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Processo n.º 726/10
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., SA, foi condenada pelo Tribunal Judicial de Castelo Branco, no pagamento (à aqui recorrida, Companhia de Seguros B., SA) do montante de 1978,86 euros pela sua responsabilidade num acidente na A23 (auto estrada por si concessionada). Inconformada, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (L.T.C.), “para apreciação da inconstitucionalidade material do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Junho, com a interpretação que lhe foi dada na douta Sentença recorrida.”
2. A recorrente apresentou alegações onde concluiu o seguinte:
“1.ª O presente recurso vem interposto da sentença do Tribunal Judicial de Castelo Branco de 17 de Setembro de 2009 que julgou totalmente procedente a acção declarativa interposta pela Recorrida, condenando a ora Recorrente ao pagamento de uma indemnização, aplicando ao caso sub judice o disposto no artigo 12.° da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho, interpretando-o no sentido de que a Recorrente ‘para afastar a presunção de incumprimento que sobre si impende, deveria pois a ré provar, em concreto, que aquele objecto surgiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na auto-estrada, negligente ou intencionalmente, por outrem’ (cfr. pág. 16 da sentença).
2.ª A condenação da Recorrente nos autos que correram termos no Tribunal a quo alicerçou-se numa interpretação que conduz à inconstitucionalidade material do artigo 12.° da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho, por violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade, enquanto concretizador do princípio do Estado de Direito Democrático, da tutela judicial efectiva e do processo equitativo.
3.ª A Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional dê resposta à seguinte questão: A norma constante do artigo 12.° da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho, na interpretação segundo a qual compete à Ré, na qualidade de concessionária de auto-estrada, para afastar a sua responsabilidade, demonstrar concretamente qual foi o evento alheio à sua esfera de actuação que originou o alegado acidente (não bastando provar que não foi negligente ou que agiu diligentemente) e, assim, condenando-a sem atender à sua culpa para a verificação do acidente e impondo-lhe a realização de uma prova diabólica, é inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade, da tutela judicial efectiva e do processo equitativo, consagrados nos artigos 2.º e 20.° da Constituição da República Portuguesa-
4.ª Os princípios da proporcionalidade ou da proibição do excesso e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, enquanto princípios densificadores do princípio do Estado de Direito democrático, conferem aos cidadãos uma dimensão garantista ou de defesa contra actuações do Estado. Em particular, a liberdade de conformação do legislador encontra-se limitada pela necessidade de observância daqueles princípios, que, nessa medida, constituem parâmetros de avaliação da constitucionalidade dos actos dos poderes públicos.
A questão colocada ao Tribunal Constitucional consubstancia uma questão nunca antes apreciada por este Tribunal, não se questionando a opção do legislador instituir um novo ónus de prova, mas antes a dimensão interpretativa sufragada pelo Tribunal recorrido quanto ao grau de prova que é exigível e necessário realizar para se considerar esse ónus preenchido.
6.ª A interpretação que o Tribunal recorrido perfilha do ónus de prova que o legislador impôs à Recorrente — no exercício da respectiva liberdade de conformação quanto à repartição do ónus de prova pelas partes e cuja constitucionalidade não se questiona (cfr., neste sentido, Ac. do Tribunal Constitucional n.° 597/09, relatado pelo Conselheiro João Cura Mariano, no Processo n.° 981/08, disponível para consulta em www.tribunalconstitucional.pt e, no mesmo sentido, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, 3. Edição, Coimbra Editora, 2000, págs. 241 e 242), transformou o ónus imposto à Recorrente num ónus desproporcional, enquanto concretizador do princípio do Estado de Direito Democrático, e que em última ratio consubstancia uma violação aos princípios do processo equitativo e do acesso ao direito.
7.ª Os ónus impostos às partes (de que os ónus de prova são uma modalidade, na qual se insere o novo ónus de prova consagrado no artigo 12.° da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho) estão abrangidos pelo Princípio do Processo Equitativo e podem conflituar com este (cf., neste sentido, Ac. do Tribunal Constitucional n.° 597//09, relatado pelo Conselheiro João Cura Mariano, no Processo n.° 981/08, disponível para consulta em www.tribunalconstitucional.pt.
