiscal, a não entrega à administração tributária de prestação tributária de valor igual ou inferior a €7.500.
4 - Tal conduta, no entanto, continua a ser punível como contra-ordenação (artigo 114°, n° 1, do RGIT)
5 - A não aplicação extensiva daquela alteração - com a consequentemente descriminalização - ao crime de abuso de confiança contra a segurança social (artigo 107° do RGIT), não viola o princípio de proporcionalidade, (artigo 18°, n° 2, da Constituição) nem o da igualdade (artigo 13° da Constituição), não se vislumbrando, pois, qualquer inconstitucionalidade.
6 - Termos em que deve negar-se provimento ao recurso.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentaçãoa) – Delimitação do objecto do recurso 4. O recorrente no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal imputa à norma aplicada na decisão recorrida um juízo de inconstitucionalidade por, na sua perspectiva, ter infringido o:
“a) o n° 1 do art. 13° da CRP, na dimensão normativa de que ninguém deve ser discriminado perante a lei e na lei, de forma arbitraria, perante situações essencialmente iguais.
b) a 2.ª parte do n° 4 do art. 29° da CRP, na medida em que proíbe que alguém seja condenado em virtude de lei anterior que foi alterada, deixando de punir a acção ou omissão em causa, por ampliação dos pressupostos da punição.”
b) – Análise do objecto do recurso5. O recorrente foi condenado pela prática de um crime continuado de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punido pelo artigo 105.º do RGIT, na pena de um ano de prisão (suspensa por 18 meses) e no pagamento, ao citado Instituto, da quantia de € 76.347,61. Interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmou o julgado.
Posteriormente, apresentou requerimento invocando alteração da lei aplicada (na sequência da redacção dada ao n.º 1 do artigo 105.º do RGIT pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro) e consequente pedido de cessação da sua condenação, pedido esse que lhe foi negado.
Mais uma vez inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo visto a sua pretensão improceder, porquanto este Tribunal considerou que a não aplicação extensiva daquela alteração – com a consequentemente descriminalização - ao crime de abuso de confiança contra a segurança social (artigo 107° do RGIT), não violava o princípio de proporcionalidade, (artigo 18°, n° 2, da Constituição) nem o da igualdade (artigo 13° da Constituição), não se vislumbrando, pois, qualquer inconstitucionalidade.
É esta interpretação normativa dos mencionados preceitos legais, que cumpre analisar.
6. Façamos uma breve resenha da evolução legislativa relativa aos invocados preceitos legais, aproveitando, com vantagem, o decidido no recente Acórdão n.º 428/2010, publicado no Diário da República, II Série, a 21 de Dezembro:
“Os artigos 105.º, e 107.º, do RGIT, na redacção da Lei n.º 64-A /2008, de 31 de Dezembro, tem o seguinte teor:
Artigo 105.º
Abuso de confiança
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50.000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 – [Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro]
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
Artigo 107.º
Abuso de confiança contra a segurança social
1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos nºs 1 e 5 do artigo 105.º.
2 - É aplicável o disposto nos nºs 4, 6 e 7 do artigo 105.º.
A tipificação dos crimes de abuso de confiança fiscal e contra a segurança social constou inicialmente de diplomas separados (o Acórdão do STJ de 4 de Fevereiro de 2010, acessível em www.dgsi.pt, fornece um retrato completo sobre a evolução legislativa nesta matéria), apenas tendo ocorrido a sua reunião no mesmo diploma com o Decreto-Lei n.º 140/95, de 14 de Junho, que alterou o RJIFNA (Regime Jurídico de Infracções Fiscais não Aduaneiras), passando o mesmo a incluir nas suas disposições a tipificação e punição das infracções contra a segurança social.
Assim, o artigo 27.º-B, do RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, passou a prever, sob o título ‘abuso de confiança em relação à segurança social’:
As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entregarem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, no período de 90 dias, do mesmo se apropriando, serão punidas com as penas previstas no artigo 24.º
As penas previstas no artigo 24.º, eram as do crime de abuso de confiança fiscal e que estavam escalonadas segundo o valor das quantias ilegitimamente objecto de apropriação.
O Decreto-Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que aprovou o RGIT e revogou o RJIFNA, prosseguiu um caminho de convergência, juntando no mesmo diploma a tipificação das infracções fiscais, contra a segurança social e fiscais aduaneiras.
Os crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social no RGIT sempre estiveram tipificados nos artigos 105.º e 107.º, respectivamente.
