Imprimir acórdão
Processo n.º 862/2010
Plenário
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos do disposto na alínea g) do nº 2 do artigo 281.º da Constituição, a declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes das alíneas g) e h) do nº 2 e do nº 3 do artigo 11.º e, consequentemente, do nº 4 do artigo 20.º da Lei nº 12-A/2010, de 30 de Junho.
O teor das normas questionadas é o seguinte:
Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho
Aprova um conjunto de medidas adicionais de consolidação orçamental que visam reforçar e acelerar a redução de défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC)
Artigo 11.º
Redução do vencimento dos titulares de cargos políticos
1 – O vencimento mensal ilíquido dos titulares de cargos políticos é reduzido a título excepcional em 5 %.
2 – Para efeitos do disposto na presente lei, são titulares de cargos políticos:
[…]
g) Os deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas;
h) Os membros dos governos regionais;
[…].
3 – O regime excepcional previsto no presente artigo não implica a alteração do vencimento dos titulares de cargos cujos vencimentos se encontram indexados aos de qualquer dos titulares de cargos políticos referidos no número anterior, tomando-se como referência, para efeitos da referida indexação, os valores em vigor antes da data de entrada em vigor da presente lei.
Artigo 20.º
Entrada em vigor
[…]
4 – O disposto nos artigos 11.º e 12.º produz efeitos a partir de 1 de Junho de 2010.
2. A Requerente apresenta as suas alegações, sob a forma de resolução, nos termos que literalmente se transcrevem:
O Governo da República, no dia 24 de Maio de 2010, apresentou na Assembleia da República a Proposta de Lei n° 26/XI – “Aprova um conjunto de medidas adicionais de consolidação orçamental que visam reforçar e acelerar a redução de défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC)”.
No dia 25 de Maio de 2010 o diploma baixou à Comissão de Orçamento e Finanças da Assembleia da República para emissão do relatório, tendo sido nomeada relatora a deputada do CDS/PP – Assunção Cristas. Procedeu-se à discussão e votação na generalidade do diploma aos 2 dias de Junho de 2010.
Aos 9 dias de Junho de 2010, procedeu-se à discussão e votação na especialidade. Culminando com a votação final global, ainda no mesmo dia, com a sua aprovação na reunião plenária n.° 66.
Aprovação que deu origem ao Decreto da Assembleia n° 23/XI – “Aprova um conjunto de medidas adicionais de consolidação orçamental que visam reforçar e acelerar a redução de défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC)”
Tendo sido promulgada por Sua Excelência o Presidente da República no dia 28 de Junho de 2010, e referendada pelo Senhor Primeiro-Ministro, no dia 29 de Junho de 2010.
Em Diário da República, 1 Série, n.° 125, de 30 de Junho de 2010, foi publicada a Lei n° 12-A/2010 “Aprova um conjunto de medidas adicionais de consolidação orçamental que visam reforçar e acelerar a redução de défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC)”.
O artigo 11° da Lei em apreço estatui a redução a título excepcional em 5% do vencimento mensal ilíquido dos titulares de cargos políticos.
Mais dispondo no seu n.° 2 que, para efeitos do disposto na presente lei, são titulares de cargos políticos, entre outros, alíneas g) e h), os deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os membros dos governos regionais, respectivamente.
Ora, nos termos do disposto no número 7, do artigo 231° da Constituição da República Portuguesa, “o estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas é definido nos respectivos estatutos político-administrativos”.
O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, na sua versão actual, foi republicado no Diário da República, 1ª Série – A, n.° 195, de 21 de Agosto de 1999, consagrando no seu artigo 75° o estatuto remuneratório dos titulares dos órgãos de governo próprio da Região Autónoma da Madeira.
Mais dispondo o n.º 20, do artigo 75° que “o estatuto remuneratório constante da presente lei, não poderá, designadamente em matéria de vencimentos, subsídios, subvenções, abonos e ajudas de custo, lesar direitos adquiridos”.
