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Processo n.º 464/2011
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A., ora reclamante, condenado em 1ª instância, pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de €5,00, recorreu da sentença condenatória para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo sido negado provimento ao recurso por Acórdão de 10 de Novembro de 2010.
Veio então arguir a nulidade deste acórdão, por alegadamente enfermar do vício previsto no artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), o que foi indeferido por Acórdão de 12 de Janeiro de 2011.
Inconformado, interpôs deste último acórdão recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que não foi, contudo, admitido pelo Tribunal da Relação, por despacho do relator de 15 de Fevereiro de 2011, que o considerou irrecorrível atento o disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do CPP, também julgado aplicável ao acórdão visado.
Reclamou deste último despacho o recorrente, nos termos do n.º 1 do artigo 405.º do CPP, invocando perante o Supremo Tribunal de Justiça «o direito de ver reapreciado, por um Tribunal Superior, a questão que levantou em tempo oportuno, acerca da nulidade insanável”, sob pena de violação do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
A reclamação foi, porém, indeferida, por despacho de 20 de Abril de 2011, que confirmou o juízo de irrecorribilidade formulado no despacho reclamado, com fundamento nas normas conjugadas dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, em cujo âmbito previsional se considerou estar integrado o acórdão cujo recurso se pretendia, com tal incidente, ver admitido.
O ora reclamante, ainda inconformado, interpôs deste último despacho recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), a fim de ver apreciada a inconstitucionalidade:
a) «Da norma do artigo 119.º, al. a) do CP.P., na interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, isto é, interpretada no sentido de que a nulidade insanável concretizada no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por não se encontrar devidamente constituído o colectivo, é irrecorrível, pois tal norma, com a interpretação que lhe foi aplicada viola o artigo 32º, nº 1 da C.R.P.»;
b) «Do princípio “in dubio pro reo” corolário do princípio constitucional da presunção de inocência, artigo 32º nº 2 da C.R.P., quando interpretados no sentido em que os factos dados como provados na decisão da 1ª instância e confirmados pelo Tribunal da Relação de Lisboa, são suficientes para concluir que se encontravam devidamente precisadas as circunstâncias modeladoras da actividade criminal do recorrente.».
O Tribunal recorrido, por despacho do relator de 10 de Maio de 2011, não admitiu, contudo, o recurso, por considerar que as normas que integram o respectivo objecto não constituem critério e fundamento da decisão que indeferiu a reclamação, sendo, pois, inútil o seu conhecimento pelo Tribunal Constitucional.
É contra este último despacho que vem deduzido, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da LTC, a presente reclamação, invocando o reclamante, em abono do seu deferimento, que «a essência do recurso para o Tribunal Constitucional encontra-se no invocado artigo [119.º, alínea a), do C.P.P.], afigurando-se de diminuto significado a não referência aos artigos 432º, nº 1, alínea b) e 400º, nº 1, alínea c), do C.P.P.» por ser aquele que «(…) expressamente constitui “in casu” suporte da nulidade do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa», que as instâncias, com a sindicada interpretação normativa, julgaram irrecorrível, omissão que, aliás, sempre seria suprível por via da possibilidade legal de aperfeiçoamento do requerimento de interposição do recurso (artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC).
O Ministério Público emitiu parecer no sentido do indeferimento da reclamação pelos fundamentos por que foi rejeitado, pelo Tribunal reclamado, o recurso de constitucionalidade.
2. Cumpre apreciar e decidir.
O recurso rejeitado pelo despacho reclamado foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que é à luz dos pressupostos do recurso nela previstos que se deve aferir se, no caso, se impunha, como pretende o reclamante, a sua admissão.