Na redacção inicial deste diploma, não estava previsto qualquer valor para a quantia não entregue como elemento do tipo, mas o n.º 6, do artigo 105.º, previa o seguinte:
Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder (euro) 1000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.
A Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, alterou este valor para € 2000 e a Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, introduziu a redacção do actual n.º 1, do artigo 105.º, tendo revogado o disposto no n.º 6, enquanto a redacção do artigo 107.º, onde se tipifica o crime de abuso de confiança contra a segurança social permaneceu sempre inalterada.
Se foi claro que com a alteração da redacção do n.º 1, do artigo 105.º, do RGIT, pelo artigo 113.º, da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, foi descriminalizada a conduta de não entrega de prestações tributárias não superiores a € 7500, já relativamente ao crime de abuso de confiança contra a segurança social se desenharam duas correntes jurisprudenciais de sentido oposto: segundo uma, a nova redacção do artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, era também aplicável ao tipo legal de crime previsto no artigo 107.º, n.º 1, do mesmo diploma, e, portanto, também tinham sido descriminalizadas as situações de falta de entrega das contribuições devidas à segurança social de montante não superior a € 7500; e segundo outra, tal nova redacção não era aplicável aos crimes de abuso contra a segurança social, pelo que se mantinha a criminalização de qualquer falta de entrega das contribuições, independentemente do seu montante.
Perante tal divergência, o Ministério Público interpôs recurso extraordinário de jurisprudência, tendo o Supremo Tribunal de Justiça, em 14 de Julho de 2010, proferido o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 8/2010 (publicado no D.R., I Série, n.º 186, de 23 de Setembro de 2010) que decidiu:
Fixar jurisprudência, no sentido de que a exigência do montante mínimo de 7500 euros, de que o n.º 1, do artigo 105.º, do RGIT, faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.º, n.º 1, do mesmo diploma”.
7. Foi a jurisprudência assim fixada que norteou a decisão recorrida e cuja constitucionalidade é questionada.
Não cabe, como se sabe, ao Tribunal Constitucional interpretar o direito infra-constitucional ou sindicar a adequação da interpretação feita pelas instâncias.
A interpretação que vem sustentada no acórdão recorrido constitui um “quid”, no âmbito do presente recurso, cabendo tão-somente ao Tribunal Constitucional confrontar tal interpretação com as normas e princípios constitucionais aplicáveis, nomeadamente com o princípio da igualdade.
8. Nos presentes autos, cabe somente determinar se é, ou não, contrária a alguma norma ou preceito constitucional a interpretação do artigo 107.º, n.º 1, do RGIT segundo a qual o limite de 7500 € previsto no artigo 105.º, n.º 1, RGIT para o crime de abuso de confiança fiscal não se aplica ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, sendo que o recorrente alega violação do princípio da proporcionalidade das penas e do princípio da igualdade.
Como se disse no recente Acórdão n.º 97/2011, publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Março:
“O Tribunal Constitucional já se debruçou sobre a possibilidade de fixação, pelo legislador, de penas distintas aplicáveis a tipos de crime que envolvem o preenchimento de elementos típicos similares, ainda que previstos em diplomas legais autónomos (…)(ver Acórdãos n.º 347/86, n.º 370/94, n.º 958/96, n.º 329/97 e n.º 108/99, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Desta jurisprudência extrai-se, por um lado, que o Tribunal tem entendido que o respeito pelos princípios da igualdade e da proporcionalidade pressupõe a susceptibilidade de deslindar, no tipo de ilícito mais severamente punido, um particular factor que legitime a agravação da medida abstracta da pena aplicável. Quer dizer, o tratamento diferenciado de condutas penalmente puníveis pode justificar-se, em função de determinados critérios objectiváveis, designadamente, pelas concretas características dos agentes do crime.
Por outro lado, tendo em consideração que o legislador dispõe de uma ampla liberdade de conformação normativa, a intervenção do Tribunal Constitucional deve limitar-se aos casos em que se verifique uma violação grave e manifesta de tais princípios.
Assim sendo, importa, portanto, verificar se subjazem razões substantivas que justifiquem o tratamento legislativo diferenciado de condutas (aparentemente) similares, neste caso, da falta de entrega de quantias devidas à administração tributária e da falta de entrega de quantias devidas à segurança social.
