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Processo n.º 621/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Por sentença de 29 de Março de 2008, no âmbito do Processo Comum Colectivo que, sob o n.º 14217/02.OTDLSB, correu termos pela 2ª Vara Criminal de Lisboa, a arguida A. foi condenada, em cúmulo jurídico, pela prática de crimes de burla qualificada, emissão de cheque sem provisão, falsificação e insolvência dolosa, na pena única de 10 (dez) anos de prisão e proibida do exercício de qualquer cargo na função pública, pelo prazo de 5 (cinco) anos após o cumprimento da pena de prisão.
A arguida interpôs recurso da decisão condenatória (acórdão do tribunal colectivo) para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 21 de Maio de 2009, lhe concedeu provimento parcial, do que resultou a condenação na pena única de 6 (seis) anos de prisão e a revogação da pena acessória. Quer a arguida, quer o Ministério Público interpuseram recurso do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça.
A arguida interpôs ainda um outro recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de um acórdão posterior, em que a Relação decidiu não apreciar um requerimento em que a arguida invocava a incompetência do tribunal de 1ª instância que procedeu ao seu julgamento com fundamento em que na sua composição fora violado o princípio do juiz natural.
Por acórdão de 12 de Maio de 2010, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu: (i) rejeitar, por inadmissibilidade, o recurso, quanto aos crimes pelos quais a arguida foi condenada e questões com eles relacionadas; (ii) admitir o recurso da arguida relativamente à pena única; (iii) julgar improcedente o recurso quanto à questão da violação do juiz natural e ocorrência da nulidade insanável relativa à composição do tribunal; (iv) determinar que o recurso prosseguisse para audiência de julgamento no tocante à questão da pena única, decidindo-se também, por essa ocasião mas em conferência, o recurso do Ministério Público.
Por acórdão de 27 de Maio de 2010, o Supremo Tribunal e Justiça decidiu negar provimento ao recurso da arguida. E por acórdão da mesma data, concedeu provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e impôs à arguida a pena acessória de proibição do exercício de actividades compreendidas na função pública que desempenhava pelo período de cinco anos.
2. A arguida interpôs para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), os seguintes recursos que foram admitidos e prosseguiram seus termos, estando agora para apreciação:
1.º - Do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21 de Maio de 2009, visando a apreciação da inconstitucionalidade da “interpretação do art.º 374.º n.º 2 do CPP segundo a qual a exposição ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito que fundamenta a decisão seja efectuada sem a indicação e exame crítico das provas e argumentos apresentados pelo arguido na contestação sem as quais a convicção do Tribunal se não pode formar validamente, por violação do art.º 32.º n.º 1 da C.R.P.” (fls. 8641/8731);
2.º- Do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 2010, visando a apreciação da inconstitucionalidade “do art.º 68.º, n.º 3 e 71.º, n.ºs 1, 3 e 5, da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais, ao tempo vigente quando interpretado no sentido de ser permitido ao Conselho Superior da Magistratura escolher dois Juízes Vogais fora do quadro complementar ou bolsa, ou por substituição ou acumulação, nem sequer, afectos a Tribunais criminais ou de instrução criminal ou sem formação nesta área específica, para compor um Tribunal colectivo de competência especializada em grande instância criminal – 9ª Vara Criminal de Lisboa –, ad hoc para um determinado processo, com exclusão de qualquer outra actividade na Vara Criminal, por violação das mais elementares regras de salvaguarda dois direitos dos arguidos, consubstanciados no n.º 9 do art.º 32.º da C.R.P.”(fls. 9727/9743) ;
3.º - Do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 2010 (fls. 10021), visando a apreciação da “inconstitucionalidade da interpretação do conceito normativo que resulta do art.º 97.º n.º 2 e 379.º do Cód.Proc.Penal, segundo o qual é suficiente fundamentar-se uma decisão sobre o cúmulo jurídico das penas, com uma mera expressão de concordância com a decisão de que se recorre, em geral, e acrescida da mera “repescagem” de adjectivos sobre a personalidade da arguida retirada dessas decisões, as quais não tiveram em conta e não afastaram prova testemunhal transcrita tempestivamente pela arguida a partir de gravações em audiência, e que se reportam a uma globalidade factual que não tem em conta a absolvição em segunda instância de mais de metade dos ilícitos por que veio a ser residualmente condenada, por falta de fundamentação bastante e omissão de pronúncia, e em violação flagrante do art.º 205.º da C.R.P.” (fls. 10021/10055).
3. A recorrente apresentou alegações relativamente aos três recursos, mas sem conclusões. Tendo a deficiência sido assinalada pelo assistente, o relator proferiu o seguinte despacho: “ … ao abrigo do n.º 4 do artigo 690.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, convido a recorrente a formular conclusões concisas, claras e precisas, rigorosamente limitadas às questões de constitucionalidade, sob pena de não se conhecer do objecto do recurso na parte afectada”.
Respondendo ao convite, a recorrente apresentou conclusões do seguinte teor:
A)
«QUESTÃO DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
CONCLUSÕES:
1 – A recorrente, na pendência de recurso para o Tribunal da Relação, suscitou a incompetência material do Tribunal de primeira instância por violação do principio do Juiz natural, arguindo em antecipação a inconstitucionalidade de dimensão normativa cuja interpretação fundamentou o indeferimento em recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça.
2 – A recorrente apresenta agora recurso para o Tribunal Constitucional, dessa decisão do Supremo Tribunal de Justiça.
3 – A recorrente entende que a composição do Tribunal de primeira instância violou as regras legais, gerais e abstractas, que definem quais os Senhores Juízes que podem constituir o Tribunal colectivo.
4 – Nomeadamente, havendo necessidade de recorrer a outros Juízes que não aqueles titulares da vara criminal para onde o processo foi distribuído, as tais regras legais, gerais e abstractas, determinam que sejam seleccionados os senhores Juízes que pertencem à “bolsa” a que alude o artº 71º nº 1, 3 e 5 da Lei de Organização e Financiamento dos Tribunais Judiciais.
Da questão em concreto
5 - Para o Julgamento em primeira instância foram os presentes autos distribuídos 9ª Vara Criminal de Lisboa, a qual, em 18/9/2006, notificou a recorrente da data de inicio do Julgamento para o dia 12/4/2007 (mais de seis meses depois).
6 - Chegado ao aprazado dia 12/4/2007, a recorrente constata que o douto tribunal colectivo se compunha com Sr. Dr. Juiz Presidente da 9ª Vara, Dr. B., assessorado por dois outros Juízes que não estavam afectos a essa Vara, no caso, os Srs. Drs. C. e Dr. D..
7 – A recorrente presumiu, então, que os dois Juízes vogais teriam saído da denominada bolsa a que alude o artº 71º nº 1, 3 e 5 da Lei da Organização e Financiamento dos tribunais judiciais, ou seja ao quadro complementar de Juízes do distrito judicial.
8 – Não se questiona o impedimento dos Juízes titulares da 9ª vara Criminal – a acumulação de serviço nas varas é notória, sendo perfeitamente razoável o recurso à bolsa.
9 – Acontece, todavia, que os Srs. Doutores Juízes vogais, sabe-o agora a recorrente, não pertenciam à bolsa, ou quadro complementar de Juízes.
10 – Na verdade, o Sr. Dr. C. era titular do 8º Juízo e o Sr. Dr. D., titular do 11º Juízo, ambos dos Juízos de Pequena Instância Cível Liquidatária de Lisboa.
11 – Tendo tido acesso aos despachos do Conselho Superior de Magistratura da autoria do Sr. Dr. Juiz Conselheiro Vice-Presidente E., verifica a recorrente que os mesmos Srs. Juízes Vogais foram colocados em regime de acumulação na 9ª vara – “face à disponibilidade pelos mesmos manifestada”.
12 – A seguir, se apresentam transcrições dos dois despachos, de 11/4/2007 e 12/4/2007 no designado processo de acumulações relativo à 9ª Vara Criminal de Lisboa, do Conselho Superior da Magistratura
Despacho de 11/4/2007
O requerimento de fls. 140, subscrito pelos Exmos. Juízes da 9ª Vara Criminal de Lisboa, é, com o devido respeito, pouco claro, importando, por isso, que sejam prestados melhores esclarecimentos para uma adequada tomada de posição.
Dá-se nele notícia de que estão agendados, naquela Vara Criminal
– na lª Secção, o julgamento no proc. 14217/02.0TDLSB, e em 2 processos apensos, com início em 12.04.2007;
– na 2ª Secção, o julgamento dos processos 1469/02.4JFLSB, com início em 24.04.2007, e 200/02.9JELSB, a iniciar em 30.04.2007.
E acrescenta-se que, além destes, outros processos têm julgamentos agendados até Outubro.
Dada a extensão e complexidade dos processos acima identificados, os requerentes “vêem com grande apreensão a realização dos julgamentos em simultâneo”, e por isso sugerem
- que o juiz da lª Secção presida ao primeiro dos julgamentos, integrando o Colectivo dois juízes a designar pelo CSM, e “mantendo-se também como asa às quartas-feiras”;
- que o outro julgamento (sic) seja realizado pelos Juízes da 2ª e 3ª Secções ( ...) “sendo juiz asa uma das Colegas do TIC que, para isso, já informalmente se disponibilizaram – Dra F. ou Dra G. – sendo que a que não fizesse o julgamento asseguraria as presenças das quintas-feiras, em que o juiz da lª Secção está impedido no 1º julgamento referido”.
Os julgamentos devem, obviamente, ser presididos pelo juiz a quem foram distribuídos os processos respectivos, sendo o Colectivo formado com os dois restantes Juízes da Vara.
É de presumir, face aos elementos (n.º de arguidos e testemunhas) indicados no requerimento em apreço, que o julgamento no primeiro e no segundo dos indicados processos (14217/02, da lª Sec. e 1469/02, da 2ª), se protele por um período temporal significativo, o que já não é de supor relativamente ao terceiro (200/02, da 2ª Secção).
Não vem, porém, esclarecido qual o número de dias por semana que para cada julgamento está definido, não se sabendo, por isso, se haverá sobreposição de julgamentos que inviabilize a realização de qualquer deles.
E, a acontecer sobreposição não se sabe se é total ou parcial, e por muitos ou poucos
O julgamento da lª Secção é apenas para ter lugar às quintas-feiras, como parece resultar da parte final do requerimento- Se assim é, porque não poderão intervir os dois outros juízes da Vara-
O juiz da lª Secção mantém-se “como asa” às quartas-feiras, em que processos-
O outro julgamento (qual dos dois da 2ª Secção-), em que intervirão os dois outros Juízes da Vara, não tendo lugar às quintas-feiras, não pode ter como Vogal do Colectivo também o Juiz da lª Secção-
Tudo questões e dúvidas que inviabilizam pronúncia fundada sobre as sugestões veiculadas no requerimento em análise, sem cujo esclarecimento não é prudente avançar na sua apreciação.
Também por isso, não pode aceitar-se, ao menos por ora, a sugestão do Ex.mo Vogal Distrital no sentido da acumulação de funções, na dita 9ª Vara Criminal, por parte dos Exmos. Juízes Dr. C. e Dr. D., da Pequena Instância Cível Liquidatária de Lisboa – sugestão que, ademais, não apresenta justificação para a indicação de juízes em serviço em tribunal cível em detrimento das magistradas colocadas em tribunal de instrução criminal, indicadas no apontado requerimento de fls. 140.
Notifique os requerentes, inclusive para que prestem, querendo, os esclarecimentos necessários e acima aludidos, e dê conhecimento ao Ex.mo Vogal.
