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Processo n.º 465/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. e mulher, B. (depois substituída, face ao respectivo óbito, pelo seu sucessor habilitado, o já autor A.), instauraram no Tribunal Judicial da Comarca de Mangualde, acção declarativa, com processo sumário, contra C. e mulher, D., E. e mulher, F., G. e marido, H., I. e J. e marido, K., pedindo que se decretasse que o contrato de arrendamento invocado na acção n.º 34/90, para se exercer a preferência, nunca existiu, sendo a invocação da sua existência um acto simulado, bem como todos os factos invocados naquela acção para se exercer a preferência, inclusive o de que não tiveram conhecimento da escritura, já que foram os próprios autores da dita acção quem, como gestores de negócios dos réus compradores, efectuaram todas as diligências para que o contrato se efectuasse.
Após realização de audiência de julgamento foi proferida sentença em 05 de Outubro de 2009 que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu os Réus do pedido, mais absolvendo as partes do que fora peticionado a título de alegada litigância de má fé.
Inconformado, o Autor interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão proferido em 26 de Outubro de 2010, julgou improcedente o recurso.
O Autor formulou pedido de esclarecimento deste Acórdão, que veio a ser indeferido por despacho do Desembargador Relator, de 14 de Dezembro de 2010.
O Autor requereu então que se procedesse à reforma do referido Acórdão, ao abrigo do disposto no artigo 669.º, n.º 2, alínea b), do CPC, o que também foi indeferido, por Acórdão de 15 de Março de 2011.
Notificado deste Acórdão, o Autor recorreu para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
«A., A. nos autos em referência, nos quais são RR. C., Mulher e Outros, não se conformando com o douto acórdão de que acaba de ser notificado, vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b), nº l, do artº. 70º., da Lei do Tribunal Constitucional, por inconstitucionalidade dele constante, na aplicação dos artºs. 240º., 342º., nº 1 e 343º, nº. 1, todos do Código Civil, o que foi atempadamente suscitado, conforme impõe o artº. 280º., nº. 4, alínea b), do nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
Aquele acórdão, violou o disposto nos artºs. 202º., 203º. e 204º., da Constituição da República Portuguesa.»
O Desembargador Relator, em 14 de Abril de 2011, proferiu despacho de não admissão do recurso, com a seguinte fundamentação:
«[…]
Afigura-se-nos claro que o Acórdão de 31/03/2011 não abordou, “ex novo”, qualquer matéria em que se suscitasse a aplicação dos art.ºs 240º., 342º., nº. 1 e 343º., nº. 1, todos do Código Civil. A aplicação desses preceitos poderia ter sido suscitada na Apelação decidida pelo Acórdão de 26/10/2010 - que conheceu do objecto do recurso -, a propósito do ónus da prova, que se entendeu estar a cargo do Autor e cuja falta de cumprimento, por parte deste, fundou a improcedência da acção na 1.ª Instância.
Só que ao longo de todo o processo, ou seja, até ser proferido esse Acórdão final de 26/10/2010, ou, com maior rigor, até ser pedida a reforma deste, o Apelante nem sequer aflorou a questão da inconstitucionalidade dos citados preceitos.
Só quando veio pedir essa reforma é que, “à cautela”, afirmou suscitar “... a inconstitucionalidade na aplicação dos artigos 240º., 342º., nº. 1 e 343º., nº. 1, todos do Código Civil”. Fê-lo tarde e de forma inadequada, salvo o devido respeito.
Na verdade, a inconstitucionalidade normativa deveria ter sido suscitada no decurso do processo, ou seja, antes de ser proferido o Acórdão de 26/10/2010, que conheceu do objecto do recurso, pois esse Acórdão manteve a fundamentação estruturante da decisão da 1.ª Instância, ou seja, manteve a improcedência fundada na circunstância de o Autor, cabendo-lhe esse ónus, não ter provado os pressupostos de que dependia o reconhecimento do direito que invocara.
Efectivamente, esse Acórdão de 26/10/2010, e, por maioria de razão, o Acórdão de 15/03/2011, que decidiu o pedido de reforma, não se podem entender como constituindo decisões-supresa, para efeitos de dispensa do ónus de suscitação atempada da questão de constitucionalidade.