A norma constante do n.° 3, do artigo 11°, da Lei n.º 12-A/2010, a qual dispõe sobre o seu âmbito subjectivo de aplicação, determina expressamente que «o regime excepcional previsto no presente artigo não implica a alteração do vencimento dos titulares de cargos cujos vencimentos se encontram indexados aos de qualquer dos titulares de cargos políticos referidos no número anterior, tomando-se como referência, para efeitos da referida indexação, os valores em vigor antes da data de entrada cm vigor da presente lei».
Não deixa de ser legítimo inferir, no plano lógico e no teleológico, sob pena de incongruência, que se a norma do n.º 2, do artigo 11° da lei coloca os titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas no âmbito subjectivo de aplicação desse mesmo diploma é porque se propõe dispor utilmente sobre o estatuto remuneratório dos mesmos titulares dos órgãos de governo próprio, matéria que figura no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
Ora, quanto ao sentido dessa incidência normativa, não tendo a disposição constante dos n.os 2 e 3, do artigo 11.º da lei qualquer intenção derrogatória do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira pelo diploma “sub judicio”, restará circunscrever a aplicação útil e possível da referida lei aos titulares dos órgãos de governo próprio, a apenas um tipo de relação jurídico-normativa, mormente a sua aplicação como legislação supletiva em relação ao Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
Abordando a hipótese da supletividade configurada no parágrafo anterior, resulta da Constituição que o estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas é definido nos respectivos estatutos político-administrativos, pelo que caberá em exclusivo ao respectivo estatuto – ao qual o artigo 231° da CRP impõe uma competência necessariamente especial – determinar qual a legislação supletiva que lhe será aplicável e qual o âmbito dessa aplicação.
Verifica-se, por conseguinte, à luz dessa especialidade estatutária conformada por força de uma imposição constitucional, que:
a) Uma realidade será o Estatuto Político-Administrativo, como lei especial constitucionalmente qualificada, cuja aprovação está integrada na competência da Assembleia da República, definir qual a legislação supletiva que se lhe aplica;
b) Outra, bem diferente, será uma lei integrada na reserva relativa de competência da mesma Assembleia, impor-se ao Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, como legislação subsidiária.
A solução contida na lei que se encontra em apreciação é precisamente a inversa da solução constitucionalmente exigível, dado que dos n.os 2 e 3, do artigo 11° da lei (conjugado com outras disposições, como a do artigo 20°), se retira uma imposição de aplicação aos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas, mesmo na eventual qualidade de legislação supletiva, invertendo-se a regra decorrente do n.° 7 do artigo 231.º da CRP que reserva aos estatutos político-administrativos a regulação de todo o estatuto remuneratório que lhes é funcionalmente aplicável, nele compreendida a determinação da legislação subsidiária.
Por consequência, o facto de os n° 2 e 3, do artigo 11° da lei deslocar a determinação de legislação subsidiária virtualmente aplicável ao estatuto remuneratório dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas, do estatuto político-administrativo para a presente lei, não deixa de poder ter como efeito a sua inconstitucionalidade,
Assim:
A Assembleia Legislativa da Madeira, no uso do direito consagrado nas alíneas a), h) e d), do número 1, conjugado com a alínea g), do número 2 do artigo 281.º, da Constituição da República, bem como das alíneas a) e e), do número 1, do artigo 97.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, com base nos indicados fundamentos, solicita que se aprecie a constitucionalidade da norma constante das alíneas g) e h), do n° 2 e n° 3 do artigo 11° e, a título consequente, as normas do n.º 4 do artigo 20.º, por provável violação do disposto no n° 7, do artigo 231°. da Constituição da República Portuguesa, bem como por violação do artigo 75° do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
3. Notificado para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, o Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos, enviando cópia da documentação relativa aos trabalhos preparatórios da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, precedida de um índice.
4. Elaborado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, e discutido em Plenário, o memorando a que alude o artigo 63.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, cabe agora decidir em conformidade com a orientação que aí se fixou.
II – Fundamentação
5. A Lei nº 12-A/2010, de 30 de Junho, veio aprovar um conjunto de medidas adicionais de consolidação orçamental, visando reforçar e acelerar a redução do défice excessivo e o controlo do crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC).