DESPACHO de 12/4/2007
No uso dos poderes que me foram subdelegados – (DR - II série de 14 de Dezembro 2006)
Face às explicações que, relativamente ao teor do ofício de fls.140, e na sequência do meu despacho de 11-04-2007, me foram pessoalmente transmitidas pelo Exmos Juízes da 9.ª Vara Criminal de Lisboa, com a presença do Exmo Vogal Distrital, Dr. Edgar Lopes, constato que se visa, com o aludido oficio, sensibilizar o Conselho Superior da Magistratura para encontrar uma solução que permita que a 9ª Vara Criminal possa assegurar o seu normal funcionamento, mesmo com os julgamentos em causa a decorrer vários dias por semana, o que se torna necessário dado o elevado número de pessoas neles envolvidas.
Assim, face à disponibilidade manifestada pelos Exmos Juízes de Direito Dr. C. e Dr. D., titulares dos 8º e 11º Juízos da Pequena Instância Cível Liquidatária de Lisboa, determino que os mesmos exerçam funções, em regime de acumulação, na 9ª Vara Criminal de Lisboa, com efeitos a partir de hoje, dia 12.04.2007 e por um período inicial de 30 dias.
Comunique
Lisboa 12.04.2007
O Vice-Presidente
(E.)
Juiz Conselheiro
(fim de transcrição)
13 – Ora, não pertencendo os dois Juízes vogais à bolsa, ou quadro, a escolha efectuada pelo Conselho Superior de Magistratura de entre Juízes cíveis, parece ofender o sagrado princípio do Juiz natural, acabando a recorrente por ser julgada por Tribunal incompetente, o que constitui nulidade insanável arguível a todo o tempo, o que ora se faz – artº 32º nº 1 da C.P.P.
14 – Na verdade, o princípio do Juiz natural ou legal determina que intervirá na causa o Juiz determinado de acordo com as regras de competência legal e anteriormente estabelecidas desde que gerais e abstractas
15 – A 9ª vara criminal de Lisboa é um tribunal de competência especifica – artº 211º nº 2 da C.R.P. – penal, pelo que os Juízes que o podem compor, no impedimento dos titulares dessa vara terão de constar do quadro complementar de Juízes – os quais são nomeados em comissão de serviço, pelo período de três anos, nunca por 30 dias como aconteceu no caso vertente. (vide despacho digitalizado)
16 – No caso vertente, o Tribunal colectivo acaba composto por um presidente (Juiz natural ou legal) e dois Juízes cíveis, pelo que impossível se toma considerá-lo um Tribunal de Competência específico ou Vara Criminal.
17 – Encontramo-nos em plena sede de protecção da confiança do público.
18 – O princípio do Juiz natural, consagrado constitucionalmente, não foi estabelecido em função do poder de punir, mas somente para protecção da liberdade e do direito de defesa do arguido.
19 – O preceito constitucional – artº 32º nº 9 da C.R.P. – “evita que se designe arbitrariamente um Juiz ou um Tribunal para julgar um caso especifico, cujo conteúdo procurou inconstitucionalizar a existência de Tribunais de excepção em matéria criminal, bem como impedir quaisquer violações ao principio do Juiz natural” – JORGE FIGUEIREDO DIAS
20 – A imparcialidade dos Juízes pode ser alcançada pela predeterminação através da lei, de critérios objectivos gerais de repartição de competência
21 – A recorrente arguiu pela primeira vez a nulidade e inconstitucionalidade em questão através de dois requerimentos, sendo um deles dirigido, por mera cautela, ao Tribunal de primeira instância – 9ª Vara Criminal de Lisboa, e o outro, autonomamente, embora dirigido ao Venerando Desembargador do Tribunal da Relação que detinha fisicamente o processo em recurso, já depois do Acórdão final.
22 – Nomeadamente, a invocação dos artigos 68º e 69º da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – Lei 3/99 de 13/01 e a interpretação desta dimensão normativa realizada pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, não podem colher “in casu”, porquanto os dois Senhores Juízes Vogais escolhidos, face à disponibilidade manifestada, não tinham, ao tempo, formação, nem antiguidade suficientes – artº 44º do Estatuto dos Magistrados Judiciais – Lei 21/85 de 30 de Julho.
23 – Especialmente quando o Tribunal para o qual foram escolhidos é de competência especializada.
24 – Na verdade, o artº 44º da citada Lei estipula que, no provimento de lugares em tribunais de competência especializada será particularmente ponderada a formação dos concorrentes na matéria, atenta a classificação de serviço e a antiguidade.
25 – E o nº 4 desse preceito determina que os Juízes de Direito não podem ser colocados em comarcas de lugares de acesso final sem terem exercido funções em comarcas ou lugares de primeiro acesso.
26 – Nem se diga que todas estas exigências legais significam mera tendência a ser “varrida” segundo as conveniências, na medida em que a actual legislação regulamenta minuciosamente esta matéria e com muito maiores exigências.
27 – Com efeito, ao artº 44º do Estatuto, com a nova redacção, estipula que o provimento de lugares em Juízes de competência especializada dependem de:
a) Frequência de curso de formação ou respectiva área de especialização
b) Obtenção do título de mestre ou Doutor em Direito na respectiva área de especialização
c) Prévio exercício de funções durante pelo menos três anos na respectiva área de especialização e frequente curso de formação no prazo de dois anos.
28 – Ora, tudo isto foi “varrido” no caso “sub-judice”, com a nomeação excepcional e discricionária de dois Senhores Juízes Vogais, sem nenhuma das qualidades exigidas.
29 - De facto, o art° 68° da LOFTJ refere a possibilidade de substituição, nas faltas e impedimentos, dos Juízes Titulares
Pressupõe obviamente que os Juízes substitutos tenham as mesma condições de exercício que os dos Titulares, pois, de outra forma, encontrado estava o caminho para, por mera conveniência de serviço, se - ; subverterem todos os princípios atrás enunciados.
30 - Nem a “substituição” efectuada “in casu” foi determinada por qualquer urgência na medida que este processo não tinha arguidos presos preventivamente à sua ordem.
31 - E o nº 2 deste preceito também determina que, nos Tribunais com mais de um juízo, o Juiz é substituído pelo nº 2, este pelo 3º e assim sucessivamente.
32 – Nem se diga que os dois Senhores Juízes Vogais nomeados “passaram a integrar a vara Criminal de Lisboa”, porque tal não pode ser considerado verdadeiro.
33 – Na verdade, os dois Senhores Juízes vogais nomeados, não fizeram mais nada na 9ª Vara a não ser intervir na audiência de Julgamento destes autos.
34 – Não intervieram em mais nenhum acto da 9ª Vara, nem no mais leve expediente de serviço.
35 – Aliás, na própria correspondência com o Conselho Superior Magistratura se retira e está bem patenteado que a nomeação dos dois Senhores Juízes vogais foi efectuada ÚNICA E EXCLUSIVAMENTE PARA O PROCESSO 14217/02.TBLSB.
36 – Os dois Senhores Juízes Vogais só apareceram na 9ª Vara nas sessões de Julgamento destes autos e abandonavam o Tribunal logo após o termo dessas sessões.
37 – Quando a audiência de Julgamento acabou, os dois Senhores Juízes Vogais não mais voltaram a este Tribunal.
38 – Em suma, os dois Senhores Juízes Vogais foram escolhidos e nomeados discricionariamente e “ad hoc” para este Julgamento e nada mais.
39 – A recorrente entende que primeira parte do artº 71º nº 1 constitui a única disposição legal, geral e abstracta compatível com as exigências constitucionais na composição dos Tribunais de competência especializada penal.
40 – Pelo que a segunda parte deste artigo, ao permitir o recurso à substituição em acumulação de funções, (o que fez remetendo para os artºs 68º e 69º) estipula uma regra legal que de geral e abstracta nada tem.
41 – Antes se institui a supremacia da nomeação por mero arbítrio do Presidente do Conselho Superior de Magistratura, de dois Juízes, sem formação nem antiguidade, para um determinado processo.
42 – Nem se diga que a nomeação destes Juízes foi efectuada por acumulação (artº 69º) para a 9ª Vara Criminal de Lisboa, porquanto, na realidade tal nomeação foi efectuada APENAS E EXCLUSIVAMENTE para audiência de julgamento no processo e foi assim que tudo, na prática, se passou.
43 – Esta passagem de um sistema de leis gerais e abstractas na composição dos Tribunais colectivos (primeira parte do nº 1 do artº 71º) para um sistema aleatório de escolha individual dos Juízes efectuado por uma pessoa e não por uma lei geral e abstracta (artºs 68º e 69º) ficou a dever-se precisamente à última parte do mesmo artº 71º nº 1 que remete para o artº 68º e 69º.
44 – Sendo, portanto, esta última parte do artº 71º nº 1 (na parte em que remete para os artºs 68º e 69º) colocando a primeira parte como subsidiária, a norma que se reputa inconstitucional por ofensa do principio do Juiz natural.
45 – Na verdade, todo o propósito do legislador na implementação de um quadro complementar de Juízes, com todos os requisitos inerentes, acaba subvertido pela possibilidade, assim conferida, da nomeação de Juízes em substituição ou acumulação, por escolha individual, discricionária e absolutamente livre, de uma única pessoa, mesmo que essa pessoa seja Vice Presidente do Conselho Superior de Magistratura.
46 – E quando esta escolha individualizada, discricionária e aleatória de Juízes é efectuada ÚNICA E EXCLUSIVAMENTE para um determinado processo, coloca-se o problema grave de confiança.
47 – Aos destinatários do processo criminal – os arguidos – como é o caso da ora requerente, têm de ser criadas as condições que, durante todo o processo, os façam confiar na Justiça, sendo essa confiança resultado da aplicação dos princípios e das normas que os exercitam, ditados e impostos por aqueles preceitos constitucionais.
48 – “A confiança., como «instituição invisível», dá força à dimensão das expectativas de cidadania e marca a capacidade de reconhecimento das instituições “ (citando excerto de Discurso proferido em acto de posse no STJ).
49 – O princípio do juiz natural impõe critérios objectivos na distribuição de competência e na prévia constituição e composição do tribunal que vai julgar a causa, que passa necessariamente pela determinabilidade ou prévia individualização através de objectiva e não discricionária determinação da competência dos Juízes.
50 – A nomeação por acumulação, dos dois Juízes Vogais para a 9ª Vara Criminal não foi sequer PRÉVIA à situação criada.
51 – Antes foi determinada NA VÉSPERA E NO PRÓPRIO DIA DO INICIO DA AUDIENCIA DE JULGAMENTO.
52 - Foi assim constituído discricionariamente um Tribunal de excepção, para um determinado processo, fazendo-se uso de um conceito normativo que ressalta do artº 71º nº 1 (e artºs 68º e 69º para os quais aquela disposição remete) da LOFTJ e interpretado com violação de DIREITOS FUNDAMENTAIS consagrados C.R.P.
53 – De todos os instrumentos internacionais, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) estabeleceu um sistema de protecção efectiva, porventura o mais emblemático e eficaz que, através de mecanismos jurisprudenciais adequados de controle efectivo, centrado no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), vem executando a consagração dos DIREITOS FUNDAMENTAIS, concedendo aos indivíduos o direito de queixa contra os Estados, com acesso a processo onde podem ver declaradas as violações daqueles
DIREITOS.
54 – O significado das garantias impostas pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem vem sendo concretizado pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que vem entendendo o “tribunal estabelecido por lei” como compreendendo a necessidade de que o Juiz seja pré constituído (ao Julgamento), em inderrogabilidade e indisponibilidade da competência já fixada e em proibição de juízes extraordinários e especiais, que só a determinação do juiz com base em critérios gerais e não arbitrários, garante, perseverando a independência do juiz chamado a conhecer e decidir um assunto, sem possíveis incidências de outros poderes do próprio Estado no estabelecimento da sua competência, assim concretizando a imparcialidade do Tribunal.