Como se diz no Acórdão do Tribunal Constitucional de 15 de Fevereiro de 2011 (Acórdão n. 81/2011)2:
«Para que uma decisão possa ser qualificada como decisão-surpresa de modo a considerar-se o recorrente constitucional dispensado do ónus de suscitação atempada (i.e. durante o processo) da questão de constitucionalidade, é necessário que a aplicação do preceito em causa – ou a aplicação do preceito numa determinada interpretação – surja como absolutamente inesperada e imprevisível de um ponto de vista objectivo.».
Por outro lado, a mera afirmação de que existe inconstitucionalidade na aplicação de determinadas normas do Código Civil - que foi o que o Apelante afirmou no requerimento em que pediu a reforma do Acórdão de 26/10/2010 -, no equivale a suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa.
A válida imputação de inconstitucionalidade, sendo mister que respeite, não a uma decisão, mas a uma norma (ou a uma sua dimensão parcelar ou interpretação), impõe, a quem pretende atacar, na perspectiva da sua compatibilidade com normas ou princípios constitucionais, determinada interpretação normativa, indicar concretamente a dimensão normativa que se considera inconstitucional.
III – Decisão:
Do acima exposto resulta que não se verificam os pressupostos necessários à admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional, de acordo com o disposto no art. 70º, nº 1, b), 72º, n.º 2 e 76º, nºs 1 e 2, da Lei nº 28/82, de 15/11, pelo que se indefere o requerimento de interposição de recurso de fls. 574.»
O Autor reclamou deste despacho para o Tribunal Constitucional, invocando as seguintes razões:
«[…]
O que está em causa, para se obter êxito com a presente acção, é tão somente a interpretação que se deve dar ao artº. 343º. do Código Civil.
Na douta sentença proferida na 1ª instância, para julgar a acção improcedente, fundamenta-se no facto de «o A. não ter provado que:
«os 1ºs réus nunca foram arrendatários do prédio referido em 3.1 (o prédio pretendido preferir-se).»
Como era de tal maneira impensável que fosse possível interpretar-se que competia ao A. provar este facto, o que é impossível, por ser um facto negativo, quando interpôs recurso não invocou a inconstitucionalidade, na apreciação daquele normativo legal. Como o douto acórdão que incidiu sobre o recurso interposto da decisão recorrida, manteve a mesma interpretação, então pediu-se o esclarecimento do mesmo, pedindo-se que o informassem como «há-de fazer a prova da não existência do contrato de arrendamento, se ele nunca existiu-».
O despacho que incidiu sobre este requerimento, nada esclareceu.
Por tal motivo, ao abrigo do disposto 669º., b) do C.P.C., requereu a reforma do douto acórdão,
E porque tal decisão foi uma «decisão surpresa», só com este requerimento é que suscitou a inconstitucionalidade, nos moldes em que o fez, no respectivo requerimento, que aqui se dá como reproduzido.
Era impensável que era ao A. que competia provar que o R. C. não tinha contrato de arrendamento.
O que tinha que se provar, para que a acção improcedesse, era que o contrato de arrendamento existia e não que ele não exista.
E essa prova competia ao R. e não ao A., por ser um facto negativo, impossível de ser provado por si.
Portanto, a inconstitucionalidade na interpretação das disposições legais invocadas no respectivo requerimento, foi atempadamente suscitada.
Termos em que, deve ser revogado o douto acórdão reclamado, o qual deve ser substituído por outro que admitida o recurso interposto.»
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões em que a desconformidade constitucional é imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas e não directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
No caso dos autos, segundo o requerimento de interposição de recurso, o mesmo tem por fundamento a inconstitucionalidade “na aplicação dos artºs. 240.º, 342.º, n.º 1 e 343.º, n.º 1, todos do Código Civil”, por violação o disposto nos artigos 202.º, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa.
Contudo, para além de a questão de constitucionalidade que o ora Reclamante pretende ver apreciada não estar colocada de forma clara e perceptível, uma vez que não é indicada qual a dimensão normativa dos preceitos legais referidos que é reputada de inconstitucional, a mesma também não foi suscitada no momento processual adequado: isto é, no recurso de apelação interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, em termos de este tribunal estar obrigado a conhecer da questão.
Com efeito, se analisarmos as alegações de tal recurso e as respectivas conclusões, constata-se que não foi aí feita qualquer referência a preceitos ou princípios constitucionais.