Entre tais medidas conta-se a redução do vencimento dos titulares de cargos políticos, prevista no artigo 11.º da referida lei, que estabelece, logo no seu nº 1, que “o vencimento mensal ilíquido [dos titulares de cargos políticos] é reduzido a título excepcional em 5%”. O nº 2 do mesmo artigo determina que, para efeitos de tal redução, sejam tidos como “titulares de cargos políticos”, para além do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República, do Primeiro-Ministro, dos Deputados à Assembleia da República, dos membros do Governo, dos Representantes da República nas Regiões Autónomas, dos Governadores e vice-governadores civis e dos presidentes e vereadores a tempo inteiro das câmaras municipais, ainda os deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas [alínea g)] e os membros dos Governos regionais [alínea h)]. Para limitar os efeitos que poderiam indirectamente decorrer do estatuído nestes nºs 1 e 2, vem por seu turno o nº 3 [do artigo 11.º] estipular que a redução de vencimento não opera em relação aos titulares de cargos cujos vencimentos se encontrem indexados ao de qualquer dos titulares enumerado na lista anterior.
Finalmente, determina o nº 4 do artigo 20.º que todo este regime produza efeitos a partir de 1 de Julho de 2010.
Como acima se relatou, pede a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira que o Tribunal declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas contidas nas alíneas g) e h) do nº 2 e no nº 3 do artigo 11.º da Lei nº 12-A/2010. O pedido inclui ainda a invalidação, a título consequencial, da norma relativa à entrada em vigor do regime substantivo que se impugna.
A sustentar a impugnação surgem as seguintes ideias essenciais.
Afirma antes do mais a Requerente que, ao incluir os deputados às assembleias legislativas das regiões e os membros dos governos regionais no elenco dos “titulares de cargos políticos” aos quais se aplicará a medida de redução do vencimento, as alíneas g) e h) do nº 2 do artigo 11.º impedem que os titulares dos órgãos de governo próprio das regiões fiquem abrangidos pelo regime excepcional (de não redução de vencimento) que o nº 3 do mesmo artigo prevê.
Com fundamento nesta leitura conjunta das disposições, alega que a Lei nº 12-A/2010, lei comum da Assembleia da República, se propõe “dispor utilmente sobre o estatuto remuneratório dos […] titulares de órgãos de governo próprio [da região], matéria que figura no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira”, acrescentando que ela não poderia valer senão a título de “legislação supletiva” por indicação do próprio Estatuto, uma vez que “resulta da Constituição que o estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas é definido nos respectivos estatutos político-administrativos, pelo que caberá em exclusivo ao respectivo estatuto – ao qual o artigo 231.º da CRP impõe uma competência necessariamente especial – determinar qual a legislação supletiva que lhe será aplicável e qual o âmbito da sua aplicação”.
A concluir, pede a Requerente que as normas em causa sejam declaradas inconstitucionais por violação do disposto no nº 7 do artigo 231.º da Constituição, “bem como por violação do artigo 75.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira”.
Deve no entanto desde já dizer-se que a eventual contradição entre o disposto no artigo 11.º da Lei nº 12-A/2010 e o disposto no artigo 75.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, a ocorrer, prefigurará, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 281.º da CRP, uma ilegalidade por violação de lei de valor reforçado e não uma inconstitucionalidade por violação directa da Constituição. Ora, não tendo a Requerente formulado qualquer pedido de declaração de ilegalidade – pedido esse que, face à disposição constitucional acima referida, não será, enquanto tal, dispensável –, só no quadro da fundamentação do seu pedido de declaração de inconstitucionalidade se poderá compreender a questão da eventual contradição entre o disposto na Lei nº 12-A/2010 e o disposto no artigo 75.º do EPARAM.
É também neste quadro que se deve entender a alusão, feita igualmente no pedido, a uma eventual violação, por parte das normas sob juízo, de direitos adquiridos nos termos do nº 20 do artigo 75.º do EPARAM, de acordo com o qual não seria possível regredir nos vencimentos de titulares de cargos políticos regionais: “O estatuto remuneratório constante da presente lei não poderá, designadamente em matéria de vencimentos, subsídios, subvenções, abonos e ajudas de custo, lesar direitos adquiridos”.