55 – O artº 71 nº 1 da LOFTJ com a redacção que lhe foi dada pela Lei 3/99 de 13 de Janeiro, corresponde ao artº 79º da LOFTJ com a redacção da Lei 52/2008 de 28 de Agosto e que revoga a primeira.
56 – Apreciando, pois, a história do preceito em causa, constatamos que A LEI VIGENTE (Lei 52/2008) reproduz o correspondente norma da LEI ANTERIOR (3/99) mas “amputa-lhe” a parte “circunstâncias que, pelo período de tempo previsível de ausência ou de preenchimento do lugar, conjugado com o volume de serviço desaconselham o recurso aos regimes de substituição ou de acumulação de funções constantes dos artºs 68º e 69º”.
57 – Quer isto dizer que a questão que ora se levanta já foi resolvida pelo próprio legislador de forma bem sintomática e que vai ao encontro do pedido nestes autos formulado pela recorrente.
58 – Com efeito, o legislador terá reconhecido que, colocando o artº 71º nº 1 da Lei antiga, como quase subsidiário do artº 69º, sempre estaria a desvirtuar a posição correcta a norma que, ao indicar o recurso ao quadro complementar de Juízes, definia com a necessária exactidão o único mecanismo consentâneo com o principio universal e constitucional do “Juiz natural”.
59 – Isto é, de que serviria toda a preocupação quanto à constituição e regime da bolsa de Juízes quando existia uma disposição que, de imediato e facilmente, poderia de forma inegavelmente aleatória resolver o problema de substituição de Juízes para um determinado processo-
60 – A possibilidade da nomeação “ad hoc”, de um Juiz para substituir outro, mesmo quando é efectuado pelo Senhor Vice-Presidente do C.S.M. seja qual for o critério seguido, é sempre perigosa e especialmente, não confere o grau de confiança ao utente da Administração da Justiça.
61 – Até porque, como aconteceu no caso destes autos, os Senhores Juízes substitutos foram escolhidos, indicados e sugeridos por outrém ao Senhor Vice-Presidente do C.S.M.
62 – Desconhecendo a recorrente por que forma surgiram os nomes dos Senhores Juizes substitutos.
Nestes Termos, arguiu-se a inconstitucionalidade do conceito normativo que resulta do artº 71º 1, 3 e 5 da Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais, ao tempo vigente bem como dos seus artºs 68º e 69º para os quais aquele remete, quando interpretado no sentido de ser permitido ao Conselho Superior de Magistratura, escolher, de forma discricionária, 2 Juízes Vogais fora do quadro complementar ou bolsa, ou por substituição ou acumulação, nem sequer, afectos a Tribunais criminais ou de instrução criminal ou sem formação nesta área especifica, para compor um Tribunal colectivo de competência especializada em grande instancia criminal – 9ª Vara Criminal de Lisboa –, ad hoc para um determinado processo, com exclusão de qualquer outra actividade na Vara Criminal, por violação das mais elementares regras de salvaguarda dos direitos dos arguidos, consubstanciados no nº 9 do artº 32º da C.R.P.”
B)
«QUESTÃO DA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DO ACORDÃO DE PRIMEIRA INSTÂNCIA
CONCLUSÕES:
1 – A ora Recorrente apresentou Requerimento para apreciação, pela via de Recurso pelo Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta de interpretação normativa, nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 280º da CRP e dos art.ºs 70º nº1, alínea b), 75º, nº 2 e 75ºA, todos da Lei do Tribunal Constitucional, que a decisão judicial – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – fez suscitar, e relativas à inconstitucionalidade de dimensão normativa da interpretação das normas do art.º 374º do Código do Processo Penal (CPP), por violação dos princípios constitucionais ínsitos, entre outros, nas normas do art.º 32º, nºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP), requerimento cuja admissão deu lugar, no Recurso em epígrafe, às presentes Alegações.
2 – A ora Recorrente requer, assim, pela via de Recurso no Tribunal Constitucional, como instância máxima de controle concreto, a apreciação da inconstitucionalidade da interpretação de dimensão normativa das normas do art.º 374º do CPP, por violação dos princípios constitucionais constantes das normas do art.º 32º, nºs 1 e 4 da CRP.
3 – A inconstitucionalidade de dimensão normativa das normas objecto do presente Recurso, consiste na interpretação que das mesmas foi feita, no referido Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que lhe indeferiu a arguição da inconstitucionalidade de interpretação das normas do art.º 374º do CPP levada a efeito pelo Acórdão do Tribunal Colectivo de 1ª Instância
4 – O artigo 374º do CPP exige como requisito da sentença, entre outros, o referido na alínea d) do nº 1 – “indicação sumária das conclusões contidas na Contestação, se tiver sido apresentada”, bem como o do nº 2, no qual se exige “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal”.
5 – Ora, não basta ter o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa decidido que o Tribunal de Primeira Instância “fez as referências que devia fazer à matéria da contestação”.
6 – Se o Tribunal de Primeira Instância não efectuou, no entender da Recorrente, uma análise crítica por referência aos extensos factos e argumentos de direito constantes da Contestação tempestivamente apresentada, também o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, aqui acto jurisdicional de suporte do presente Recurso de apreciação de inconstitucionalidade, o não fez, como devia.
7 – Ao entender de forma diversa, como o fez, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa haveria de explicitar os pontos concretos em que tal reconhecimento transparece.
8 – E não o fez, nem poderia fazer porque, nem em nenhum momento e, nem em parte alguma do seu Recurso, a Recorrente reconhece que o Tribunal fez as referências que devia fazer á matéria da Contestação.
9 – Resultando, assim, pois, do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, entender este Tribunal ser possível, num único período de 36 palavras (aqui se incluindo preposições), sintetizar 260 artigos constantes de 60 páginas de Contestação, divididos por mais de 15 Títulos diferentes.
10 – O que verdadeiramente subjaz, no entendimento das duas Instâncias, será, isso sim, a consideração de que o art.º 379º do CPP apenas comina de nulidade o não cumprimento do nº 2 do art.º 374º do mesmo Código e, já não, o seu nº 1.
11 – Aliás, no caso vertente, a síntese efectuada não é simples, mas sim, simplista.
12 – Ora, a análise crítica das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, haverá de passar, necessariamente, pela ponderação dos argumentos ali expendidos, de facto e de direito, de onde fosse possível retirar a justificação de não concordância do Tribunal.
13 – Tal como foi feito (ou melhor, como não foi feito) a Recorrente pode concluir, e conclui, que a sua Contestação nem sequer foi cuidadosamente lida, quanto mais ponderada.
14 – Reconhece-se a extensão do libelo acusatório, mas não se pode aceitar uma ponderação de prova sem nela figurar o contributo que a Defesa pode dar à administração da Justiça.
15 – Nem se diga que, com as aludidas absolvições e correcções o Tribunal da Relação emendou tudo o que havia a emendar:
a) Em primeiro lugar, não tendo o Tribunal de Primeira Instância tomado em conta os ditos argumentos e provas oferecidas na Contestação, a Recorrente perde um grau de jurisdição. Isto é, se a Contestação da Recorrente tivesse servido de referência na ponderação, como é sempre uma garantia da Defesa do cidadão, poderia ter sido o Tribunal de Primeira Instância a descobrir as sobreditas incorrecções, decidindo, como o veio a fazer, o Tribunal superior – Tribunal da Relação.
b) Em segundo lugar, no caso de o Tribunal de Primeira Instancia ter ponderado o conteúdo da Contestação e explicitado as suas eventuais razões de discordância, já a Recorrente teria tido oportunidade, em sede de recurso, de as contrariar, aduzindo eventualmente nova argumentação.
16 – Assim parecendo líquido que as duas Instâncias não entenderam as exigências do art.º 374º, nº 2 do CPP, como uma verdadeira garantia da Defesa do cidadão, assim menosprezando uma peça jurídica fundamental, como é a Contestação, a qual constitui, para esse cidadão, a mais essencial oportunidade de assegurar que o exame critico, que deve transparecer na fundamentação do Acórdão, também é aferido pelas provas e razões de facto e de direito que o cidadão apresenta na forma e fase processual próprias.
17 – Sufragando e, deste modo, sancionando, a manifesta desconsideração daquela peça jurídica fundamental – a Contestação – operada pelo Colectivo da Primeira Instância, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa corroborou, assim, interpretação dos conceitos normativos de normas que processualmente regulam esta matéria, em sentido que viola os princípios com que o manto constitucional as acoberta.
18 – Assim tendo dado lugar a questões de constitucionalidade que, suscitadas na Primeira Instância, se reflectem no acto jurisdicional suporte no presente Recurso, e cuja resolução implica a sua reforma, com a consequente baixa do Processo-base à Primeira Instância, para ponderação da prova e argumentos de facto e de direito apresentados pela ali arguida e ora Recorrente.
19 – Com efeito, a Constituição da República Portuguesa (CRP), ao consagrar as “garantias do processo criminal”, estabelece, no nº 5 do seu art.º 32º, que o Processo Penal tem estrutura acusatória, em concretização, aliás, dos princípios que, desde há muito, vigoram no ordenamento jurídico Internacional e salvaguardam e protegem DIREITOS FUNDAMENTAIS.
20 – DIREITOS FUNDAMENTAIS cuja tutela foi erigida a patamar inegociável de dimensão constitucional no Estado de Direito, e que encontram a referida protecção nas normas de direito internacional que, nos termos do art.º 8º da CRP, façam parte integrante do Direito Português, ou com força de aplicação directa atribuída pelo art.º 18º da CRP.
21 – DIREITOS FUNDAMENTAIS que “transportam em si uma partilha de sentido universal de valores comuns” e cuja interpretação deve ser feita, como os Juízes nacionais a tal estão obrigados, também à luz de todas as normas que compõem a Declaração Universal dos Direitos do Homem, como determinam os art.ºs 16º e 17º da CRP.
22 - A Declaração Universal dos Direitos do Homem, nos seus art.ºs 10º e 11º, estabelece:
Art.º 10º
“Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida”
(sublinhado nosso)
1 –“Toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”
(sublinhado nosso)
23 – Os princípios são superiores às demais regras, pois são eles que orientam toda a actividade legislativa e a interpretação das normas para aplicação ao caso concreto, sendo os princípios que dão ao ordenamento jurídico a ideia de sistema integrado, são fontes primárias do Direito e orientam a ordem jurídica, ou seja, são normas de base, impedindo que uma norma, ou a interpretação de dimensão do conceito dessa norma, contarie algum princípio, como sejam os consagrados no art.º 32º da CRP.
24 – A Declaração Universal dos Direitos do Homem foi proclamada no “advento de um mundo em que os seres humanos devem ser livres de falar e de crer”, “como mais alta aspiração do Homem” que deve contribuir para contrariar a “revolta causada na sua consciência pelo “desconhecimento” e pelo “desprezo” dos seus Direitos que, até então desprotegidos, impõem que, livremente, sem qualquer opressão ou constrangimento, possa expressar, de forma livre e não desigual, as razões que entenda dever aduzir em esclarecimento e defesa das Acusações que, em matéria penal, contra si forem deduzidas.
25 – O Código do Processo Penal (CPP) apresenta-se como um modelo de compreensão do sistema jurisdicional do processo penal, na sua globalidade, sendo, todavia, imperioso, para que possa constituir um tal modelo, que as suas normas sejam interpretadas em permanente interacção, num mesmo plano e não em planos diferenciados, entre este instrumento normativo e os próprios princípios, aos quais deve ser total a sua submissão.
26 – A intervenção do Juiz ao longo do processo vai sendo identificada através dos espaços de decisão que lhe são atribuídos por lei e que em cada momento garantem, no processo penal, a concretização dos DIREITOS FUNDAMENTAIS, pelo exercício do conjunto das garantias instrumentais ou processuais que efectivam esta finalidade, entre as quais se identifica e evidencia, bem como outras pertinentes ao caso vertente, a do “princípio do acusatório”.