8.ª O Tribunal Constitucional, para aferir da conformidade dos ónus processuais impostos às partes com os princípios constitucionais tem indicado dois requisitos que deverão estar previstos, sob pena de os ónus poderem conflituar com os princípios do processo equitativo e do acesso ao direito: a) a consagração do ónus deve ter utilidade, não se limitando a ser uma mera formalidade; b) o seu cumprimento pela parte onerada não se pode revelar de dificuldade excessiva (cf. neste sentido, Ac. do Tribunal Constitucional n.° 259/02, relatado pela Conselheira Maria Helena Brito, no Processo n.° 101/02, disponível para consulta em www.tribunalconstitucional.pt.
9.ª No estabelecimento do novo ónus de prova previsto no artigo 12.º da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho foram considerados, na perspectiva do Tribunal Constitucional, dois motivos: a) ‘fazer recair o ónus de prova sobre aquele que está em melhores condições para fornecer os elementos de prova’; b) incentivar ‘ao reforço por parte das concessionárias das medidas destinadas a evitar que estes eventos ocorram’ (cf. Ac. do Tribunal Constitucional n.° 596/09, relatado pelo Conselheiro Benjamim Rodrigues, no Processo n.° 951/08, disponível para consulta em www.tribunalconstitucional.pt).
10.ª Com a interpretação realizada pelo Tribunal recorrido do artigo 12.° da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho, o estabelecimento deste ónus mostrar-se-á inútil, na medida em que a função de ‘incentivo ao reforço por parte das concessionárias das medidas destinadas a evitar que estes eventos ocorram’ saíra frustrada, na medida em que sufragando-se essa interpretação, cumprir com as obrigações de segurança ou não cumprir, ser-se diligente ou ser-se negligente redundará sempre na mesma decisão por parte do Tribunal: a condenação, salvo se for indicado pela concessionária um culpado ou a origem de proveniência do objecto, animal ou líquido.
11.ª A referida interpretação constitui uma intervenção restritiva do direito de acesso à justiça da Recorrente, envolvendo a preterição do subprincípio da adequação do princípio da proporcionalidade por não se revelar o meio mais idóneo para alcançar o fim de incentivo ou de reforço do cumprimento das obrigações de segurança pelas concessionárias de vias rodoviárias.
12.ª No caso dos presentes autos, o Tribunal Recorrido, apesar de ter dado como provado, nomeadamente, que a Recorrente efectuou patrulhamentos na concessão, que passou no local do acidente 29 minutos antes do mesmo ocorrer e que não tinha conhecimento da existência do objecto até ao alerta do acidente (cf. alíneas s) a bb) do Ponto 5 do Enquadramento Fáctico), considerou que a Recorrente não tinha cumprido com o ónus que a lei lhe impõe no artigo 12.º da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho e proferiu decisão de condenação.
13.ª Atenta a interpretação perfilhada pelo Tribunal Recorrido do artigo 12.° da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho, é legítimo equacionar a hipótese de a decisão do Tribunal vir a ser a mesma caso a Recorrente não tivesse efectuado qualquer patrulhamento, pelo que os efeitos produzidos por tal entendimento podem revelar-se indiferentes, inócuos ou até mesmo negativos, na perspectiva da prossecução do fim de incremento dos deveres de segurança das concessionárias.
14.ª No que concerne ao requisito da ‘excessiva dificuldade’ para a parte do ónus imposto à Recorrente, a interpretação do artigo 12.° da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho sufragada pelo Tribunal recorrido, determina para concessionárias de auto-estradas o cumprimento de um ónus excessivo e desproporcionado, dado que a prova que lhes é imposta realizar é uma prova diabólica, não sendo admissível por lei.
15.ª De facto, se para se eximir à responsabilidade que sobre si emerge não bastará à Recorrente demonstrar o cumprimento das suas obrigações de segurança, tendo antes de indicar o modo concreto de intromissão do animal ou a proveniência do objecto ou líquido, a sua condenação acontece sem se atender à sua culpa para a verificação do acidente, acabando antes por radicar numa responsabilidade objectiva, título de imputação da responsabilidade não previsto na lei.