Independentemente do problema de saber se a norma estatutária terá o alcance geral que a Requerente lhe pretende atribuir, de cláusula geral de proibição de retrocesso em matéria de remunerações de titulares de cargos políticos da região, a verdade é que é esta uma questão que só se compreenderia no âmbito de um hipotético pedido de declaração de ilegalidade por força da contradição entre as normas impugnadas e normas estatutárias, integrantes de lei com valor reforçado, pedido esse que não chegou a ser formulado.
Assim, e não podendo o Tribunal conhecer, enquanto problema autónomo face ao problema da inconstitucionalidade, da ilegalidade da normas constantes da lei da Assembleia da República, incidirá todo o discurso que se segue sobre a questão de saber se as disposições legislativas em juízo lesam, como afirma a Requerente, o previsto no nº 7 do artigo 231.º da CRP.
6. Dispõe literalmente o nº 7 do artigo 231.º da Constituição que “[o] estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas é definido nos respectivos estatutos.”
Tem entendido o Tribunal, em conformidade com a doutrina, que aqui se constitui uma reserva material de estatutos ou de leis estatutárias.
Quer isto dizer que a “matéria” em causa – o estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas –, devendo constar dos estatutos político-administrativos de cada região, só pode ser regulada por lei da Assembleia da República que, exprimindo a competência que à mesma Assembleia é atribuída pela alínea b) do artigo 161.º da Constituição, venha a ser aprovada de acordo com o procedimento especialmente previsto no artigo 226.º.
Afirmar que certa matéria só pode ser regulada por certa fonte equivale a afirmar que nenhuma outra o pode fazer. No caso, determinar que o estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões seja definido pelos respectivos estatutos político-administrativos equivale a proibir que qualquer outro tipo de acto legislativo (lei comum da Assembleia, decreto-lei do Governo ou decreto legislativo regional) venha a ocupar-se de tal definição. É, pois, nesta específica, e excludente, dimensão da “reserva” que se apoia a Requerente, ao sustentar que a Lei nº 12-A/2010 da Assembleia da República (aprovada de acordo com o procedimento comum e não de acordo com o procedimento especialmente previsto no artigo 226.º), por “dispor utilmente” sobre o estatuto remuneratório dos deputados às assembleias legislativas regionais e dos membros dos governos regionais, invadiu, em contradição com o prescrito pelo nº 7 do artigo 231.º da CRP, a esfera de normação constitucionalmente reservada às leis estatuárias.
A resolução do problema exige que em função dele se interprete a expressão contida no preceito constitucional. Importa por isso, e antes do mais, saber em que é que consiste o estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões; se dele faz parte o estatuto remuneratório [dos mesmos titulares]; e se as normas sob juízo dizem ainda respeito a toda essa “matéria”, não regulável por lei comum da Assembleia da República.
7. Das duas primeiras questões se ocupou já a jurisprudência do Tribunal.
Com efeito, e quanto à questão de saber em que é que consiste o estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões e a sua “definição”, disse-se, nomeadamente nos Acórdãos nºs 92/92, 637/95, 382/2007, 10/2008 e 525/2008, que a expressão incluiria seguramente o estatuto dos deputados regionais, na fixação do regime dos seus deveres, responsabilidades, incompatibilidades e impedimentos e, reciprocamente, na previsão dos seus direitos, regalias e imunidades.
Por seu turno, e quanto à questão de saber se o estatuto remuneratório [dos titulares de órgãos de governo próprio das regiões] ainda se incluiria no âmbito da categoria ampla atrás definida, disse-se especialmente no Acórdão nº 637/95:
“[A] Constituição exige que o estatuto d[os] titulares dos órgãos de governo próprio regional se ache definido no estatuto político-administrativo. Há, pois, uma reserva de lei estatutária na matéria. A definição desse estatuto tem de abranger os deveres, as responsabilidades e incompatibilidades desses titulares, bem como os respectivos direitos, regalias e imunidades. O estatuto remuneratório ou regime de remuneração abrange um conjunto de direitos e regalias. Por isso, a definição desse regime remuneratório há-de ser aprovada pela Assembleia da República, por iniciativa do órgão legislativo regional (…)”.
Contudo, na mesma decisão estabeleceu-se ainda a diferença entre definição de regime remuneratório e determinação do quantum da remuneração, esclarecendo-se que só a primeira (que consistiria apenas na fixação de um critério de remuneração, ou na fixação dos seus limites mínimos e máximos) faria parte da “matéria” reservada à lei estatutária.