27 – “Princípio do acusatório” que a Constituição da República consagra como “estrutura”, e que afinal constituirá “modelo”, “sistema”, quiçá “dogma” do processo penal, como formas diversas de exercício e expansão do conceito ínsito no princípio declarado pela norma constitucional do nº 5 do art.º 32º da CRP.
28 – E a compreensão do modelo processual do Código do Processo Penal posterior à Constituição da República de 1976, com as sucessivas Revisões de que foi sendo objecto, mormente do modelo decorrente do CPP de 1988, leva, necessariamente, à compreensão da importância do papel dos sujeitos processuais que o individualizam, em configuração da sua estrutura bem diferente da do Código de 1929.
29 – A ratio da estrutura acusatória do modelo do processo penal, como é o nosso, está na separação entre a entidade investigadora e acusadora e a entidade que julga, vinculadas ao desenvolvimento de um processo “equo”, com observância, pela disciplina processual, das garantias indefectíveis do direito à liberdade pessoal.
30 – É inequívoco que a estrutura acusatória do processo penal, contudo, é “temperada” pelo princípio da investigação judicial, num “modelo que se encontra balizado por programa constitucional impositivo orientado a finalidades de procura da verdade e sobretudo à protecção dos DIREITOS FUNDAMENTAIS da pessoa face ao Estado”.
31 – Temos, pois, assim, um modelo de processo penal em que o cidadão contra quem é deduzida uma acusação, tem “o direito a ver julgada a sua causa, a ver o resultado do seu acesso ao direito entregue a uma entidade independente dos restantes poderes constitucionalmente consagrados”, como pretensão jurídica que legitima afinal e, directamente, a própria função judicial, já que a Constituição da República, no seu art.º 202º, nº 1, determina que “Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo “.
32 – A estrutura acusatória do processo penal, “temperada”, é certo, pelo elemento do modelo inquisitório – o princípio da investigação judicial –, é completada e só se realiza plenamente porque ao cidadão é inequivocamente conferida a possibilidade de contrariar, de contraditar, de refutar, em suma, de contestar a acusação que lhe é feita e, por força da qual se encontra submetido a juízo criminal.
33 – Pois que a protecção e defesa dos DIREITOS FUNDAMENTAIS do cidadão se assegura, antes de mais, pela efectiva concretização dos princípios gerais que impõem o processo “equitativo”, a “igualdade de armas”, como imprescindíveis expoentes das garantias dadas pela independência e pela imparcialidade do Juiz que aprecia a causa.
34 – Donde a “parificação” do posicionamento da Acusação e da Defesa no Julgamento da causa, conferida pela consagração do princípio do contraditório, expressamente imposto pela norma do nº 5 do art.º 32º da CRP, por imposição da qual todos os actos, quer da Audiência de Julgamento, quer instrutórios, são passíveis de contradita, em realização das garantias de defesa do processo criminal que aquele preceito constitucional assegura.
35 – Assim é que em todos os actos jurisdicionais se impõe a referida “igualdade de armas”, a igualdade de meios de intervenção processual, em paridade que impede que, por si, o Juiz prescinda de qualquer participação voluntária do cidadão arguido/réu a quem, justificada e também movida pela necessidade de procura da verdade, é conferida a liberdade de investigação extraprocessual, cujo resultado, assim carreado para o Julgamento, concretiza o poder que tem de elidir ou enfraquecer as provas que, contra si, foram sendo recolhidas.
Decidido, após pronúncia, levar um arguido a Julgamento, o Juiz vai apreciar, em debate, os factos que constam da Acusação, a que está absolutamente vinculado, e que, como thema decidendum, vai servir de primeiro guião desta fase processual.
36 – Em concreta execução dos princípios que supra se foram referindo, e especialmente em cumprimento do princípio do contraditório imposto pela norma do nº 5 do art.º 32º da CRP, a lei processual penal, como “verdadeiro direito constitucional aplicado”, prevê, no nº 1 do art.º 315º do Código do Processo Penal, que “O arguido, em 20 dias a contar da notificação do despacho que designa dia para a audiência, «apresenta, querendo, a contestação, acompanhada do rol de testemunhas “.
(sublinhados nossos)
37 – A Contestação, quando apresentada, constitui peça processual fundamental, já que, na fase processual em que surge, delimitada pelo art.º 315º do CPP, prepara a Defesa o debate sobre os factos, as circunstâncias em que ocorreram, a sua qualificação como subsumíveis ou não subsumíveis a crime, a culpabilidade ou não culpabilidade do arguido, consubstanciando, assim, outro importante guião a seguir em Julgamento.
38 – Pois que a Contestação constitui, por um lado, o Documento através do qual o arguido dá a conhecer, ao Tribunal em primeira-mão, a sua versão dos factos – já que as Declarações que em sede de Inquérito possa ter prestado, não podem, nesta fase, sem mais, ser tidas em consideração –, e, por outro, constitui também Documento em que o arguido indica os meios de prova cuja produção pretende ver ordenada pelo Tribunal e que considera necessários à descoberta da verdade e boa decisão da causa, como resulta, aliás, da notificação feita ao arguido, em simultâneo, para que apresente, quer a Contestação, quer também o rol de testemunhas, como elemento probatório por excelência, de que irá dispôr.
40 – Nos termos dos nºs 1 e 2 do art.º 341º do CPP, e em obediência ao já referido princípio da investigação judicial, o Tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, mesmo os não indicados na Contestação, cabendo-lhe ser o árbitro da necessidade, da legalidade, da admissibilidade, da adequação, ou mesmo da obtenibilidade dos meios de prova, como limites àquele princípio.
41 – Quando suscitada e justificada aquela necessidade de produção dos meios de prova, em Documento, como seja a peça processual em que a Contestação deve consubstanciar-se, no qual se aduzem, como aconteceu no caso dos Autos do Processo-base no presente Recurso, atempadamente e com antecedência em relação à Audiência, as razões que sustentam aquela necessidade, a Contestação toma-se peça não só fundamental, como imprescindível à melhor compreensão da causa.
42 – Especialmente, como no caso dos Autos do Processo-base no presente Recurso, em que, na Contestação apresentada, a ora Recorrente levou a efeito explanação e argumentação sustentadas criteriosamente, em devido e paralelo acompanhamento da versão dos factos que pretendia ver demonstrados, conferindo àquela Contestação um ainda mais relevante papel, não já apenas de guião do Julgamento, como também de “tabela” ou ordem de factologia, em historial densamente documentado, com prova pericial e testemunhal escrupulosamente indicadas, por referência concreta àquela mesma factologia.
43 – A Contestação apresentada pela ora Recorrente não poderia, assim, deixar de ter sido considerada, ponto a ponto, a par da Acusação, como Documento de acompanhamento da apreciação, pari passu, do thema decidendum, em escrutínio que devia ter sido levado a efeito em iter que, em paralelo tivesse considerado a Acusação e a Contestação, para levar a efeito um independente, imparcial e equitativo levantamento das questões objecto da causa submetida a juízo, na Primeira Instância, no caso vertente.
44 – O art.º 32º da CRP, nomeadamente no seu nº 1, assegura ao arguido, no processo criminal, todas as garantias de defesa, num processo cuja razão de ser é a dúvida, que está na sua base quando nasce, sobre a culpabilidade do arguido, enquanto Acusado, e que deverá ter fim numa certeza, depois de, em prova dos factos sujeita ao “fogo” do contraditório, lhe terem sido conferidas todas as possibilidades de discutir, contestar a Acusação.
45 – O Processo parte da ideia provisória de que o arguido teria cometido os factos por que vem acusado e, especialmente o arguido que sabe não ser culpado, perante as circunstâncias concretas do seu caso, começa por estabelecer os concretos conteúdos do seu direito de defesa, no quadro das garantias e dos princípios, estabelecidos pela Constituição e pelas leis, com recurso a todos os meios que se mostrem necessários e adequados a que o arguido se faça ouvir pelo Juiz sobre as razões que apresenta, em ordem a defender-se da Acusação que lhe é movida.
46 – O direito de defesa do arguido concretiza-se na adopção de uma determinada estratégia pessoal, que passa pela máxima liberdade de produção de prova compatível, e que se densifica com a necessidade de provar a inexistência de culpa, como princípio essencial do juízo de censura penal, já que um non liquet na questão da prova tem de ser valorado a seu favor.
47 – No caso do Processo-base no presente Recurso, a ora Recorrente, em concretização da estratégia que entendeu melhor garantir o seu direito de defesa, apresentou, nos termos da lei processual penal, a Contestação que, acompanhada de inúmera Documentação, oportunamente juntou aos Autos e que, no presente Recurso, transcreveu como integrando o acto jurisdicional – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – aqui suporte das inconstitucionalidades que pretende ver declaradas.
48 – E, assim, por tão evidente nos documentos e nos testemunhos que tinha para oferecer ao Tribunal, parecia à ora Recorrente ser fácil a demonstração da verdade, que desde logo em primeira-mão apresentou ao Tribunal, em extensa Contestação, junta aos Autos e que acreditou seria digna de nota e adequada apreciação pelo Colectivo que, na 1ª Instância, procedeu ao Julgamento do Processo-base no presente Recurso.
49 – Constatou a ora Recorrente, todavia, logo em presença do Acórdão do Tribunal da 1ª Instância, uma total desconsideração da extensa Contestação que apresentou, cujos artigos não foram sequer dignos de nota, em violação dos princípios consagrados constitucionalmente, como no presente Recurso vem alertando.
50 – Com efeito, viola o art.º 32º, nº 1 da CRP, por não se poder formar validamente a convicção do Tribunal, a interpretação normativa do art.º 374º, nº 2 do CPP, feita em sentido segundo a qual a exposição, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamenta decisão tomada por Acórdão, seja efectuada sem a indicação e exame critico das provas e argumentos apresentados pelo arguido na Contestação.
51 – Por outro lado, a norma do nº 2 do artigo 374º do CPP possui uma dimensão ou critério normativo, que o Acórdão aqui acto jurisdicional de suporte não aplicou ao caso sub judicio, daí decorrendo a sua invalidade constitucional, por violação de elementar garantia de defesa, expressa no nº 1 do artigo 32º da CRP, bem como do princípio do contraditório constante da norma impositiva do nº 4 daquele mesmo art.º 32º da CRP.
52 – Em consagração do princípio geral extensivo a todos os ramos de Direito, que tem assento constitucional no art.º 205º da CRP, cujo nº 1 impõe que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”, dispõe o nº 2 do art.º 97º do CPP que “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão “.
53 – As sentenças em processo penal, como actos decisórios vêem os seus requisitos elencados no art.º 374º do CPP
54 – Nem no Relatório do Acórdão do Tribunal de 1.ª Instância, nem em qualquer outro lugar daquele acto decisório, foi levada a efeito qualquer “indicação”, nem mesmo sumária, das conclusões contidas na Contestação apresentada pela ora Recorrente, Acórdão que assim violou, com tal omissão, o princípio consagrado no art.º 205º da CRP, cuja concretização, realizada pela interpretação das disposições combinadas das normas do nº 2 do art.º 97º e da alínea d) do nº 1 do art.º 374º, ambas do CPP, não pode nunca resultar em sentido diferente do que literal e taxativamente impõe o preceituado naquela alínea d) do referido n° 1 do art.º 374º do CPP, como forma prevista na lei para realizar a imposição constitucional contida no art.º 205º da CRP.