Ora, destacam-se da citada norma legal três segmentos que se reconduzem a três pressupostos processuais que, embora conexos, são autonomizáveis: em primeiro lugar, dela resulta que o recurso de constitucionalidade tem necessariamente por objecto normas jurídicas, pelo que, através dele, apenas se aprecia a sua conformidade jurídica com a Constituição, estando, pois, excluída qualquer reapreciação, em tal perspectiva, que tenha por objecto directo a própria decisão que as aplicou ao caso concreto; em segundo lugar, é necessário que a norma cuja (in)constitucionalidade se pretende ver apreciada tenha sido efectivamente aplicada pela decisão recorrida, o que, na densificação jurisprudencial que o Tribunal Constitucional tem feito de um tal pressuposto, quer significar que apenas são admissíveis, por úteis, os recursos onde se sindica a constitucionalidade das normas que constituem o verdadeiro fundamento da decisão recorrida, porquanto da sua procedência pode resultar modificação de julgado, o que não sucede nos casos em que a decisão recorrida se baseia em norma ou interpretação normativa diferente daquelas que integram o objecto do recurso; em último lugar, é ainda necessário que o recorrente tenha, durante o processo, suscitado perante o Tribunal recorrido a questão da inconstitucionalidade da norma que, por não se julgar inconstitucional, veio a constituir o fundamento normativo da decisão, sendo precisamente esse juízo, implícito ou explícito, de não inconstitucionalidade que é objecto de reapreciação pelo Tribunal Constitucional no recurso dela interposto.
No caso vertente, não se verifica nenhum dos enunciados pressupostos processuais.
Com efeito, no que respeita à questão de inconstitucionalidade atinente ao artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do CPP, verifica-se, como ajuizado na decisão sob reclamação, que a norma nele consagrada não chegou a ser aplicada pela decisão de que o ora reclamante interpôs o recurso de constitucionalidade rejeitado, o que pressuporia o conhecimento de mérito da própria verificação da nulidade insanável nele tipificada que aquela considerou, justamente, inadmissível por aplicação das normas dos artigos 432.º, nº 1, alínea b) e 400.º, nº 1, alínea c), do C.P.P., constituindo, pois, estas últimas, e não a da alínea a) do n.º 1 do artigo 119.º do C.P.P., o verdadeiro fundamento normativo da decisão recorrida.
Por outro lado, pretende o ora reclamante sindicar a constitucionalidade da citada norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 119.º do CP.P., «(…) interpretada no sentido de que a nulidade insanável concretizada no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por não se encontrar devidamente constituído o colectivo, é irrecorrível», mas, não só não se descortina no objecto do recurso assim delimitado quaisquer traços de normatividade, atento o apelo casuístico implicado na concreta referência ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e à nulidade insanável de que este alegadamente padece, como, de todo o modo, não foi sequer esse o juízo de irrecorribilidade formulado pelo Tribunal recorrido, pois que o que se considerou irrecorrível, por força das normas conjugadas dos artigos 432.º, nº 1, alínea b) e 400.º, nº 1, alínea c), do C.P.P., não foi o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa a que o ora reclamante dirigiu a arguição de nulidade mas aquele que, conhecendo desta última, a indeferiu.
Finalmente, também na reclamação deduzida perante o Supremo Tribunal de Justiça, momento processualmente oportuno para o efeito, o ora reclamante em nenhum momento questionou a constitucionalidade das normas adjectivas pertinentes à resolução da questão cuja reapreciação visava, através de um tal incidente, mas, mais uma vez, do próprio juízo decisório de irrecorribilidade formulado no despacho reclamado, invocando, a propósito, «o direito de ver reapreciado, por um Tribunal superior, a questão que levantou, em tempo oportuno, acerca da nulidade insanável», sob pena de violação do artigo 32.º da C.R.P., pelo que àquelas razões de não conhecimento acresce a inobservância do ónus de suscitação de questão de inconstitucionalidade normativa previsto nas disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC.
No que respeita aqueloutra questão de inconstitucionalidade, enunciada na alínea b) do requerimento de interposição do recurso e acima transcrita, é manifesto que, pretendendo-se, sob formulação só aparentemente normativa, ver apreciado, numa perspectiva de conformação constitucional, o próprio juízo subsuntivo formulado pela 1ª instância, e confirmado pela Relação, em matéria de preenchimento dos elementos do tipo penal em referência, a que o despacho recorrido é, aliás, totalmente alheio, não se pode conhecer, também nessa parte, por não normativo, do objecto do recurso.
É, pois, de confirmar, pela enunciadas razões, o despacho reclamado, sendo certo que, estando em causa, como demonstrado, vícios processuais que afectam o próprio conhecimento do objecto do recurso, e não meras irregularidades do respectivo requerimento de interposição, nunca seria de aplicar, como pretende o reclamante, o invocado n.º 5 do artigo 75.º-A da LTC.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação deduzida, nos presentes autos, pelo recorrente A..
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 7 de Julho de 2011. – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.