16.ª A norma do artigo 12.° da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho, na interpretação dela feita pelo Tribunal recorrido, revela-se ainda desproporcionada por ser desconforme com a máxima da necessidade do princípio da proporcionalidade, em virtude de ter sido preferido o meio mais gravoso e oneroso para a Recorrente, em detrimento de um outro igualmente idóneo para prosseguir os fins públicos de segurança rodoviária e da garantia da posição processual do lesado.
17.ª Efectivamente, a decisão dos Venerandos Conselheiros do Tribunal Constitucional que qualifique aquela interpretação como inconstitucional não posterga a prossecução dos aludidos fins públicos, visto que estes continuarão a ser prosseguidos com a mesma eficácia na medida em que permanece a exigência de que os concessionários de vias rodoviárias sejam escrupulosos no respeito dos respectivos deveres de vigilância e de segurança, cabendo-lhes ainda demonstrar em concreto, em especial quando a questão for colocada em juízo, que esses deveres foram observados.
18.ª A medida restritiva do direito fundamental de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva, imposta pelo Tribunal recorrido mercê da interpretação efectuada em concreto, determinou um sacrifício do bem jurídico da Recorrente manifestamente desproporcionado em relação ao benefício que se obteve com a tutela do bem jurídico da utente da auto-estrada, pois, não se contentando com a demonstração pela Recorrente do cumprimento de deveres de segurança e de que a causa do acidente foi independente da diligência daquela, o Tribunal a quo adoptou uma interpretação cujo resultado inevitável é a impossibilidade de ilisão da presunção, com claro prejuízo para a posição jurídica subjectiva da Recorrente.
19.ª Em face do referido, forçoso será concluir que a interpretação adoptada pelo Tribunal a quo constitui uma intervenção restritiva do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva da Recorrente, assim como contende com os três subprincípios do princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), traduzindo-se, em suma, numa medida inconstitucional por ofensa do consagrado nos artigos 2.° e 20.º da Constituição.”
3. A Recorrida contra alegou, concluindo do seguinte modo:
“I - O recurso interposto carece, em absoluto, de fundamento legal, pelo que ao mesmo deve ser negado provimento.
II - A conclusão de que a instituição da presunção de culpa e consequente inversão do ónus da prova consagrado no artigo 12.° da Lei 24/2007 não viola as normas constitucionais é aceite por ambas as partes (Recorrente e Recorrida).
III - Contudo, no entendimento da Recorrente, a dimensão interpretativa perfilhada na douta sentença ora em crise não cumpre com os dois requisitos que este douto Tribunal já previu para a constitucionalidade da imposição de ónus às partes, ou seja, mostra-se inútil ao fim que visa prosseguir e o seu cumprimento mostra-se excessivo e desproporcionado.
IV - A Recorrida, ao invés, entende que a interpretação perfilhada pelo douto Tribunal a quo tem consagração constitucional não devendo merecer qualquer reparo.
V - A simples prova genérica dos deveres de segurança será sempre insuficiente, sendo, por isso, necessário, especificar, alegar e provar, concretamente, o cumprimento das obrigações de segurança e relativamente a cada utilizador.
VI - O que aqui está em causa não é tanto o cumprimento genérico dos deveres de segurança.
VII - Era necessário demonstrar, por parte da concessionária, que se encontravam esgotados todos os meios e possibilidades que razoavelmente estavam ao seu alcance no sentido de evitar a permanência de uma recauchutagem de pneu de um veículo pesado na via.
VIII - Só a dimensão interpretativa perfilhada na douta sentença ora em crise é que, positivamente, incentivará a Recorrente a accionar todos os meios de prevenção e a adoptar condutas pró-activas em prol da segurança dos utentes.
IX - Meios esses que não passam, obviamente e tão só, pelo patrulhamento.
X - Donde, a instituição da presunção de culpa e consequente inversão do ónus da prova consagrado no artigo 12.º da Lei 24/2007 não se tratou de mera formalidade, mas, ao invés, pretendeu, precisamente, incentivar a Recorrente a ser pró activa na concretização de medidas concretas que aumentem os níveis de segurança.
XI - No que ao segundo fundamento de inconstitucionalidade invocado diz respeito - requisito da ‘excessiva dificuldade’ do ónus redundar numa prova diabólica - terá, também, de soçobrar.