55 – Fazendo constar, obrigatoriamente, do Relatório do acto decisório – o Acórdão – “indicação” que constitui elemento em que o Relatório assenta, ou seja, se funda ou fundamenta e, sem a qual a fundamentação do Relatório se não pode dar por verificada, não bastando sequer, para que o acto decisório cumpra o que se pretende com o conceito normativo de dimensão constitucional, da norma referida, a referência de que o arguido se defendeu nos termos da sua contestação escrita junta a fls., e mesmo que dando o respectivo teor como reproduzido, como a jurisprudência do STJ consagrou já, desde há muito
56 – A lei estabelece ainda outros requisitos que, em realização da imposição constitucional contida no art.º 205º da CRP, fez constar, obrigatoriamente, do art.º 374º, nº 2 do CPP
57 – Como resulta da forma encontrada pela lei para concretizar o princípio da “fundamentação” dos actos decisórios penais, na parte final do art.º 374º, nº 2 do CPP, não basta a enumeração dos meios de prova produzidos em Audiência e dos que serviram para o fundamentar, para que um acto decisório se considere devidamente assente ou fundado, devidamente alicerçado, é necessário ainda, um exame crítico daqueles meios que servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral da correcta aplicação da justiça no caso concreto, só assim se achando (concretizada a fundamentação enquanto exigência constitucional que, em protecção e salvaguarda dos DIREITOS FUNDAMENTAIS assegurados pelas garantias do processo criminal, deve fazer os cidadãos compreenderem, de forma inequívoca, as razões, quer da sua absolvição, quer da sua condenação, pelas causas penais que contra si foram deduzidas.
58 – Exige, assim, a lei, no citado art.º 374º, nº 2 do CPP, que, quer intra, quer extraprocessualmente, como se lê em MAIA GONÇALVES, in Código do Processo Penal – Anotado e Comentado (l5ª Edição – Almedina), “a fundamentação ou motivação [dos actos decisórios] deve ser tal que permita aos sujeitos processuais .... o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz e deve assegurar pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade....”
60 – Não pode considerar-se fundamentado um acto decisório que não faz um exame crítico de todos os elementos carreados para o processo com vista à descoberta da verdade, devendo o Juiz ponderar, de forma independente e imparcial, e em cumprimento do princípio da presunção de inocência, até à decisão final, a Contestação apresentada pelo arguido, de forma que claramente revele tê-la sindicado e, consequentemente aceitado, rejeitado ou tão só rebatido o que nela se afirmou, assim procedendo a exame ou análise crítica daquela peça processual, como lhe compete.
61 – A apreciação feita revelará paridade na apreciação das duas peças processuais – Acusação e Contestação – que, num Processo extenso e complexo, como era o dos Autos do processo-base, constituem, quando analisados criticamente, em observância do princípio da presunção de inocência, uma prévia visão integrada de todo o historial fáctico, trará vantagem à apreciação das provas cuja produção se avizinha.
62 – A fundamentação de um acto decisório pode, na verdade, ser mais ou menos concisa, mais ou menos completa, poderá não ser mesmo perfeita, mas para que possa ter a virtude de potenciar um acto decisório para ser compreendido e aceite, como finalidade ínsita e que subjaz à interpretação do conceito de dimensão normativa do preceito constitucional que impõe o princípio da fundamentação, há-de conseguir mostrar que todos os elementos que integram o Processo foram devidamente ponderados, em justificação que se alcança pela apreciação crítica dos mesmos.
63 – A fundamentação ou o acto de fundamentar as decisões em causa, deverá corresponder ao justo meio, que lhe confere a virtude de poder convencer os destinatários da decisão, interessando sobretudo enquanto acto enquadrado na sua relação com estes, em quantidade, mas sobretudo em qualidade suficientes para que lhe seja atribuído o valor objectivo que detém e de que carece para se impor.
64 – O Acórdão do Tribunal de 1ª Instância e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que, quanto à desconsideração da Contestação, o sufragou, como actos jurisdicionais em causa e suporte no presente Recurso, procederam à “reconstituição histórico-processual dos factos” e “à determinação da culpabilidade”, “construíram a verdade processual”, todavia tendo ignorado a Contestação que a ora Recorrente apresentou, nos termos e pela forma já supra indicados, e cuja quase absoluta desconsideração não proporcionou uma “análise lógica”, “nem racional”, “nem inteira” dos fundamentos das decisões, não tendo, assim, a fundamentação fornecido meios para confrontação dos actos de julgar com os respectivos pressupostos, deste modo inquinando a fundamentação daqueles actos decisórios, que assim, em interpretação das normas do Código do Processo Penal em causa no presente Recurso, violaram os preceitos constitucionais que as acobertam, dando lugar a questões de inconstitucionalidade que aqui se pretendem ver declaradas.
65 – Muito se tem escrito na Doutrina e na Jurisprudência sobre o alcance do art.º 374º, nº 2 do CPP, por todos invocando a ora Recorrente o Acórdão publicado no BMJ 475, pág. 233, na parte em que afirma que o Tribunal apenas tem que “deixar bem claro que foram por ele apreciados todos os factos alegados, maxime na Contestação, com interesse para a decisão “, como contributo dos jurisprudentes para a fixação dos conceitos normativos, a partir da aplicação concretizadora dos preceitos legais, e nessa medida esclarecedora do complexo sistema que constitui o ordenamento jurídico, assim facilitando o entendimento das regras e pressupostos daquela aplicação. Assim, deve ser considerada inconstitucional a interpretação do artº 374º nº 2 do CPP segundo a qual a exposição ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito que fundamenta a decisão seja efectuada sem a indicação e exame critico das provas e argumentos apresentados pelo arguido na contestação sem as quais a convicção do Tribunal se não pode formar validamente, por violação do artigo 32º nº1 da C.R.P.»
4. O Ministério Público contra-alegou e concluiu nos seguintes termos:
“1. Recurso interposto do Acórdão da Relação (fls. 8641)
a) Porque a norma efectivamente aplicada na decisão recorrida não corresponde àquela que a recorrente pretende ver apreciada, não deverá tomar-se conhecimento do recurso.
b) No âmbito de um recurso de fiscalização da constitucionalidade de normas não cabe nas competências do Tribunal Constitucional sindicar de uma provável inconstitucionalidade das próprias decisões das instâncias, que conduzisse à necessidade de o Tribunal Constitucional passar a apreciar da suficiência e integral concludência do “nível de fundamentação” efectivamente acolhida nas decisões proferidas caso a caso.
c) Estando a decisão devidamente motivada e fundamentada, tal como é exigido pelo artigo n.º 374.º do CPP, encontrando-se explicitado, em termos bastantes, o processo lógico-racional de formação da convicção do tribunal sobre a matéria de facto, está cumprida a exigência constitucional da fundamentação de decisões judiciais (artigo 205.º, n.º 1, da Constituição) e mostram-se respeitados os direitos de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), não sendo constitucionalmente exigível que na descrição factual provada e não provada se tenha de indicar de forma separada os factos extraídos das diferentes peças processuais.
d) Assim, a conhecer-se do objecto do recurso, deve ser negado provimento ao mesmo.
2. Recurso interposto a fls. 10021
a) Não foi suscitada durante o processo, nem enunciada no requerimento de interposição do recurso, qualquer questão de natureza normativa – reportada à aplicação dos artigos 97.º, n.º 2, 374.º, n.º l e 379.º do CPP.
b) Mesmo que assim não se entendesse, mostra-se evidente que as normas na “interpretação” questionadas pela recorrente, não foram aplicadas na decisão recorrida.
c) Faltando, pois, aqueles requisitos de admissibilidade, não deve, nesta parte, conhecer-se do objecto do recurso.
3. Recurso interposto a fls. 9727
a) A decisão recorrida aplicou a norma do artigo 69.º da LOFTJ, cuja inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo, não estando a recorrente dispensada desse ónus.
b) A dimensão normativa que a recorrente pretende ver apreciada, e que enuncia no requerimento de interposição do recurso, não corresponde à que foi efectivamente aplicada no acórdão recorrido.
c) A norma do artigo 69.º da LOFTJ (versão dada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro) ao permitir nos termos aí fixados a acumulação de funções, não viola o princípio do juiz natural (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), não sendo, por isso, inconstitucional.
d) Não deve, pois, também nesta parte, conhecer-se do objecto do recurso, mas, a conhecer-se, deve ser-lhe negado provimento.”
Notificado das conclusões apresentadas pela recorrente, o Ministério Público salienta o seguinte:
“1.º
Notificada para formular conclusões nas alegações que apresentou neste Tribunal Constitucional, a recorrente, no que respeita às alegações no recurso interposto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Julho de 2010 – que nas nossas contra-alegações identificamos no ponto 2 – nada disse, sendo certo que as alegações em causa não tinham conclusões (fls. 10419 a 10454).
2.º
Quanto aos outros dois recursos, verificamos que a recorrente não cumpriu minimamente o que lhe foi exigido pelo douto despacho de fls. 10746.
3º
Ou seja, as conclusões não são concisas, nem claras e precisas, nem rigorosamente limitadas às questões da constitucionalidade, apenas o sendo, formalmente, na designação.”