A argumentação do Tribunal, para proceder a esta distinção, fundou-se sobretudo na versão dada pela Lei Constitucional nº 1/82 à então alínea g) do artigo 167.º da Constituição, que dizia ser da competência absoluta da Assembleia da República legislar sobre “estatuto dos titulares dos órgãos de soberania e do poder local, do Conselho de Estado e do Provedor de Justiça, incluindo o regime das respectivas remunerações” (itálico nosso).
Na verdade, e comentando esta disposição, escrevia na altura a doutrina:
“O âmbito da matéria da alínea g) surge claramente delimitado por referência aos artigos 113.º e 120.º [hoje, artigos 110.º e 117.º]. Trata-se de definir o regime de responsabilidade dos titulares dos cargos aí mencionados (nomeadamente da responsabilidade criminal), bem como os deveres, responsabilidades e incompatibilidades e, reciprocamente, os direitos, regalias e imunidades, incluindo o regime remuneratório (mas não necessariamente a fixação do seu montante). Curioso é notar a omissão da menção dos titulares dos órgãos das regiões autónomas; todavia, o estatuto deles há-de constar do respectivo estatuto regional [artigo 233.º nº 5 (hoje, artigo 231.º, nº 7)], cuja aprovação também pertence em exclusivo à AR”. (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição, 2º volume, p. 193, nota X ao artigo 167.º)
A partir desta distinção entre regime remuneratório e fixação do montante da remuneração, feita a propósito do interpretação da, à altura, alínea g) do artigo 167.º da Constituição (entendimento esse respaldado pelos trabalhos preparatórios da revisão constitucional, onde também se deixara claro que reservada à competência da Assembleia da República ficaria apenas o regime ou o critério da remuneração dos titulares dos órgãos, mas não o montante da mesma: Diário da Assembleia da República, II Série, nº 39, de 15 de Janeiro de 1982, p. 852-65), resolveu o Tribunal, no já referido Acórdão nº 637/95, que reservada às leis estatutárias estaria “a indicação de um critério suficientemente preciso do modo de determinação do quantum remuneratório a que têm direito os deputados regionais” ou “a variação entre o minimus e o maximus, para se usar utilizar uma expressão sugestiva”, mas não a fixação da remuneração, em si mesma considerada.
8. É em harmonia com este entendimento que o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (EPARAM) estabelece o estatuto remuneratório (epígrafe do Capítulo III da secção II) dos titulares de cargos políticos dos órgãos de governo próprio da região.
Na verdade, no seu artigo 75.º, o EPARAM consagra, enquanto critério suficientemente preciso do modo de determinação do quantum remuneratório a que têm direito tanto os deputados à Assembleia Legislativa quanto os membros do Governo regional (definidos, no nº 1 do referido artigo, como sendo, na região, os titulares de cargos políticos dos órgãos de governo próprio), o princípio geral da equiparação remuneratória a determinados titulares de cargos políticos nacionais e, designadamente, aos ministros, aos secretários de Estado e aos subsecretários de Estado.
A equiparação começa por ser feita no nº 3 do artigo 75.º, que diz:
O Presidente da Assembleia Legislativa Regional e o Presidente do Governo Regional têm estatuto remuneratório idêntico ao de ministro.
É a partir da equiparação do estatuto remuneratório do Presidente da Assembleia Legislativa Regional ao estatuto remuneratório de ministro que, depois, no nº 4, se fixa percentualmente o valor dos vencimentos dos deputados regionais:
Os deputados à Assembleia Legislativa Regional percebem mensalmente um vencimento correspondente a 75% do vencimento do Presidente da Assembleia Legislativa Regional.
É também a partir da mesma equiparação ao estatuto remuneratório de ministro, feita agora por mediação do estatuto remuneratório do Presidente do Governo Regional, que se fixa percentualmente, no nº 5, o valor do vencimento dos vice-presidentes do Governo Regional:
Os vice-presidentes do Governo Regional auferem um vencimento e uma verba para despesas de representação que correspondem, respectivamente, a metade da soma dos vencimentos e da soma das referidas verbas auferidas pelo Presidente do Governo Regional e por um secretário regional.