XII - O legislador não pretendeu onerar a Recorrente com um encargo excessivo, obrigando-a a demonstrar que assumiu uma diligência superior à do ‘bónus pater famílias’.
XIII - Tanto mais que estamos a Falar de duas partes (concessionária vs. utente) que não estão no mesmo plano de igualdade de armas e de meios.
XIV - O encargo correspondente ao ónus imposto é proporcional aos meios técnicos, humanos e financeiros que a Recorrente tem ao seu dispor.
XV - Não seguir este entendimento redundará, isso sim, numa prova diabólica para o utente, na medida em que este terá que demonstrar quais as circunstâncias que permitiram a permanência de uma recauchutagem de pneu de um veículo pesado na via ou a presença do animal na via.
XVI - A que acresce a circunstância de o utente não gozar aprioristicamente qualquer possibilidade de controlo sobre a fonte do perigo (in Acórdão n°597/2009) e ulteriormente não possuir os meios técnicos e humanos que a Recorrente dispõe na recolha de prova.
XVII - Não há, assim, qualquer prova diabólica. Ao invés o que o legislador previu foi a instituição de um ónus que a Recorrente já sabe que sobre si impende e que, em face disso, lhe permitirá desenvolver esforços probatórios que só ao alcance dela se encontram, quer pela capacidade económica que dispõe, quer pela possibilidade que também tem de alocação de meios humanos e técnicos para esse fim.
XVIII - Destarte, atento tudo o exposto, deverá ser negado provimento ao recurso.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A sentença recorrida, ao apreciar os pressupostos da responsabilidade civil, de que depende o direito de indemnização, considerou aplicável ao caso o disposto no artigo 12.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 24/2007. Pelo que o objecto do recurso será limitado à apreciação da constitucionalidade desta norma, interpretada no sentido de que a recorrente para afastar a presunção de incumprimento que sobre si impende, deveria provar, em concreto, que aquele objecto surgiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na auto-estrada, negligente ou intencionalmente, por outrem.
Ao mesmo tempo que a recorrente desenha, pela forma acabada de referir, o objecto do recurso de constitucionalidade, erigindo, consequentemente a dimensão normativa que pretende ver sindicada, alega, também, como o já tinha invocado na contestação que: “ (…) pretende que o Tribunal Constitucional dê resposta à seguinte questão: A norma constante do artigo 12.º da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho, na interpretação segundo a qual compete à Ré, na qualidade de concessionária de auto-estrada, para afastar a sua responsabilidade, demonstrar concretamente qual foi o evento alheio à sua esfera de actuação que originou o alegado acidente (não bastando provar que não foi negligente ou que agiu diligentemente) e, assim, condenando-a sem atender à sua culpa para a verificação do acidente e impondo-lhe a realização de uma prova diabólica, é inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade, da tutela judicial efectiva e do processo equitativo, consagrados nos artigos 2.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa-”.
Neste particular, consta da decisão recorrida:
“Cumpre agora averiguar se, face a estes factos, a ré logrou elidir a presunção de incumprimento que sobre si impende, provando que actuou com diligência e sem qualquer culpa de sua parte.
Face à factualidade apurada, resulta que a ré provou genericamente ter cumprido as suas obrigações de vigilância.
Não obstante o cumprimento dessas obrigações, o certo é que permanecia na faixa de rodagem um objecto de grandes dimensões - uma recauchutagem de pneu de um veículo pesado - o que nos leva a concluir que, em princípio, existe um incumprimento concreto por parte da ré, pois ela mediante o contrato que celebrou com o Estado, comprometera-se, para além do mais, a garantir permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas. E fora de qualquer dúvida, a existência numa auto-estrada, via por essência de trânsito automóvel rápido, de uma recauchutagem de pneu de um veículo pesado coloca sérios problemas de segurança rodoviária. Por outro lado, a existência daquele objecto na via, nega a obrigação de segurança viária que cabe a R. proporcionar aos utentes da via, correspondendo esse surgimento a uma perigosa violação da segurança do tráfego automóvel.