5. O recorrido H. contra-alegou e conclui nos seguintes termos:
A)
“1. Arguiu a Recorrente a inconstitucionalidade do arts. 68.º, 69.º e 71.º, n.ºs 1, 3 e 5 da LOTJ quando interpretados no sentido de ser permitido ao CSM designar juízes fora do quadro complementar ou bolsa, ou por substituição ou acumulação, nem sequer afectos a Tribunais comuns ou de instrução criminal ou sem formação nesta área específica, para compor um Tribunal Colectivo de competência especializada, por violação do art. 39.º, n.º 2 da CRP;
1.2. Essa interpretação terá, alegadamente, sido feita pelo STJ, por Douto Acórdão de 12 de Maio de 2010 a fls.;
2.1. Todas as motivações do recurso da Recorrente improcedem;
3.1. O Tribunal ad quem não pode conhecer do recurso interposto, dado que a intervenção da Recorrente está ferida de ilegitimidade parcial;
3.2. Os recursos previstos nas als. b) e f) do n.º 1 do art. 70.º da LOTC só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado (cf. art. 72.º, n.º 2 da LOTC);
3.3. A Recorrente pretende ver declarada por este Tribunal inconstitucionalidades nunca antes suscitadas, a saber: i) Do art. 68.º da LOFTJ, quando interpretado em certo sentido; ii) Do art. 69.º da LOFTJ, quando interpretado em certo sentido; e, por fim, iii) Do art. 71.º, n.ºs 1, 3 e 5 da LOFTJ, quando interpretado no sentido de ser permitido ao CSM escolher juízes vogais por substituição ou acumulação, não afectos a Tribunais criminais ou de instrução criminal ou sem formação na área específica para onde são escolhidos, com exclusão de qualquer outra actividade na Vara Criminal;
3.4. Anteriormente, em sede própria, a Recorrente apenas suscitou a (alegada) inconstitucionalidade do art. 71.º, n.ºs 1, 3 e 5 da LOFTJ, quando interpretado no sentido de permitir ao CSM designar para compor o Tribunal de 1ª instância juízes não pertencentes nem à Bolsa, nem ao Quadro Complementar de Juízes;
3.5. A decisão em causa não se trata de uma decisão surpresa, dado que não foi fundamentada em factos não conhecidos pela Recorrente;
3.6. Deve, pois, na hipótese académica de se conhecer do presente recurso declarar-se a ilegitimidade da Recorrente quanto às Arguições mencionadas em 3.3. antecedente conforme melhor alegados em 41.º a 68.º das contra-alegações de recurso apresentadas, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos;
4.1. Ainda que assim não se considere e sem conceder, existe manifesta falta de fundamento no recurso interposto;
4.2. A Recorrente apoia a sua argumentação numa pretensa (e falsa) interpretação constante do Acórdão de 12 de Maio de 2010;
4.3. No Douto Acórdão do STJ de 12 de Maio de 2010, os arts. 68º, 69.º e 71.º, n.ºs 1, 3 e 6, da LOFTJ nunca foram interpretados no sentido de que o CSM pode escolher juízes vogais por substituição ou acumulação, não afectos a Tribunais criminais ou de instrução criminal ou sem formação na área específica para onde são escolhidos, com exclusão de qualquer outra actividade na Vara Criminal;
4.4. Tal interpretação não consta do Douto Acórdão de 12 de Maio de 2010 e pressupõe a demonstração de factos que nem sequer se encontram nos autos;
4.5. Porque tal interpretação não foi feita, improcede o recurso interposto conforme melhor alegados em 69.º a 80º das contra-alegações de recurso apresentadas, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos;
5.1. Sem prejuízo, sempre se aduzirá que o Tribunal Colectivo de 1ª Instância que julgou a Recorrente é competente;
5.2. Para a realização do julgamento em 1ª Instância foram os presentes autos distribuídos à 9ª Vara Criminal de Lisboa;
5.3. Em resultado do impedimento dos Juízes titulares da 9ª Vara e para assegurar o seu normal funcionamento, os dois vogais titulares, respectivamente, do 8.º e 11.º Juízos de Pequena Instância Cível Liquidatária de Lisboa, foram, face à disponibilidade manifestada, designados para exercer funções nessa Vara, por despacho do Conselho Superior da Magistratura, de 12 de Abril de 2007;
5.4. As regras da competência do Tribunal não se confundem com matéria distinta, que é a designação dos juízes que o compõem;
5.5. O art. 71.º da LOFTJ (1999) dispunha sobre a Bolsa de Juízes, prevendo que na sede de cada distrito judicial haja “uma bolsa de Juízes para destacamento em tribunais da respectiva circunscrição em que se verifique a falta ou o impedimento dos seus titulares ou a vacatura do lugar, em circunstâncias que, pelo período de tempo previsível de ausência ou de preenchimento do lugar, conjugado com o volume de serviço, desaconselhem o recurso aos regimes de substituição ou de acumulação de funções”;
5.6. A Bolsa de Juízes, rectius o Quadro Complementar de Juízes, destina-se a suprir a falta de Juízes em tribunais da respectiva circunscrição, apenas quando decorra da conjugação dos factores enunciados que seja desaconselhado o recurso ao regime de substituição ou acumulação de funções;
5.7. Assim, a designação dos Juízes que constem da Bolsa de Juízes para exercer funções nos tribunais da respectiva circunscrição é subsidiária;
5.8. Só será obrigatória quando ocorram circunstâncias que desaconselhem o recurso aos regimes de substituição ou de acumulação de funções, facto não demonstrado, nem sequer alegado, pela Recorrente;
5.9. Não se verificando tal contra-indicação, a designação de Juízes de forma a assegurar o normal funcionamento do Tribunal é processada em consonância ora com o regime de substituição, ora com o regime de acumulação de funções;
5.10. A acumulação de funções, prevista no art. 69.º, n.º 1 da LOFTJ, tem lugar quando “ponderando as necessidades do serviço, o Conselho Superior da Magistratura [...J, com carácter excepcional, determinar que um juiz, obtida a sua anuência, exerça funções em mais de um juízo ou em mais de um Tribunal, ainda que de circunscrição diferente”;
5.11. É a própria Recorrente a reconhecer o impedimento dos Juízes titulares da 9ª Vara para assegurar o seu normal funcionamento;
5.12. Porque a Lei não impõe que os Juízes designados para suprir a falta de Juízes em tribunais da respectiva circunscrição sejam os integrantes da Bolsa de Juízes, apenas se pode concluir que os dois Juízes Vogais do Tribunal Colectivo foram correctamente designados;
5.13. Porque os mesmos foram, e bem, designados em acumulação de funções, e não em comissão de serviço, não tinham, nos termos legais, de ser designados por 3 anos (cf. n.º 5 do art. 68.º da LOFTJ – 1999 – a contrario) conforme melhor alegados em 82.º a 106.º das contra-alegações de recurso apresentadas, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos;
6.1. O art. 44.º do EMJ não foi violado pela STJ, no seu Douto Acórdão de 12 de Maio de 2010;
6.2. Em primeiro, lugar porque não é aplicável;
6.3. Este artigo trata da colocação dos juízes, no âmbito dos movimentos judiciais, que têm lugar, todos os anos, no mês de Julho;
6.4. No caso em apreço, não se estava perante movimentos judiciais;
6.5. Estava-se perante a possibilidade de certos magistrados, colocados em certas comarcas, no âmbito dos movimentos judiciais, serem designados, em regime de acumulação de serviços, para exercerem outras funções;
6.6. Em segundo lugar, e sem conceder, porque ainda que ao caso em apreço fosse aplicável o mencionado art. 44.º do EMJ, para do mesmo retirarmos os efeitos que a Recorrente aspira, seria necessário demonstrar o desrespeito dos respectivos pressupostos, prova que a Recorrente não fez, conforme melhor alegados em 106.º a 118.º das contra-alegações de recurso apresentadas, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos;
7.1. Não há violação do princípio do Juiz Natural, nem do art. 32.º, n.º 9 da CRP;
7.2. O princípio do Juiz Natural, que decorre directamente do n.º 9 do art. 32.º da CRP, destina-se a impedir a criação de tribunais de excepção, isto é, a evitar a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo (assim, JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo 1, 2005, pág. 362);
7.3. Subjaz ao Juiz Natural o entendimento de que “a substituição dos Juízes nos impedimentos tem de obedecer a regras objectivas gerais estabelecidas por lei” (cf. JORGE MIRANDA/ RUI MEDEIROS, ob. cit., pág. 363);
7.4. Estas regras, como se viu, existem e são objectivas, sendo certo que no caso sub judice nenhum dos juízes do Tribunal Colectivo de 1ª Instância se encontrava impedido ou foi substituído, conforme melhor alegados em 126.º a 152.º das contra-alegações de recurso apresentadas, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos;
8.1. O art. 71.º, n.°s 1, 3 e 5 da LOFTJ foi correctamente interpretado;
8.2. A interpretação deste artigo no sentido de ser permitido ao Conselho Superior de Magistratura, escolher juízes fora do Quadro Complementar não viola as regras de salvaguarda dos direitos dos arguidos (n.º 9 do art. 32.º da CRP), por ser a única interpretação correcta e resultar de critério objectivo e imparcial;
8.3 A Recorrente sustenta a violação dos seus direitos de defesa sem concretizar os termos em que terão sido, alegadamente, vilipendiados;
8.4. A verdade, porém, é que nenhum dos direitos de defesa da Recorrente foi violado, considerando que i) foi julgada por juízes e que ii) nenhum dos juízes do Tribunal Colectivo de 1ª instância se encontrava impedido de o fazer, nos termos dos arts. 39.º e/ou 40.º ambos do CPP;
9.1. A competência material de qualquer Tribunal, incluindo o criminal, não se afere pelos juízes que o compõem, ao contrário do que opina a Recorrente, mas, nos termos legais, pelos assuntos que são atribuídos para julgar;
9.2. No caso sub judice tratou-se da uma Vara Criminal (de Lisboa) e, nos termos legais – art. 98.º, n.º 1 da LOFTJ (1999) –, é da sua competência material, “proceder ao julgamento e termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do tribunal colectivo ou do júri”;
9.3. A competência para o julgamento dos crimes pelos quais a Recorrente foi acusada e pronunciada é do Tribunal colectivo (cf. art. 14.º, do CPP);
9.4. A partir do momento em que os dois juízes vogais designados pelo CSM integraram o Tribunal Colectivo passaram a ser juízes privativos da respectiva Vara Criminal;
9.5. A Recorrente foi julgada e condenada por um Tribunal Colectivo numa Vara Criminal.
(…)
B)
“1.1. Argui a Recorrente a inconstitucionalidade dos arts. 92.º, n.º 2, 374º, n.º 2 e 379º, todos do CPP, quando interpretados no sentido de que para a fundamentação de uma decisão sobre o cúmulo jurídico das penas basta uma concordância com a decisão de que se recorre, por violação do art. 205º, n.º 1 da CRP;
1.2. Nas suas conclusões a inconstitucionalidade restringiu-se ao art. 374.º, n.º 2, quando interpretado de certo modo;
1.3. Esta interpretação terá, alegadamente, sido feita pelo STJ, por Doutro Acórdão de 14 de Julho de 2010 a fls.;
2.1. Todas as motivações do recurso da Recorrente improcedem;
3.1. O Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso da Recorrente, dado que a sua intervenção está ferida de ilegitimidade;
3.2. Os recursos previstos nas als. b) e f) do n.º 1 do art. 70.º da LOTC só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a inconstitucionalidade/ilegalidade do modo processualmente adequado (art. 72.º, n.º 2 da LOTC);
3.3. A Recorrente pretende ver declarada pelo TC uma inconstitucionalidade nunca antes suscitada: do art. 374.º, n.º 2 do CPP, quando interpretado em certo sentido;
3.4. Anteriormente, em sede própria, a Recorrente apenas suscitou a (alegada) inconstitucionalidade dos arts. 97.º, n.º 2 e 379.º do CPP, quando interpretados no sentido de que para a fundamentação de uma decisão sobre o cúmulo jurídico das penas basta uma concordância com a decisão de que se recorre;
3.5. A decisão em causa não se trata de uma decisão surpresa, dado que o juiz não fundamentou a sua decisão em factos não conhecidos pela Recorrente;
3.6. Assim, na hipótese académica de se conhecer do presente recurso deve declarar-se a ilegitimidade da Recorrente quanto à arguição mencionada em 3.3. antecedente, conforme melhor alegado em 41.º a 57.º das respectivas contra-alegações de recurso, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos;
4.1. Ainda que assim não se considere, o que apenas por dever de patrocínio se equaciona, sem conceder, detecta-se uma manifesta falta de fundamento no recurso apresentado pela Recorrente;
4.2. A Recorrente apoia a sua argumentação numa pretensa (e falsa) interpretação constante do Acórdão do STJ de 14 de Julho de 2010;
4.3. Sucede que, no Douto Acórdão do STJ de 14 de Julho de 2010, os arts. 97.º, n.º 2, 374º, n.º 2 e 379.º do CPP nunca foram interpretados no sentido que Recorrente diz ter sido feito;
4.4. Pelo contrário, o que pode ler-se na fundamentação do dito Acórdão que o Acórdão da Relação foi fundamentado e que não se limitou a uma mera expressão de concordância com a decisão de que se recorre;
4.5. Caso contrário, não era compreensível a redução da pena aplicada à Recorrente pelo Tribunal da Relação, nem a consideração, no douto Acórdão do STJ de 14 de Julho de 2010 de que a pena aplicada à Recorrente se pecava, era por defeito;
4.6. Nestes termos, é falsa e artificiosa a inconstitucionalidade arguida pela Recorrente;
4.7. Os acórdãos em causa foram fundamentados, nos termos da lei, conforme exigido pelo art. 205.º, n.º 1 da CRP;
4.8. É, pois, manifesto que a interpretação cuja constitucionalidade a Recorrente pretende por em crise, não foi feita, improcedendo, portanto, o presente recurso, conforme melhor alegado em 58.º a 69.º das respectivas contra-alegações de recurso, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos;
Nestes termos, e nos demais do Direito aplicável, deverá:
i) Indeferir-se o presente recurso por falta de legitimidade da Recorrente quanto à inconstitucionalidade suscitada;
ii) Subsidiariamente, assim, não se entendendo, julgar-se improcedente o Recurso da Recorrente A..”
6. A recorrente foi ouvida e pronunciou-se sobre as questões obstativas ao conhecimento do objecto do recurso, tendo sustentado a sua improcedência, com ênfase no que respeita ao recurso respeitante à questão da violação do princípio do juiz natural.