Deve, desde já, frisar-se que, por força da alteração legislativa introduzida pelo artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008, o artigo 105º, n.º 1, do RGIT passou apenas a incriminar a falta de entrega de quantias superiores a 7.500 €. Contudo, tal descriminalização não implicou uma integral ausência de responsabilização dos sujeitos de tal dever legal de entrega, visto que tal omissão continua a ser punida a título de contra-ordenação, por força do artigo 114º do RGIT. Consequentemente, a falta de entrega de quantias devidas à administração tributária apenas implica a prática de contra-ordenação, quando o montante em dívida ascenda a 7.500 €, enquanto a falta de entrega de montante similar, à segurança social, envolve a prático do crime tipificado no artigo 107º, n.º 1, do RGIT.
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre o problema do concurso entre estas três normas jurídicas (artigos 105º, 107º, do RGIT, de um lado, e artigo 114º, do RGIT, por outro). Fê-lo no Acórdão n.º 61/07 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), nos termos do qual reafirmou jurisprudência anterior decisiva para a boa decisão da presente questão normativa. Veja-se, então:
“No fundo, os agora recorrentes consideram que, ao admitir a hipótese de o mesmo facto ser havido como crime ou como contra-ordenação, a lei, por um lado, reconhece a falta de dignidade penal do mesmo, assim violando o artigo 2º e o n.º 2 do artigo 18º da Constituição e, por outro, cria um privilégio injustificado para os créditos de que é titular o Estado, agora ofendendo o artigo 13º, também da Constituição.
O Tribunal Constitucional já por diversas vezes afirmou que cabe no âmbito da liberdade de conformação do legislador a determinação das condutas que devem ser criminalizadas. Necessário é, naturalmente, que a opção se não faça em violação das regras e princípios constitucionais relevantes na matéria. Assim, por exemplo, no acórdão n.º 134/2001 (www.tribunalconstitucional.pt), neste ponto transcrevendo o acórdão n.º 604/99 (Diário da República, II série, de 26 de Maio de 2000), relembrou-se o seguinte:
«Como se observou noutro aresto (…), o nº 1142/96, ‘se é sabido que o direito penal de um Estado de Direito visa a protecção de bens jurídicos essenciais ao viver comunitário, só estes assumindo dignidade penal, o certo é que a Constituição não contém qualquer proibição de criminalização, e, observados que sejam certos princípios, como sejam o princípio da justiça, o princípio da humanidade e o princípio da proporcionalidade [...] 'o legislador goza de ampla liberdade na individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela penal (e, assim, na decisão de quais os comportamentos lesivos de direitos ou interesses jurídico-constitucionalmente protegidos que devem ser defendidos pelo recurso a sanções penais)', (na linguagem do acórdão nº 83/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 137, de 16 de Junho de 1995, que seguiu na linha dos acórdãos nºs. 634/93 e 650/93, publicados no Diário da República, II Série, Suplemento, nº 76, de 31 de Março de 1994).
É evidente – lê-se no citado acórdão nº 634/83 – que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva'».
Ora, tal como se concluiu no acórdão n.º 604/99 e se reproduziu no acórdão n.º 134/2001, também as normas em apreciação no presente recurso não infringem os limites constitucionalmente impostos à criminalização, não envolvendo, como ali se escreveu, ‘uma situação reconduzível, pela sua excessividade, à violação do princípio da proporcionalidade e ao desrespeito do artigo 18º da Constituição da República ’.
Com efeito, e tal como o acórdão recorrido claramente explica e o Tribunal Constitucional já também afirmou, as condutas incriminadas (actualmente) pelos artigos 105º (abuso de confiança fiscal) e 107º (abuso de confiança contra a segurança social) põem em causa interesses de tal forma relevantes que legitimam a opção do legislador. (…)».
Por fim, no acórdão n.º 54/2004 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) o Tribunal veio considerar estas considerações acabadas de transcrever plenamente transponíveis para a incriminação hoje constante do artigo 105º do RGIT, orientação que novamente se reitera e que vale igualmente para o artigo 107º do RGIT.’
