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Processo n.º 881/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos dos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de Ponte de Lima, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso de constitucionalidade, da decisão daquele Tribunal, na parte em que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, da norma do artigo 160.º, n.º 3, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.
2. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1. Pela prática de uma contra-ordenação, foi aplicada ao arguido, pela autoridade administrativa competente, a sanção acessória de inibição de conduzir.
2. A norma do n.º 3 do artigo 160.º do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, estabelece que “quando haja lugar à apreensão do título de condução, o condutor é notificado para no prazo de 15 dias úteis, o entregar à autoridade competente, sob pena de crime de desobediência, devendo, nos casos previstos no n.º 1 ser efectuada com a notificação da decisão”.
3. Esta norma, enquanto fixa um prazo de 15 dias úteis para a entrega do título de condução, quando na redacção anterior (artigo 166.º, n.º 3 do Código da Estrada versão do Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro que reproduziu o n.º 3 do artigo 167.º, do mesmo Código, na redacção do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro) esse prazo era de 20 dias, não é organicamente inconstitucional.
4. Tal norma, na parte em que qualifica como crime de desobediência a não entrega à entidade competente do título de condução, no prazo anteriormente referido, não é materialmente inconstitucional, não violando o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).
5. Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso.»
3. O recorrido não contra-alegou.
4. Dos autos emergem os seguintes elementos, relevantes para a presente decisão:
- A. foi condenado, por decisão da Direcção-Geral de Viação – Delegação de Viana do Castelo, na coima de 120,00€ e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias, pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 84.º, n.ºs 1 e 4, 138.º e 145.º, n.º 1, alínea n), do Código da Estrada.
- Inconformado, o arguido interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal Judicial de Ponte de Lima, que negou provimento ao recurso, determinando, além do mais, que o arguido entregasse a sua carta de condução, no prazo de quinze dias após o trânsito em julgado da decisão, no serviço regional da ANSR da área da sua residência.
- Ainda inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, que lhe negou provimento.
- Segundo informação prestada pelas autoridades competentes, o arguido, no prazo que lhe fora fixado, não entregou o seu título de condução para cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir.
- Na sequência, foi extraída e entregue certidão ao Ministério Público “para efeitos de instauração de procedimento criminal contra o arguido pela prática de um crime de desobediência” (fls. 43 e 44).
- No inquérito instaurado, o Ministério Público propôs a suspensão provisória do processo por dois meses, mediante a injunção da entrega da quantia de € 200 a uma IPSS, no prazo da suspensão (fls. 48), e não se tendo o arguido oposto a essa proposta (fls. 55), foi proferido, pelo Ministério Público, despacho nesse sentido e os autos conclusos ao Juiz de Instrução Criminal para efeitos do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do CPP.
- No despacho que veio a proferir, o Juiz de Instrução recusou aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, o artigo 160.º, n.º 3, do Código da Estrada. Afirma-se nesse despacho que aquela norma, podendo levar ao estabelecimento de um prazo mais curto para a entrega do título, do que aquele que vigorava anteriormente, é organicamente inconstitucional, por violação do artigo 165º, nº 1, alínea c), da Constituição. Acrescenta-se que a lei estradal tem mecanismos que, antes do direito penal, devem ser chamados a intervir, devendo, designadamente, ser dado cumprimento ao n.º 4 do artigo 160.º do Código Penal e deixa-se subentendida uma eventual inconstitucionalidade material da norma, por violação do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. Em consequência da recusa de aplicação da norma do artigo 160.º, n.º 3, do Código da Estrada, o despacho conclui que o arguido não praticou um crime, opondo-se à suspensão do processo.
- É deste despacho que vem interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
5. A norma do artigo 160.º, n.º 3, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, estabelece o seguinte:
«Quando haja lugar à apreensão do título de condução, o condutor é notificado para, no prazo de 15 dias úteis, o entregar à entidade competente, sob pena de crime de desobediência, devendo, nos casos previstos no n.º 1, esta notificação ser efectuada com a notificação da decisão.»
Este preceito corresponde, com alterações, ao anterior n.º 3 do artigo 166.º do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro, que rezava assim:
«Nos casos previstos nos números anteriores, o condutor é notificado para, no prazo de 20 dias, entregar o título de condução à entidade competente, sob pena de desobediência.»
Por seu turno, este n.º 3 do artigo 166.º correspondia integralmente ao n.º 3 do artigo 167.º do Código da Estrada, na versão do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, que foi decretado no uso da autorização legislativa concedida pelos artigos 1.º a 3.º da Lei n.º 97/97, de 23 de Agosto.
O artigo 3.º, alínea c), desta Lei n.º 97/97, dispunha que o Governo ficava autorizado a estabelecer a «punição, como crime de desobediência, da não entrega da carta ou licença de condução à entidade competente pelo condutor proibido ou inibido de conduzir ou a quem tenha sido decretada a cassação daquele título».
Conclui-se, assim, que o crime de desobediência pela não entrega da carta ou licença de condução à entidade competente foi inicialmente previsto no uso da citada autorização legislativa.
6. Nos presentes autos está em causa a inconstitucionalidade orgânica, por falta de autorização legislativa, da norma do artigo 160.º, n.º 3, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na medida em que veio alterar a redacção que constava do anterior artigo 166.º, n.º 3, do mesmo Código, a qual reproduzia a norma introduzida, pelo citado Decreto-Lei n.º 2/98, a coberto da já referida autorização legislativa.
