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Processo n.º 766/10
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280º, nº 1, alínea b) da Constituição República Portuguesa e do artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, da decisão proferida, em conferência, pela 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 22 de Setembro de 2010 (fls. 722 a 740), para que seja apreciada a constitucionalidade da “interpretação dada às normas constantes nos artºs 50º do CP e 14º do RGIT, por violação do constante nos artºs 209º, nº 1, al. b) e 212º, nº 3 da CRP” (fls. 744).
2. Devidamente notificado para o efeito, o recorrente produziu alegações, das quais se podem extrair as seguintes conclusões:
“A) A prestação tributária assume natureza pública fiscal, à qual se aplicam regimes legais de natureza especial, apreciados por jurisdições demarcadas da comum – tribunais fiscais — cfr. art° 209°, n°1 al. b) parte final e 212°, n°3 da CRP, 18°, n°1 da Lei 3/99. de 13-01-1999. cfr. actualmente o disposto nos art°s 148° e ss. do C.Procedimento e Processo Tributário, aprovado pela Lei n° 15/2001, de 05-06-2001.
B) Por conseguinte, os tribunais judiciais não têm jurisdição para a execução de dívidas tributárias, ainda que relacionadas com a prática de infracção fiscal, dado que em sede de dívidas fiscais a administração surge munida de um jus imperii, que não têm os particulares, ou mesmo o Estado, no âmbito das relações privadas, e que fundamentam o mecanismo processual penal constante dos art°s 71° e ss do CPP.
C) Ao condicionar a suspensão da pena de prisão aplicada ao pagamento à Administração Fiscal de quantia exactamente igual ao montante da prestação tributária (para mais acrescida de juros) que se apurou estar em dívida — pelo devedor principal, que não o ora recorrente — o tribunal a quo proferiu, embora ao abrigo do art° 14° do RGIT, decisão equivalente a uma decisão de mérito sobre o pedido de indemnização civil, julgando o mesmo procedente.
D) O tribunal a quo não usou no caso em apreço da faculdade prevista no art° 51° do CP que permite que a suspensão da execução da pena de prisão seja subordinada ao cumprimento a ‘pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado (al.a) do n°1 do art° 51° do CP), qual está dentro do espírito do nosso ordenamento jurídico e não colide com nenhuma das restantes disposições, nomeadamente as constitucionais.
E) Pelo exposto, admitir que a norma do art° 14° do RGIT comporta o seguinte sentido: “o nosso ordenamento jurídico processual penal obriga a sujeição da suspensão da pena de prisão pela prática de crime de natureza tributária ao pagamento à Administração Tributária da prestação tributária e acréscimos legais — o que coincide substancialmente com uma decisão de mérito sobre o pedido de indemnização civil”, significa que tal norma, no aludido sentido e interpretação, contende com as normas dos art°s 209°, n°1 ai. b) parte final e 2 12°, n°3 da CRP, quando conjugadas com os art°s 148° e ss. do CPPT.” (fls. 766 a 767).
3. Devidamente notificado para o efeito, o Ministério Público veio apresentar contra-alegações, cujas conclusões são as seguintes:
«18º
Da análise da jurisprudência acabada de citar, pode retirar-se que este Tribunal Constitucional não apreciou, especificamente, a interpretação normativa agora suscitada pelo recorrente.
No entanto, relativamente a argumentos bastante mais convincentes e sólidos, dos que os apresentados pelo mesmo recorrente, este Tribunal Constitucional tem entendido, sem tergiversar, que o art. 14º do RGIT, conjugado com o art. 50º do Código Penal, não padece de qualquer inconstitucionalidade.
19º
Acresce que, para se poder conhecer do objecto do recurso de constitucionalidade, previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, é necessário que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, uma questão de inconstitucionalidade normativa (artigo 72º, nº 2, da LTC).
Ora, é um facto que o ora recorrente suscitou, oportunamente, perante o Tribunal da Relação de Lisboa, uma questão de constitucionalidade, que este apreciou.
20º
No entanto, conforme jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional «o cumprimento do ónus a que se refere o artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional não se basta (…) com a mera afirmação, perante o tribunal recorrido, de que certa interpretação normativa, não concretizada, é inconstitucional, pois que tal não traduz a invocação de uma verdadeira questão de inconstitucionalidade: o preceito vai mais longe, impondo ao recorrente a delimitação dessa questão, de forma a possibilitar ao tribunal recorrido a sua cabal compreensão e, portanto, a sua efectiva decisão» (cfr. a este propósito, por exemplo, o Acórdão nº 361/2006).
Ora, da motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (cfr. supra nºs 4 e 5 das presentes alegações), resulta que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada da seguinte forma:
Por conseguinte, ao condicionar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido ao pagamento da quantia referida, a decisão aclaranda viola as citadas regras de competência dos tribunais e faz uma aplicação/interpretação das normas dos arts. 50º do CP e 14 do RGIT que colide com as normas constantes nos arts. 209º, nº 1, al. b) e 212º, nº 3 da CRP, apreciação sobre inconstitucionalidade que aqui se suscita”.