Partindo da jurisprudência citada, dir-se-á que é impossível negar alguma similitude entre os elementos típicos do artigo 105º, n.º 1, do RGIT e os elementos típicos do artigo 107º, n.º 1, do RGIT. Ambos pressupõem a falta de cumprimento do dever de entrega de quantias retidas a terceiros, fosse relativamente a trabalhadores – retenção de imposto na fonte, para efeitos de IRS, ou retenção de parcela de contribuição devida à segurança social, com consequente dever de posterior entrega ao Estado. Por outro lado, ao contrário do que sucedeu a propósito das normas que foram alvo de apreciação pelos Acórdãos n.º 347/86, n.º 370/94, n.º 958/96, n.º 329/97 e n.º 108/99 (supra citados), (…)
Chegados a este ponto, poderia parecer que não existem fundamentos substantivos que justifiquem o tratamento diferenciado daquelas situações. Porém, assim não é. Se analisarmos o regime específico de financiamento da Segurança Social, verificaremos que é legítimo ao legislador ordinário estabelecer normas sancionatórias distintas, em função de objectivos de preservação daquele sistema de financiamento, atentas as suas peculiaridades.
Sendo certo que o n.º 2 do artigo 63º da CRP determina que ‘incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado’, não é menos verdade que tal sistema foi concebido pelo legislador ordinário como um sistema fortemente contributivo, ou seja, assente nas contribuições suportadas pelos respectivos beneficiários, em função das respectivas remunerações (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2010, p. 817). Por força do artigo 92º da Lei de Bases da Segurança Social (aprovada pela Lei n.º 4/2007 de 16 de Janeiro), as fontes de financiamento do sistema público de Segurança Social são diversificadas, delas constando, designadamente, as quotizações dos trabalhadores beneficiários [alínea a) do referido artigo 92º] e as contribuições das entidades empregadoras [alínea b)], para além das transferências provenientes do Orçamento de Estado [alínea c)].
Assim sendo, o risco de ocorrência de um movimento sistemático de recusa de entrega das contribuições devidas pelos trabalhadores e pelas entidades empregadoras colocaria em causa, de modo evidente, a própria subsistência do sistema de Segurança Social, tal como constitucional e legalmente instituído. Deste modo, pode compreender-se que o legislador ordinário tenha optado por incriminar, de modo mais intenso, condutas que aparentemente se apresentavam como similares, mas que, em função das suas específicas características, se apresentam juridicamente mais desvaliosas.
Ora, parece ter sido essa a opção do legislador. Ou seja, estabelecer um regime de responsabilidade criminal mais intenso, no caso dos crimes cometidos contra a Segurança Social do que no caso dos crimes cometidos contra a Administração Tributária.
Conforme notado por Isabel Marques da Silva (cfr. Regime Geral das Infracções Tributárias, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 109 e 110), no decurso dos trabalhos preparatórios do RGIT, chegou a equacionar-se a concepção de tipos de crime unificados, abrangendo um tipo comum de fraude e de abuso de confiança, tendo tal solução sido, manifestamente, repudiada pelo legislador ordinário. Com efeito, o RGIT procedeu a uma distinção, no Título da Parte III, entre ‘Crimes tributários comuns’ (Capítulo I), ‘Crimes aduaneiros’ (Capítulo II), ‘Crimes fiscais’ (Capítulo III) e ‘Crimes contra a segurança social’ (Capítulo IV). Aliás, a referida Autora chega mesmo a considerar que a fusão dos tipos penais fiscais com os tipos penais relativos à segurança social “além de tecnicamente errada, [implicaria] uma manifestação abusiva da fiscalidade do sistema, absolutamente incompreensível, face aos objectivos e natureza do sistema de segurança social, inscritos na sua Lei de Bases.’ (cfr. o.c., p.110).
Em suma, o legislador ordinário tomou uma opção legiferante, em função das peculiaridades próprias do modelo de financiamento do sistema público de Segurança Social, que assenta, maioritariamente, nas contribuições suportadas pelos trabalhadores e pelas entidades empregadoras. Consequentemente, o legislador considerou que a diferenciação entre os crimes fiscais e os crimes contra a Segurança Social assenta não só numa maior ilicitude do facto praticado, na medida em que se trata de um comportamento que compromete a subsistência financeira do sistema público de Segurança Social.
Do exposto resulta que não é desproporcionado nem viola o princípio da igualdade que o legislador, ao abrigo da sua margem de liberdade normativa, opte por punir, de modo mais intenso, condutas que envolvam a falta de pagamento de quantias devidas à Segurança Social”.
A jurisprudência acabada de citar é manifestamente transponível para a situação dos autos. Aqui chegados refira-se que não faz sentido, face à improcedência da alegada violação do princípio da igualdade apreciar da violação do artigo 29.º, n.º 4 da Constituição.
III – Decisão9. Em face do exposto, acordam julgar improcedente o recurso.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UCs.
Lisboa, 07 de Junho de 2011. – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Rui Manuel Moura Ramos.