O vencimento dos secretários regionais e dos subsecretários regionais, por seu turno, encontra-se a partir da equiparação com o estatuto remuneratório dos secretários e subsecretários de Estado que é feita no n.º 6:
Os secretários regionais têm estatuto remuneratório idêntico ao dos secretários de Estado e os subsecretários regionais ao dos subsecretários de Estado.
Deste modo, para se saber qual é o vencimento ilíquido mensal dos deputados às assembleias legislativas regionais e dos membros dos governos regionais é necessário saber qual é o vencimento ilíquido mensal dos ministros e dos secretários e subsecretários de Estado, cujos estatutos remuneratórios são definidos por lei da Assembleia da República (Lei n.º 4/85, de 9 de Abril, alterada, por último, pela Lei nº 52-A/2005, de 19 de Outubro) e servem de base à equiparação de princípio que o EPARAM estatui.
9. A norma do artigo 11.º da Lei n.º 12-A/2010 opera uma alteração, em bloco, do vencimento mensal ilíquido dos titulares de cargos políticos, ao abrigo do artigo 117.º, n.º 2, da Constituição. E essa alteração abrangerá naturalmente os titulares de cargos políticos regionais, sob pena de o vencimento mensal ilíquido destes últimos ficar em contradição com o seu estatuto remuneratório, tal como ele é definido no artigo 75.º do EPARAM.
Na verdade, sendo tal estatuto remuneratório fixado, como acabámos de ver, com base na equiparação com o estatuto remuneratório de titulares de cargos políticos de nível nacional, caso se reduzisse o vencimento mensal ilíquido destes últimos sem a correlativa redução do vencimento ilíquido dos titulares de cargos políticos regionais, ficariam estes a perceber mensalmente mais do que o seu próprio estatuto remuneratório estabelece. De facto, o Presidente da Assembleia Legislativa Regional e o Presidente do Governo Regional ficariam a receber mais do que os ministros. Como consequência da ruptura da equiparação básica que é feita entre o estatuto remuneratório do Presidente da Assembleia Legislativa Regional e o estatuto remuneratório de ministro, também os deputados à Assembleia Legislativa Regional ficariam a receber mensalmente um vencimento superior a 75% do vencimento mensal desses mesmos ministros; e os secretários regionais, por seu turno, receberiam mais do que os secretários de Estado e os subsecretários regionais mais do que os subsecretários de Estado.
Assim, as alíneas g) e h) do nº 2 do artigo 11.º da Lei nº 12-A/2010, ao incluírem na lista dos titulares de cargos políticos sujeitos à redução excepcional de vencimento ilíquido mensal prevista nesta disposição os titulares dos cargos políticos regionais, não vieram exprimir uma opção legislativa autónoma face que está definido no artigo 75.º do EPARAM. Para utilizar a linguagem da Requerente, não vieram dispor utilmente sobre o estatuto remuneratório daqueles mesmos titulares. Limitaram-se antes a decidir em harmonia com o critério básico sobre o qual assenta o referido estatuto, critério básico esse que, aliás, sempre impediria o legislador nacional (vinculado pelo valor reforçado das leis estatutárias) de quebrar, nomeadamente através do disposto no nº 3 do artigo 11.º, a ligação referencial entre o vencimento dos titulares de cargos políticos regionais e o vencimento dos ministros e dos secretários e subsecretários de Estado.
Tanto basta para que se conclua que o regime estabelecido no artigo 11.º, nº 2, alíneas g) e h), e nº 3 da Lei nº 12-A/2010 não lesa a reserva material de lei estatutária fixada no nº 7 do artigo 231.º da CRP. Tal regime apenas se harmoniza com o critério adoptado pelo EPARAM, que faz depender a fixação do montante concreto das remunerações [dos titulares de cargos regionais] do estipulado por outra fonte legislativa que não a inserta em leis estatuárias. O facto de essa outra fonte ser, de acordo ainda com o Estatuto da Região, a lei nacional, ou lei do Estado, nenhum problema coloca face ao sistema de autonomia regional, constitucionalmente consagrado. Com efeito – e embora não seja essa a linha de argumentação seguida pela Requerente – sempre se salientará que não é função dos Estatutos Político-Administrativos aprovados pela Assembleia da República fixar apenas os direitos autonómicos da região em relação à República. A autonomia regional é uma autonomia relacional. E, assim sendo, a posição autonómica poderá estar, por força dos próprios Estatutos, em determinados domínios dependente daquilo que sucede a nível nacional.