Na verdade, pese embora a ré tenha provado que genericamente cumpriu as suas obrigações decorrentes do contrato de concessão, o certo é que não demonstrou, no caso concreto, a observância desses mesmos deveres.
Era à Ré que cabia provar a proveniência do objecto existente na via, uma vez que só ela tem (e, se não tem, deveria ter) os meios idóneos a responder a isso, por ser a concessionária da via, com as inerentes obrigações, designadamente, as de permanentemente garantir uma via desobstruída e em adequadas condições, de molde a permitir a circulação rápida (dada a natureza da via) dos veículos em total segurança e comodidade, a qualquer hora do dia e/ou da noite. Acontece que, quanto ao caso concreto, chegamos à conclusão que não o fez, revelando-se a apurada periodicidade do patrulhamento efectuado, notoriamente insuficiente para evitar o sucedido (...).
Para afastar a presunção de incumprimento que sobre si impende, deveria pois a ré provar, em concreto, que aquele objecto surgiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na auto-estrada, negligente ou intencionalmente, por outrem. Isto é, sempre que há um acidente devido a um objecto existente na auto-estrada, presume-se o incumprimento da concessionária. Esta só afastará essa presunção se demonstrar que a existência do objecto na via, não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem. Ou, como se refere no referido acórdão do STJ de 22.6.2004, ainda que a propósito dos acidentes causados pela introdução de animais na via ‘terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que lhe não deixou realizar o cumprimento (...) Essa prova só terá sido produzida quando se conhecer, em concreto, o modo de intromissão do animal. A causa ignorada não exonera o devedor, nem a genérica demonstração de ter agido diligentemente’.
Consideramos que é esta a solução mais equilibrada e justa. A solução contrária, de se considerar suficiente a prova genérica de que a concessionária cumpriu as obrigações decorrentes do contrato de concessão, acabaria por colocar nos ombros do lesado a produção de uma prova que se revelaria de todo difícil, ou até impossível, de fazer. Na verdade, ‘nos acidentes com animais (ou com outros objectos) em auto-estradas quem mais facilmente pode provar a proveniência do animal (ou objectos) é a concessionária. Só ela tem, pode ou deve ter, os meios idóneos à monitorização do tráfego, da circulação viária e da segurança, meios que lhe devem permitir detectar a introdução na via de animais ou de objectos nocivos à circulação automóvel. O utilizador da via depara-se com a óbvia e notória dificuldade natural em recolher meios ou elementos de prova. Não pode, como é notório, permanecer na auto-estrada com vista a determinar a causa da introdução do animal aí, nem sequer tem, normalmente, equipamentos técnicas de recolha de prova.’ (Ac. STJ de 9.09.2008, Processo n.º 08P1856, disponível em www.dgsi.pt).
Por outro lado, é também esta a solução que melhor se coaduna com a letra da lei e o espírito do legislador (a protecção dos utentes das auto-estradas e a responsabilização/interiorização do sentido de responsabilidade da concessionária, em quem o Estado confiou o exercício da actividade pública de exploração da autoestrada).”
5. Ora do decidido resulta que, não obstante a recorrente tenha provado que genericamente cumpriu as suas obrigações decorrentes do contrato de concessão, o certo é que não demonstrou, na situação em concreto, a observância desses mesmos deveres.
Com efeito, era a ela — recorrente — quem cabia provar a proveniência do objecto existente na via, uma vez que só ela dispõe dos meios técnicos que possibilitem responder a tal situação, através de adequada monitorização, “por ser a concessionária da via, com as inerentes obrigações, designadamente, as de permanentemente garantir uma via desobstruída e em adequadas condições, de molde a permitir a circulação rápida (dada a natureza da via) dos veículos em total segurança e comodidade, a qualquer hora do dia e/ou da noite”.
Nestes termos, para afastar a presunção de incumprimento que onera a recorrente, deveria ter provado, em concreto, que aquele objecto surgiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na auto-estrada, negligente ou intencionalmente, por outrem.