II. Fundamentos
7. À tramitação dos recursos para o Tribunal Constitucional são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código de Processo Civil, em especial as respeitantes ao recurso de apelação (artigo 69.º da LTC). Por força do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, estando o presente processo pendente à data da entrada em vigor deste diploma, as alterações por ele introduzidos não são aplicáveis no processamento dos recursos de constitucionalidade que nele surjam (vid. Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, pág. 10). Consequentemente, não tem interesse interrogarmo-nos sobre a repercussão das alterações introduzidas no regime da apelação no processamento do recurso de constitucionalidade, porque, no caso, é seguro que a norma do artigo 69.º da LTC é integrada pelo regime legal do processo civil anterior às alterações introduzidas no processamento da apelação pela Lei n.º 303/07.
O recorrente tem o ónus de alegar e de formular conclusões. Sendo as alegações apresentadas pela recorrente omissas quanto a este último ónus, o relator dirigiu-lhe convite “a formular conclusões concisas, claras e precisas, rigorosamente limitadas às questões de constitucionalidade, sob pena de não se conhecer do objecto do recurso na parte afectada.”.
Ora, verifica-se que a recorrente optou por não apresentar conclusões relativamente ao 3.º recurso, aquele que versa sobre o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 2010. Não entrando agora a apreciar o modo como a recorrente respondeu ao convite relativamente aos demais recursos, é indiscutível que as conclusões apresentadas não se referem a este recurso. O que equivale a deixá-lo deserto.
Deste modo, nos termos do n.º 4 do artigo 690.º do Código de Processo Civil, não pode tomar-se conhecimento do recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 2010, respeitante à fixação da pena única em que, em cúmulo jurídico, a recorrente foi condenada (3.º recurso).
8. Quanto ao recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21 de Maio de 2009 (1.º recurso), as conclusões apresentadas não satisfazem, como o Ministério Público salienta, nenhum dos requisitos que era esperado cumprirem e para cuja exigência a recorrente foi, aliás, alertada no mencionado despacho do relator. A recorrente produziu a este propósito 65 conclusões, que não são restritas à questão de constitucionalidade e que, na generalidade, não constituem proposições sintéticas mediante as quais se enunciem os fundamentos para julgar a norma em causa desconforme a parâmetros constitucionais precisamente identificados, pelo que dificilmente se descortina a parte não afectada pela falta de precisão, concisão e clareza.
De todo o modo, essas conclusões vieram tornar evidente que a desconformidade à Constituição que a recorrente quer ver apreciada no presente recurso não reside na norma do artigo 374.º do Código de Processo Penal, mas no desrespeito, pelas próprias decisões judiciais, da função garantística que essa mesma norma transporta. Foram as duas instâncias que, no entender da recorrente, “não entenderam as exigências do artigo 374º, nº 2 do CPP, como uma verdadeira garantia da Defesa do cidadão, assim menosprezando uma peça jurídica fundamental, como é a Contestação, a qual constitui, para esse cidadão, a mais essencial oportunidade de assegurar que o exame critico, que deve transparecer na fundamentação do Acórdão, também é aferido pelas provas e razões de facto e de direito que o cidadão apresenta na forma e fase processual próprias” e que, no modo como procederam à “reconstituição histórico-processual dos factos” e “à determinação da culpabilidade”, construíram a verdade processual “tendo ignorado a Contestação que a ora Recorrente apresentou, nos termos e pela forma já supra indicados, e cuja quase absoluta desconsideração não proporcionou uma análise lógica, nem racional, nem inteira dos fundamentos das decisões, não tendo, assim, a fundamentação fornecido meios para confrontação dos actos de julgar com os respectivos pressupostos, deste modo inquinando a fundamentação daqueles actos decisórios, que assim, em interpretação das normas do Código do Processo Penal em causa no presente Recurso, violaram os preceitos constitucionais que as acobertam, dando lugar a questões de inconstitucionalidade que aqui se pretendem ver declaradas”. Todo o discurso argumentativo da recorrente é dirigido contra o modo como as instâncias fizeram aplicação do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, na singularidade do caso concreto, sem que se destaque um critério normativo susceptível de generalização que seja posto em confronto com os princípios constitucionais invocados. Concluir, como faz a recorrente (cfr., p. ex., conc. 52), que a norma do n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal contém uma dimensão ou critério normativo que o acórdão recorrido postergou significa que a violação das garantias de defesa é obra da decisão judicial, não da norma jurídica de que fez aplicação.
Ora, como resulta do artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade tem por objecto (em sentido material) a alegada desconformidade à Constituição e aos princípios nela consignados das normas que tenham integrado a ratio decidendi da decisão recorrida e que tenham sido oportunamente arguidas de inconstitucionais. Diversamente do que sucede noutros sistemas, o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade não é a violação de direitos fundamentais directamente imputada às decisões judiciais, mas a norma – ainda que em determinada interpretação ou dimensão, que o interessado tem o ónus de delimitar precisamente de modo a que não se confunda com a solução do caso, nas suas irrepetíveis circunstâncias – que o acto judicial tenha aplicado na decisão de qualquer questão que lhe foi sujeita.
Assim, o recurso não tem objecto idóneo.
Acresce que, mesmo para quem entenda que as alegações e as conclusões da recorrente ainda consentem uma configuração normativa da questão, outra razão obsta a que se conheça do mérito do recurso em referência.
Em conformidade com o modo como a questão foi suscitada perante o Tribunal da Relação (cfr. acta de julgamento de fls. 8306), o que poderia estar em causa seria a inconstitucionalidade das normas do artigo 374.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, “quando interpretados no sentido de dispensar o tribunal de ponderar os factos e analisar os argumentos de direito expressos na contestação”. Ora, o acórdão recorrido não interpretou tais normas nesse sentido. Pelo contrário, considerou que o tribunal de 1.ª instância estava obrigado a ponderar os factos e analisar os argumentos de direito expressos na contestação e que “como a própria recorrente reconhece, na decisão sobre a matéria de facto, na parte da descrição dos factos provados e não provados (e principalmente nestes) o tribunal fez as referências que devia fazer à matéria da contestação”.
Assim, o acórdão recorrido entendeu que o tribunal de 1ª Instância tinha de proceder à ponderação do que foi alegado pela arguida na contestação e que procedeu a tal análise, embora considerando preferível que tivesse indicado de forma separada os factos extraídos das diferentes peças processuais. Portanto, o acórdão recorrido não aplicou o critério normativo que a recorrente arguiu de inconstitucional, antes considerou que o tribunal estava obrigado a ponderar as razões de facto e direito alegadas pelo arguido.
Pelo exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso do acórdão do Tribunal da Relação de 21 de Maio de 2009 (1.º recurso).
8. Resta o recurso que versa sobre o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que recaiu sobre a questão da composição do tribunal colectivo que procedeu ao julgamento da recorrente em 1ª instância (2.º recurso).
Em requerimento avulso, já após ter sido proferido o acórdão da Relação que apreciou o recurso da sentença condenatória, a recorrente arguiu a irregularidade da composição do tribunal colectivo que a julgara, tendo suscitado a seguinte questão de inconstitucionalidade: “Assim sendo, desde já se arguiu a inconstitucionalidade do artigo 71.º, n.ºs 1, 3 e 5 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais (LOFTJ), ao tempo vigente, quando interpretada no sentido de ser permitido ao Conselho Superior da Magistratura escolher os juízes fora do quadro complementar da bolsa, nem sequer afectos aos tribunais criminais ou de instrução criminal, para compor o tribunal colectivo, ad hoc, para um determinado processo, por violação do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição”.
O Supremo Tribunal de Justiça, pelo acórdão de 12 de Maio de 2010, veio a entender que lhe competia apreciar essa questão, tendo-o feito nos seguintes termos:
«10.2. Argumenta a recorrente que, no seu julgamento, no dia 12/4/2007, intervieram o juiz-presidente da Vara e dois outros juízes, que pensou pertencerem à bolsa de juízes, ou seja ao quadro complementar de juízes do Distrito, a que alude o art. 79.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ) – Lei n.º 3/99, de 13/1. Como veio a constatar mais tarde, esses juízes, porém, não tinham provindo da referida bolsa ou quadro complementar, mas tinham sido designados por despacho do vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM), em exercício na altura, e colocados em regime de colocação, face à disponibilidade por eles manifestada, sendo certo que pertenciam ambos a Juízos de Pequena Instância Cível Liquidatária, de Lisboa, respectivamente, o 8.º e o 11.º Juízos.
Através dos despachos certificados que a arguida fez juntar aos autos, constata-se que os juízes da 9.ª Vara Criminal de Lisboa – e 2ª Secções – representaram ao CSM a dificuldade de realização em simultâneo de vários julgamentos complexos e demorados, um dos quais era este processo e outros que eram identificados, sugerindo, por isso, algumas medidas.
O Vice-presidente, não inteiramente elucidado, pediu esclarecimentos complementares e questionou os respectivos juízes sobre se não seria possível realizar os vários julgamentos por recurso a substituições entre os juízes da própria Vara.
Fornecidas tais explicações e constatando a dificuldade das substituições nos moldes apontados, o Vice-presidente exarou despacho, em que determinou:
'Face às explicações que, relativamente ao teor do oficio de fls. 140, e na sequência do meu despacho de 11/04/2007, me foram pessoalmente transmitidas pelos Ex.mos Juízes da 9ª Vara Criminal de Lisboa, com a presença do Ex.mo Vogal Distrital, Dr. I., constato que se visa, com o aludido oficio, sensibilizar o Conselho Superior da Magistratura para encontrar uma solução que permita que a 9ª Vara Criminal possa assegurar o seu normal funcionamento, mesmo com os julgamentos em causa a decorrer vários dias por semana — o que se torna necessário dado o elevado de pessoas nele envolvidas.
Assim, face à disponibilidade manifestada pelos Ex.mos Juízes de Direito Dr. C. e Dr. D., titulares dos 8° e 11.º Juízos de Pequena Instância Cível Liquidatária de Lisboa, determino que os mesmos exerçam funções, em regime de acumulação, na 9ª Vara Criminal de Lisboa, com efeitos a partir de hoje, dia 12-04-2007 e por um período inicial de 30 dias'.
Alega a recorrente que, por não pertencerem à acima referida bolsa ou quadro complementar de juízes, estes nomeados em comissão de serviço por três anos, e antes, ao serem aqueles juízes que compuseram o colectivo colocados ad hoc para um determinado processo, foi violado o princípio do juiz natural, consubstanciado no art. 32.º, n.º 9 da Constituição.
No seu entendimento, «a 9ª Vara Criminal é um tribunal de competência específica – art. 211.º, n.º 2 da CRP – penal, pelo que os juízes que o podem compor, no impedimento dos titulares dessa Vara, terão de constar do quadro complementar de juízes – os quais são nomeados em comissão de serviço pelo período de três anos, nunca por 30 dias como aconteceu no caso vertente.»
Assim, «o tribunal colectivo acaba composto por um presidente (juiz natural ou legal) e dois juízes cíveis, pelo que impossível se toma considerá-lo um tribunal de competência específico ou Vara Criminal.»
Vejamos:
Previa o art. 71.º, n.º 1, na versão originária da LOFTJ (depois art. 79.º) que, «na sede de cada distrito judicial há uma bolsa de juízes para destacamento em tribunais da respectiva circunscrição em que se verifique a falta ou o impedimento dos seus titulares ou a vacatura do lugar, em circunstâncias que, pelo período de tempo previsível de ausência ou de preenchimento do lugar, conjugado com o volume de serviço, desaconselhem o recurso ao regime de substituição ou de acumulação de funções, constantes dos artigos 68.º e 69.º»
No art. 68.º, regulava-se o modo de substituição de juízes, o qual se aplicava às faltas e impedimentos dos respectivos titulares, e no art. 69.º, a acumulação de funções, que tinha lugar, “com carácter excepcional”, quando o CSM, ponderando as necessidades do serviço, determinasse que um juiz exercesse funções em mais do que um juízo ou em mais do que um tribunal, ainda que de circunscrição diferente.