21º
Será, no entanto, que uma tal formulação identifica, suficientemente, a interpretação normativa a retirar das normas constantes dos artigos 50º do Código Penal e 14º do Regime Geral das Infracções Tributárias-
Sinceramente, não se crê!
Com efeito, é entendimento reiterado deste Tribunal que o recorrente pode requerer a apreciação de uma norma, considerada esta na sua totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação (cf., entre muitos, o Acórdão nº 232/2002).
No entanto, neste último caso, tem “o ónus de enunciar, de forma clara e perceptível, o exacto sentido normativo do preceito que considera inconstitucional” (Acórdão nº 21/2006), uma vez que o objecto do recurso é definido no requerimento de interposição de recurso (cfr., entre outros, os Acórdãos nºs 286/00 e 293/07).
22º
Crê-se, em síntese, que o recurso em apreciação não merece provimento, não padecendo o art. 14º do RGIT, em conjugação com o art. 50º do Código Penal, de nenhuma inconstitucionalidade, designadamente por violação das regras de competência dos tribunais fiscais.» (fls. 796 a 798)
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Conforme admitido pelo próprio recorrente – e frisado pelo Ministério Público –, a questão da (alegada) inconstitucionalidade de interpretação normativa que sujeite a suspensão da execução de pena de prisão ao pagamento de dívidas de natureza fiscal, pelas quais o arguido foi condenado, a título de abuso de confiança fiscal, já foi objecto de inúmeras decisões por parte deste Tribunal Constitucional (cfr., a mero título de exemplo, Acórdãos n.º 256/03, n.º 335/03, n.º 376/03, n.º 500/05, n.º 309/06, n.º 543/06, n.º 587/06, n.º 29/07, n.º 61/07, n.º 327/2008 e n.º 556/09, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). O Tribunal Constitucional tem vindo a entender que tal interpretação normativa não padece de qualquer inconstitucionalidade, seja por violação do princípio da proporcionalidade, seja por violação do princípio da culpa. Não havendo razões para divergir deste entendimento, remete-se para a fundamentação expressa naquela jurisprudência.
Contudo, nos presentes autos, o recorrente coloca uma questão adicional, que diferencia a presente questão de inconstitucionalidade normativa das já apreciadas por este Tribunal.
Trata-se de saber se a interpretação conjugada das normas extraídas dos artigo 50º do CP e 14º do RGIT, segundo a qual cabe a um juiz criminal aferir da falta de pagamento de dívidas de natureza fiscal, para efeitos de aplicação da suspensão da execução de pena de prisão por abuso fiscal, atenta contra a reserva constitucional de jurisdição administrativa e tributária [artigos 209º, n.º 1, alínea b), e 212º, n.º 3, da CRP].
Ora, deve começar por frisar-se que a jurisprudência consolidada no Tribunal Constitucional tem vindo a considerar que não existe sequer uma reserva constitucional absoluta da jurisdição administrativa e tributária, pelo que o legislador não se encontra impedido de cometer a outros tribunais – que não os administrativos e tributários – o conhecimento de questões decorrentes de relações jurídico-administrativas e tributárias, desde que tal não descaracterize o modelo de dualidade de jurisdições [a título de exemplo, ver os Acórdãos n.º 347/97, n.º 458/99, n.º 421/2000, n.º 550/2000; 284/2003, n.º 211/2007, n.º 522/2008 e n.º 632/2009, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/]. Por conseguinte, apenas se impõe o respeito de um núcleo essencial de matérias que não podem ser extraídas ao conhecimento da jurisdição administrativa e tributária.
Acontece, porém, que a interpretação normativa cuja inconstitucionalidade ora se aprecia se limita a atribuir aos tribunais criminais a competência para julgar acerca do cometimento de um ilícito típico penal – in casu, abuso de confiança fiscal –, bem como para determinar a pena aplicável pela prática de tais factos. Com efeito, a ponderação acerca da eventual suspensão da execução da pena insere-se ainda dentro da competência dos tribunais criminais. Ao contrário do afirmado pelo recorrente, a interpretação normativa adoptada não pressupõe a competência dos tribunais criminais para a execução de dívidas fiscais, na medida em que a decisão recorrida apenas sujeita a suspensão da execução ao pagamento de tais dívidas. Contudo, em momento algum se arroga de qualquer competência para execução fiscal que cabe à administração tributária e aos tribunais fiscais, de acordo com a lei de procedimento e de processo tributário.
Assim sendo, a decisão recorrida apenas entendeu que, caso o recorrente, não procedesse ao pagamento voluntário das dívidas fiscais, no prazo de 5 (cinco) anos, proceder-se-ia à execução plena da decisão condenatória em prisão efectiva.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se julgar improcedente o presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 5 de Maio de 2011. – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.