Deste modo, e em suma, não lesam as normas impugnadas a reserva de estatuto, consagrada no artigo 231.º, nº 7, da Constituição da República Portuguesa.
III – Decisão
Assim, pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes das alíneas g) e h) do nº 2, e do nº 3 do artigo 11.º, bem como do n.º 4 do artigo 20.º da Lei nº 12-A/2010, de 30 de Junho.
Lisboa, 17 de Maio de 2011.- Maria Lúcia Amaral – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – José Borges Soeiro – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão – Ana Maria Guerra Martins (votei a decisão, mas afasto-me da fundamentação na parte que invoca o acórdão n.º 637/95, pois considero que a questão sobre que este incide é totalmente diversa da actualmente em discussão, pelo que não faz sentido a sua invocação) – Maria João Antunes (vencida, nos termos da declaração de voto do Conselheiro Sousa Ribeiro) – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, de acordo com a declaração anexa) – Carlos Pamplona de Oliveira – vencido nos termos da declaração que junto. – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti da posição que fez vencimento por entender que o nível remuneratório dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas, enquanto componente essencial do seu estatuto remuneratório (por sua vez componente do estatuto) cai no âmbito da reserva de estatuto (artigo 231.º, n.º 7, da CRP), e que, assim sendo, nenhum outro tipo de diploma, que não o Estatuto Político-Administrativo das regiões autónomas, pode regular essa matéria – como foi expressamente afirmado, a propósito do regime de incompatibilidades e impedimentos, pelo Acórdão n.º 525/2008.
A primeira destas duas ideias fundamentadoras é rejeitada pelo Acórdão, que estabelece uma distinção conceptual entre regime remuneratório e fixação do montante da remuneração, para sustentar, em seguida, que só o primeiro, mas já não a segunda, cai no âmbito da reserva estatutária.
Como raiz e sustentáculo dessa pretendida distinção, é apontada a versão dada pela Lei Constitucional n.º 1/82 à então alínea g) do artigo 167.º da Constituição, a qual dizia ser da competência absoluta da Assembleia da República legislar sobre o “estatuto dos titulares dos órgãos de soberania e do poder local, do Conselho de Estado e do Provedor de Justiça, incluindo o regime das respectivas remunerações”. Os trabalhos preparatórios (em particular a intervenção do deputado Jorge Miranda na Comissão Eventual) evidenciam bem, de facto, que a formulação do segmento por nós sublinhado (em substituição da originalmente proposta: “incluindo as respectivas remunerações”) obedeceu à intenção de deixar claro que não cabia na reserva da Assembleia da República a fixação do quantitativo pecuniário da remuneração, mas apenas o critério a que ela devia obedecer.
Mas, se isso não sofre dúvidas, menos certo não é que a questão suscitada por aquela norma – inaplicável, de resto, aos titulares dos órgãos das regiões autónomas, uma vez que já então a Constituição dispunha que o estatuto deles devia constar do respectivo estatuto regional (artigo 233.º, n.º 5) - foi, apenas, a do nível de concretização exigível à lei da Assembleia da República para dar cumprimento à reserva de competência que lhe foi constitucionalmente cometida. Já assim era, aliás, em face do artigo 167.º, alínea u), da versão originária da Constituição, que dispunha ser da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre a “remuneração do Presidente da República, dos Deputados, dos membros do Governo e dos juízes do tribunais superiores”. Em face desta norma, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA interrogavam-se se “as remunerações têm de ser fixadas por lei da AR ou se basta que esta defina as regras de fixação das remunerações” (Constituição da República Portuguesa anotada, 1.ª ed., Coimbra, 1978, p. 335).