Resulta, pois, do confronto dessas normas que o recurso à bolsa de juízes ou quadro complementar, em que os juízes a ele pertencentes eram colocados, em regime de destacamento, em tribunais de determinada circunscrição, era subsidiário em relação ao regime de substituição ou acumulação de funções, isto é, quando este último fosse “desaconselhado”, por força de circunstâncias ligadas ao “tempo previsível de ausência ou de preenchimento do lugar, conjugado com o volume de serviço”.
A razão, para além de estar mencionada na própria norma, tinha a ver com a duração mais ou menos longa da falta, impedimento ou vacatura de lugar, indiciada pelo tempo previsível de ausência ou de preenchimento do lugar, conjugada com o volume de serviço e ainda com o sistema que presidia a cada um dos regimes: destacamento em tribunais da mesma circunscrição, no caso, da bolsa de juízes, e afectação por período curto – 30 dias, em princípio, nos termos do n.º 5 do art. 68.º e 2 do art. 69.º -, sendo que, no caso de acumulação, o juiz designado passava a prestar serviço em mais do que um juízo ou em mais do que um tribunal, ainda que de circunscrições diferentes, e daí o carácter excepcional da afectação a que alude o preceito.
Ora, no caso vertente, o Vice-presidente do CSM, ponderando a situação em causa, de natureza transitória, caracterizada por uma concentração de julgamentos, nesse período, que implicavam alguma demora face ao número de arguidos e testemunhas, não podendo os juízes da 9.ª Vara substituir-se uns aos outros, sem que tal acarretasse prejuízo para o andamento dos julgamentos – factos estes que foram por ele averiguados, como resulta da correspondência trocada entre ele e os respectivos magistrados e das conversas pessoais a que alude no seu despacho – optou pelo regime de acumulação de funções, depois de os respectivos juízes terem manifestado disponibilidade para o efeito. Ou seja, seguiu um dos procedimento a que a lei preferentemente manda atender, segundo critérios de ponderação por ela definidos.
Assim, o CSM, através do seu Vice-presidente, não infringiu a lei no que diz respeito à designação dos juízes adjuntos para formarem o tribunal colectivo. Mais: estes, tendo sido designados em acumulação de serviço para exercerem funções na 9ª Vara Criminal – um tribunal de competência específica penal -, passaram, para todos os efeitos, a ser juízes dessa Vara e, portanto, os juízes competentes para formarem o Tribunal Colectivo que procedeu ao julgamento da recorrente.
Também não foi violado qualquer princípio constitucional, nomeadamente o princípio do juiz natural, consignado no art. 32.º, n.º 9 da CRP.
Com efeito, «o princípio do juiz natural visa assegurar o direito fundamental dos cidadãos a que as causas sejam julgadas por tribunal previsto como competente por lei anterior, e não por tribunal ad hoc, ad causam suspectus, criado ou tido como competente. Este princípio tem, pois, por finalidade evitar a designação arbitrária de um juiz ou de um tribunal para decidir um caso submetido a juízo, por essa forma se assegurando a imparcialidade dos juízes e dos tribunais, com proscrição dos tribunais ad hoc. O que importa essencialmente não é a competência individualizada de um determinado tribunal para o caso concreto, proibindo-se que a causa venha a ser submetida a tribunais diferentes dos que eram competentes à data da prática dos factos que constituem o objecto do processo, mas tão-só que em razão daquela causa ou de categorias de causas a que ela pertence sejam criados post factum tribunais de excepção ou a definição individualizada da competência, o desaforamento ou a nomeação dos juízes por qualquer forma discricionária» (Ac. de 12-06-2008, Proc. n. 1771/08 - Secção),
Como se escreveu no Acórdão de 11/02/2008, proc. n.º 3983/08, da 5ª Secção, de que foi relator o mesmo deste processo, «o que verdadeiramente está em causa quando se fala do princípio do “juiz natural” é a chamada Raison d ‘État, ou seja, a criação de tribunais ad hoc para julgar determinadas causas, subtraindo-as à competência determinada por lei anterior geral e abstracta. O que o referido princípio postula é, pois, a rejeição da criação de tribunais ad hoc para julgar certos processos ou certos arguidos, em conformidade com uma “razão de Estado” e, por extensão, a designação arbitrária do tribunal para conhecer de um dado caso, em vez de se seguir o princípio da determinação por lei anterior geral e abstracta, assegurando-se com isso a independência e a imparcialidade do juiz».
Ora, no caso sub judice, não ocorreu a criação de um tribunal ad hoc para julgar a causa. O tribunal que procedeu ao julgamento era aquele que, por lei anterior, estava predefinido para julgar causas criminais do tipo daquelas que constituem o objecto deste processo, ou seja, a 9ª Vara Criminal, a quem coube, segundo critérios de distribuição também legalmente previstos, a competência para a realização do julgamento e prolação da respectiva decisão.
Os juízes que compuseram o colectivo como adjuntos também não foram designados arbitrariamente, mas segundo critérios pré-estabelecidos na lei e pela entidade competente para tal.
Assim, não ocorreu a violação do princípio do juiz natural, nem foram ofendidas as regras de composição do tribunal colectivo, pelo que nenhuma nulidade existe, nomeadamente a do art. 119.º, n.º 1, alínea a) do CPP.»
Foram estes os termos da apreciação da questão da violação do juiz natural por parte do Supremo Tribunal de Justiça, questão esta que o modo como a recorrente concebeu o recurso de constitucionalidade que interpôs não permite apreciar.
Efectivamente, quem pretenda aceder ao Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC tem o ónus de suscitar a questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos processualmente adequados, por forma a este estar obrigado a dela conhecer (n.º 2 do artigo 72.º da LTC). A regra é a exigência de identidade essencial entre a questão suscitada perante o tribunal a quo e a questão submetida ao Tribunal Constitucional, só assim não sendo se a decisão recorrida se tiver afastado, de modo objectivamente imprevisível, da interpretação ou aplicação normativa esperada. Ora, como excepciona o Ministério Público, não há correspondência entre a dimensão normativa cuja constitucionalidade a recorrente colocou no requerimento em que suscitou a questão da violação do princípio do juiz natural pela composição do tribunal colectivo que a julgou e aquela que agora submete ao Tribunal Constitucional.
Com efeito, no referido requerimento, a recorrente referia a questão de constitucionalidade a uma determinada interpretação do artigo 71.º da LOFTJ na redacção vigente no momento em que os juízes que vieram a integrar o colectivo foram designados para prestar serviço na 9.ª Vara Criminal de Lisboa (a que corresponde o artigo 79.º, na redacção da LOFTJ aprovada pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto). Demonstrado pelo acórdão do Supremo que a intervenção dos juízes que serviram como vogais do colectivo do julgamento em 1ª instância resultou de nomeação em acumulação de funções e não da mobilização da “bolsa de juízes”, a recorrente acrescenta como objecto de recurso o artigo 69.º da LOFTJ, na mesma redacção vigente à data do despacho do Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura.
Todavia, esta interpretação efectuada pelo Supremo Tribunal de Justiça de modo algum pode ser considerada inesperada ou surpreendente, por forma que não fosse exigível que a recorrente a previsse e a incluísse na colocação prévia da questão de constitucionalidade. A aplicação do artigo 69.º da LOFTJ como norma habilitante para a designação dos juízes que integraram a formação de julgamento em 1ª instância corresponde àquilo que resultava dos despachos do Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura que procedeu a tal nomeação. Como consta, do despacho que a própria recorrente transcreveu, essa nomeação ocorreu “em regime de acumulação” com os lugares de que esses juízes eram titulares. São normas diferentes correspondendo a instrumentos de gestão diversos e com distinta habilitação legal, aquela que permite ao Conselho prover a necessidades do serviço através do regime de acumulação de funções (artigo 69.º) e aquela que prevê a criação de um quadro complementar ou bolsa de juízes (artigo 71.º), que são destacados para fazer face a faltas, impedimentos ou vacaturas de lugares que não devam ser supridas por substituição ou acumulação. A norma ao abrigo da qual foi praticado o acto de gestão que levou a que o tribunal de julgamento tivesse uma composição que a recorrente tem por contrária ao princípio do juiz natural foi aquela que permite que o Conselho Superior da Magistratura, ponderadas as necessidades de serviço, determine que um juiz exerça, a título excepcional, funções em mais de um juízo ou mais de um tribunal; não aquela que cria a “bolsa de juízes” e disciplina a respectiva mobilização.
Assim, o acto de gestão dos magistrados judiciais de que alegadamente resulta a violação do referido princípio não fez aplicação das normas relativas à composição ou à gestão do quadro complementar de juízes, mas ao regime de acumulação de funções dos juízes de direito em juízo ou tribunal diferente daquele de que são titulares. Já conhecendo, no momento em que suscitou a questão, os despachos do Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, a recorrente teria necessariamente de prever que o Supremo Tribunal de Justiça viesse a apreciar a legalidade da intervenção dos juízes vogais do tribunal colectivo à luz do artigo 69.º (regime de acumulação) e não do artigo 71.º (bolsa de juízes) da LOFTJ. E seria esse específico regime legal que deveria confrontar com as exigências do juiz natural para que, num sistema como o português, a questão pudesse ser posteriormente deferida ao Tribunal Constitucional.
E não procede o argumento, esgrimido pela recorrente na resposta, de que ao arguir a inconstitucionalidade do artigo 71.º estava “implicitamente a incluir os artigos 68.º e 69.º que dele fazem parte”. É exacto que o n.º 1 do artigo 71.º da LOFTJ dispunha que “na sede de cada distrito judicial há uma bolsa de juízes para destacamento em tribunais da respectiva circunscrição em que se verifique falta ou o impedimento dos seus titulares ou a vacatura do lugar, em circunstâncias que, pelo período de tempo previsível de ausência ou de preenchimento de lugar, conjugado com o volume de serviço, desaconselhem o recurso aos regimes de substituição ou de acumulação de funções constantes dos artigos 68.º e 69.º”. Esta referência aos artigos 68.º e 69.º significa que, no plano legislativo, a bolsa de juízes serve para acudir a necessidades de serviço que os mecanismos primários de substituição e acumulação não permitam resolver. Mas não unifica os instrumentos de gestão nem dissolve na mesma norma as respectivas previsões normativas, de tal modo que invocar a inconstitucionalidade do artigo 71.º seja o mesmo que invocar a inconstitucionalidade do artigo 69.º. Se a referência contida no artigo 71.º aos artigos 68.º e 69.º tivesse algum préstimo para a questão agora em apreciação seria o de demonstrar que a mobilização de juízes mediante acumulação e mediante o quadro complementar corresponde a realidades normativas diversas. Ora, a colocação da questão de constitucionalidade, exige-o a Constituição [artigo 280.º, n.º 1, alínea b) da CRP] e exige-o a Lei [artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da LTC], faz-se tendo por objecto uma norma ou normas perfeitamente identificadas, não por referência a um problema de constitucionalidade comum às eventuais respostas do legislador a determinada necessidade organizatória ou da vida social ou administrativa.
Consequentemente, por falta de suscitação da inconstitucionalidade da norma que constituiu ratio decidendi da questão apreciada quanto à composição do tribunal colectivo, também não pode conhecer-se do objecto do recurso interposto do acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 2010.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto dos três recursos interpostos e condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 7 de Julho de 2011. – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.