Diversamente do invocado pela recorrente, e, afastando a conclusão alcançada, no sentido de estarmos perante uma ‘prova diabólica’ – ou, sem conceder, que, a existir, nunca esse tipo de prova radica na norma, mas na eventual aplicação dada ao preceito – sucede que já este Tribunal, no Acórdão n.º 597/2009 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), decidiu que:
“Para demonstrar a culpa da concessionária auto-estrada onde ocorreu o acidente provocado pelo atravessamento de um animal, não é necessário ao lesado demonstrar que esse atravessamento resultou do incumprimento por aquela dos deveres de garantia da segurança na auto-estrada que lhe foi concessionada, bastando que esta não consiga demonstrar que, no caso concreto, cumpriu esses deveres” (o sublinhado é nosso).
E, mais à frente acrescenta:
“ (...) são notórias as dificuldades do utente lesado demonstrar tais circunstancias e que permitem elaborar um juízo de culpa, uma vez que aquele é invariavelmente alheio ao aparecimento do animal na auto-estrada, não goza aprioristicamente de qualquer possibilidade de controlo sobre a fonte do perigo e revela a posteriori uma incapacidade quase absoluta de recolha de elementos de prova sobre a causa do animal naquele local.
Perante a insuperabilidade destas dificuldades está plenamente fundamentado o estabelecimento de uma presunção de culpa determinante duma inversão do ónus da prova.”
Assim, contrariamente ao invocado, é verificável que a aludida fundamentação do Acórdão n.º 597/2009 é plenamente convocável para a situação dos presentes autos, por se encontrar em análise, tão-somente, o artigo 12° n° 1 da Lei n° 24/2007.
A aludida norma do n.° 1 do artigo 12.° do citado diploma legal foi também apreciada pelo Tribunal Constitucional, noutros Acórdãos (n.°s 596/2009, 629/2009, 98/2010 e 375/2010 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt ).
Particularmente, no primeiro acórdão referido, o Tribunal não julgou inconstitucional a norma constante do artigo 12° n° 1 da Lei n° 24/2007, de 18 de Julho, na acepção segundo a qual, “em caso de acidente rodoviário em auto- estradas, em razão de atravessamento de animais, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária e esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem, tendo de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral que não deixou realizar o cumprimento”.
Nestes arestos, o Tribunal, apreciando casos semelhantes ao dos presentes autos, se bem que a situação fáctica naqueles era subsumida pela alínea b) — atravessamento de animais — e não pela alínea a), (no caso, objectos existentes nas faixas de rodagem), pronunciou-se unanimemente pela não inconstitucionalidade da disposição legal em causa, considerando, além do mais, que a mesma não violava os princípios do Estado de direito e da confiança, nem os princípios da igualdade, da proporcionalidade ou do acesso ao direito e aos tribunais, nele se incluindo o direito ao processo equitativo.
E dúvidas não restarão que a norma que prevê, quer o atravessamento de animais, como o surgimento de obstáculos na via, são duas subespécies dessa mesma norma, em que se estabelece a obrigação de segurança rodoviária que cabe à recorrente proporcionar aos utentes da via, correspondendo esse surgimento a uma perigosa violação da adequada protecção do tráfego automóvel. A razão de ser da opção legislativa é, pois, idêntica.
Não colocando o presente caso qualquer questão nova que deva ser apreciada, reitera-se aqui esta jurisprudência, inteiramente aplicável ao caso em apreço.
III - Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UCs.
Lisboa, 3 de Maio de 2011.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – vencido, conf. declaração – Rui Manuel Moura Ramos.
Processo n.º 726/10
1ª Secção
Relator: José Borges Soeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido do não conhecimento do recurso por falta de objecto idóneo.
Ultrapassado o problema, tenderia a julgar inconstitucional a norma que impõe à ré, para lograr afastar a presunção de incumprimento do dever que a onera, a prova de que o obstáculo colocado na faixa de rodagem «surgiu de forma incontrolável para si, ou foi lá colocado, negligente ou intencionalmente, por outrem», por violação do disposto na parte final do n.º 4 do artigo 20º da Constituição.
Na verdade, manifestei a opinião de que a jurisprudência relativa a outros casos, respeitantes, designadamente, ao atravessamento da faixa de rodagem por animais, não é automaticamente aplicável ao caso presente sem uma ponderação do exercício concreto que, em cada situação, é imposto à ré pela disposição impugnada.- Carlos Pamplona de Oliveira.