Ora, não há paralelismo de campos problemáticos, nem similitude de pontos de vista valorativos quanto a saber o que deve constar das leis da Assembleia da República, no exercício da reserva comum de competência legislativa, e aquilo que a ela está subtraído, por ser constitucionalmente matéria estatutária. E a diferença resulta da necessária realização do princípio da autonomia, de que a reserva material de estatuto é expressão concretizadora. Como garante de efectivação desse princípio, a este nível “constitucional” de definição dos poderes autonómicos, a emissão de leis estatutárias obedece a um procedimento legiferante próprio, que exige cooperação entre a Assembleia da República e as assembleias legislativas regionais (cfr. o artigo 226.º, n.º 1).
Deste ponto de vista, não faz sentido entender, como faz o Acórdão, que o conceito de estatuto, na esfera remuneratória, deve ser interpretado restritivamente, dele excluindo a fixação dos montantes de retribuição, para o efeito de guardar para a competência comum da Assembleia da República poder autónomo de intervenção legislativa ao nível mais elevado de concretização. É evidente que, tal como para as leis emitidas no exercício da reserva comum de competência, pode pôr-se o problema da forma mais ou menos esgotante e precisa como as leis estatutárias devem disciplinar o estatuto dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas. Mas isso para demarcar o que pode ser deixado à competência das assembleias regionais, em desenvolvimento concretizador dos critérios estabelecidos nos estatutos, não para abrir campo de intervenção para as leis normais da Assembleia da República. Só assim se respeita integralmente o princípio da autonomia, sem abrir mão do princípio da unidade do Estado, que a competência da Assembleia da República para aprovação dos estatutos visa assegurar. E é por demais seguro que, quanto maior a exigência de regulação acabada nos próprios estatutos, mais intensamente se tutela o princípio da soberania estadual.
Foi essa mesma questão do nível de definição exigível nos próprios estatutos que se suscitou no Acórdão n.º 637/95, a propósito do então artigo 28.º da ERAM. Esteve em causa saber se ele continha uma definição suficientemente precisa do estatuto remuneratório dos deputados às assembleias regionais e se a concretização desse estatuto, nos termos em que era feita, poderia ser delegada na assembleia legislativa regional. A colocação do problema aponta, pois, em sentido oposto ao do presente Acórdão, pelo que não se me afigura que a convocação da jurisprudência do Acórdão n.º637/95 seja pertinente para a questão agora decidida.
À luz da solução que fez vencimento neste Acórdão, pode encontrar-se numa lei comum da República fundamento normativo bastante para a dedução de 5% a que ficam sujeitas as remunerações em causa, e isto à margem da eficácia reguladora dos estatutos. O que, justamente, a reserva estabelecida no artigo 231.º, n.º 7, da CRP não permite. Os estatutos não têm que regular directamente essa matéria, mas neles tem que se situar a fonte última de qualquer normação, neste campo. - Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido. Em meu entender, a determinação concreta do quantum remuneratório é uma mera operação material que decorre do 'estatuto remuneratório' do agente público, não apresentando qualquer autonomia face a esse estatuto; por sua vez, o 'estatuto remuneratório' dos titulares de cargos políticos das Regiões constitui uma parte integrante do 'estatuto dos titulares de órgãos de governo próprio das regiões autónomas', cuja definição a Constituição quis expressamente arrumar nos Estatutos Político-Administrativos das Regiões, cfr. n.º 7 do artigo 231º da Constituição.
A reserva constitucional de estatuto proíbe, em absoluto, que outro 'tipo' de actos normativos regule a matéria incluída nessa reserva, cfr. artigos 112º n.º 3, 168º n.º 6 alínea f) e 226º da Constituição. A norma em causa, o artigo 11º da Lei n.º 12-A/2010 de 30 de Junho, ao pretender interferir directamente no montante das remunerações auferidas pelos titulares de órgãos de governo próprio das regiões autónomas, visou disciplinar o estatuto remuneratório desses agentes, definindo desse modo o estatuto dos titulares de órgãos de governo próprio das regiões autónomas, em manifesta violação do disposto no aludido n.º 7 do artigo 231º da Constituição.
Votei, em consequência, pela declaração de inconstitucionalidade das normas impugnadas do artigo 11 da Lei n.º 12-A/2010 de 30 de Junho. - Carlos Pamplona de Oliveira.