Ora, a questão de inconstitucionalidade deve ser suscitada antes de se mostrar esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo, na medida em que o recurso para o Tribunal Constitucional pressupõe a existência de uma decisão anterior do tribunal recorrido sobre tal questão.
Só em casos muito particulares – em que o recorrente não tenha tido oportunidade para suscitar tal questão antes de ser proferida a decisão recorrida, ou tendo tido essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de inconstitucionalidade, ou em que, por força de preceito específico, o poder jurisdicional não se tivesse esgotado com a prolação da decisão final – é que será admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre esta questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal recorrido.
É certo que o ora Reclamante, no requerimento em que pediu a reforma do acórdão proferido a 15 de Março de 2001 pelo Tribunal da Relação de Coimbra, fez contar o seguinte: “Pela jurisprudência das cautelas, na improcedência do pedido de reforma do douto acórdão, desde já se suscita a inconstitucionalidade na aplicação dos artigos 240º., 342º., nº. 1 e 343º., nº. 1, todos do Código Civil”.
No entanto, como tem sido reiteradamente entendido pelo Tribunal Constitucional, uma vez que o poder jurisdicional do tribunal a quo se esgota, em princípio, com a prolação da sentença ou acórdão e a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material ou lapso notório, não é causa de nulidade da decisão e não torna esta obscura, os incidentes pós-decisórios (pedido de aclaração, de reforma ou arguição de nulidade da decisão), não são, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar, pela primeira vez, uma questão de constitucionalidade.
Um dos casos em que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem admitido excepções ao princípio ou regra que obriga a suscitar a questão de inconstitucionalidade antes da prolação da decisão recorrida, prende-se com as situações em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de ser proferida a decisão recorrida por se tratar de “decisão-surpresa”, de conteúdo insólito ou imprevisível, tornando inexigível a prévia suscitação de tal questão, antes de a parte ser confrontada com o teor da decisão proferida.
Contudo, importa salientar que a jurisprudência constitucional vem fazendo um interpretação assaz exigente e rigorosa desta excepção, só a admitindo nos casos – absolutamente excepcionais ou anómalos – em que o recorrente é efectivamente confrontado com uma concreta aplicação ou interpretação normativa de todo imprevisível e inesperada, não lhe sendo razoavelmente exigível impor a antecipação de que o tribunal iria optar pela convocação ou interpretação da norma.
Assim, conforme vem sendo afirmando pelo Tribunal Constitucional, recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, susceptíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão, cumprindo-lhes adoptar as necessárias e indispensáveis precauções, em conformidade com um dever de litigância diligente e de prudência técnica, ponderando a estratégia e orientação processuais mais adequadas à salvaguarda dos seus direitos e interesses.
Cabe, pois, às partes a formulação de um juízo de prognose, analisando e ponderando antecipadamente as várias hipóteses de enquadramento normativo do pleito e de interpretação razoável das normas convocáveis para a sua dirimição, de modo a confrontarem atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que – na sua óptica – poderão inquinar tais normas ou interpretações normativas, não bastando a invocação de mera “surpresa subjectiva” da parte com a aplicação normativa realizada nos autos.
No caso concreto, no recurso de apelação interposto pelo ora Reclamante, o Reclamante poderia perfeitamente ter previsto a aplicação da dimensão normativa que agora pretende que o Tribunal Constitucional fiscalize, uma vez que ela foi igualmente seguida na sentença impugnada proferida pela 1.ª instância, devendo por isso o Reclamante ter antecipado a suscitação de tal questão, permitindo assim ao Tribunal recorrido que se pronunciasse sobre ela.
Não tem, pois, razão o Reclamante quando sustenta que a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra constituiu uma “decisão-surpresa”, razão pela qual só suscitou a questão de inconstitucionalidade no requerimento em que pediu a reforma da decisão recorrida.
Ora, uma tal forma de proceder é manifestamente insuficiente para que se possa considerar cumprido o ónus, que recai sobre o recorrente de, caso pretenda vir a recorrer para o Tribunal Constitucional, suscitar previamente, perante o tribunal recorrido, de modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa em termos de este a dever apreciar.
Não o tendo feito, carece agora de legitimidade para interpor o presente recurso, pelo que se revela correcta a decisão de não o admitir, com este fundamento.
Por este motivo deve ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A..
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 6 de Julho de 2011. – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.