Como este Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, uma norma emitida sem autorização parlamentar só padece do vício de inconstitucionalidade orgânica quando estipula qualquer efeito de direito inovatório que devesse recair na competência reservada da Assembleia da República, não sendo possível imputar-lhe esse vício quando se limita a reproduzir o regime preexistente (cfr., entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 310/2009 e 211/2007).
Importa, por isso, perceber se a norma do artigo 160.º, n.º 3, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, introduziu alguma inovação relativamente à norma do artigo 166.º, n.º 3, que a antecedeu (sendo certo que esta, como já referido, reproduzia a norma introduzida a coberto da citada autorização legislativa).
Verifica-se que a norma do artigo 160.º, n.º 3, do Código da Estrada (na redacção de 2005), mantém a qualificação, como crime de desobediência, da não entrega do título de condução à entidade competente, nos casos em que há lugar à apreensão desse mesmo título, designadamente, como neste caso aconteceu, para cumprimento da sanção de inibição de conduzir. A redacção da norma do artigo 160.º, n.º 3, aqui questionada, apenas diverge da previsão legal que a antecedia no que respeita ao prazo previsto para a entrega do título de condução à entidade competente: enquanto que anteriormente esse prazo era de “20 dias” (contados de forma contínua), agora está previsto o prazo de “15 dias úteis”.
Não se afigura que esta simples alteração da forma de contagem do prazo, que conduz à fixação de um lapso temporal para entrega do título de condução substancialmente idêntico ao que já se encontrava em vigor, tenha significado e relevo bastantes para traduzir uma invasão da esfera de competência legislativa da Assembleia da República para a “definição de crimes”.
A lei de autorização legislativa para punição como crime de desobediência da não entrega do título de condução (Lei n.º 97/97, de 23 de Agosto) não referia qualquer prazo como elemento essencial do tipo de crime. No uso dessa autorização, entendeu o Governo fixar um prazo de 20 dias. O prazo de 15 dias úteis, instituído pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, não representa uma alteração substancial do regime legalmente autorizado.
De resto, não pode perder-se de vista que o direito penal intervém aqui em sede puramente garantística de um dever definido por um outro sector do ordenamento. O conteúdo da norma de comportamento vai buscar-se a uma ordem de condutas não penal. E quando assim é, «parece razoavelmente seguro, em todo o caso, que a exigência de lei formal haja de radicar na norma penal sancionatória, mas não também necessariamente no acto de fundamentação constitutiva da punibilidade (…)» - FIGUEIREDO DIAS, “Para uma dogmática do direito penal secundário. Um contributo para a reforma do direito penal económico e social português”, Revista de Legislação e Jurisprudência, 117.º, 48.
Improcede, assim, a invocada inconstitucionalidade orgânica.
7. Embora sem o afirmar claramente, a decisão recorrida suscita a eventual inconstitucionalidade material da norma em questão, por violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição), na medida em que existiriam outros meios de obrigar à entrega da carta de condução menos gravosos do que a tutela penal.
Pelas razões já avançadas pelo Ministério Público nas suas alegações, esta invocação carece de fundamento.
A definição de crimes, penas e medidas de segurança acarreta uma restrição ao direito à liberdade (artigo 27.º, n.º 1, da Constituição), pelo que a sua regulação deve obediência estrita aos pressupostos materiais, que legitimam, constitucionalmente, as restrições de direitos, liberdades e garantias fundamentais, constantes do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição.
No entanto, a limitação da liberdade de conformação legislativa, neste domínio, só pode ocorrer, quando a sanção se apresente como manifestamente excessiva. Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, «o juízo sobre a necessidade de lançar mão desta ou daquela reacção penal cabe, obviamente, em primeira linha, ao legislador, em cuja sabedoria tem de confiar-se, reconhecendo-se-lhe uma larga margem de discricionariedade» (Acórdão n.º 108/99, citado no Acórdão n.º 595/2008, onde se resume esta orientação jurisprudencial).
Apesar de versar questão algo distinta, cumpre aqui lembrar o Acórdão n.º 149/2000, que decidiu não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 161.º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, na parte em que tipifica como crime de desobediência o comportamento do condutor que, notificado para entregar a carta ou licença de condução a apreender pela entidade competente, o não faça no prazo legal. Neste aresto discutiu-se se a norma em causa tratava de forma discriminatória o condenado na sanção acessória de inibição de conduzir, por referência ao condenado na pena acessória equivalente. E conclui-se que sendo distintos, por natureza, os meios ao alcance das entidades administrativas e dos tribunais, são também distintas, por natureza, as formas de executar as respectivas decisões. Ainda a este respeito, saliente-se, a latere, que a questão decidida neste acórdão colocar-se-ia hoje de modo diverso, pois, segundo um certo entendimento, aquele que não entrega a carta após ser condenado pela prática de crime a que corresponda a pena acessória de proibição de conduzir pratica o crime previsto no artigo 353.º do Código Penal (neste sentido, cfr., entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23.06.2010, P. 1001/08.6TAVIS.C1 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, UCP, 2007, 1278).
Conclui-se que, no caso em apreço, não se mostra manifestamente desproporcionada, em termos de o Tribunal Constitucional a poder censurar, a restrição ao direito fundamental da liberdade traduzida na criminalização, como desobediência, da omissão de entrega do título de condução à entidade administrativa competente, para cumprimento da sanção de inibição de conduzir.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Não julgar inconstitucional a norma do artigo 160.º, n.º 3, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro;
Consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da sentença recorrida em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 6 de Julho de 2011. – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.