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Processo nº 666/2000
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. C recorreu para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 91, ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo que seja julgada inconstitucional a norma constante do nº 1 do artigo 296º do Código de Processo Civil, cujo texto é o seguinte:
'1. A desistência da instância depende da aceitação do réu, desde que seja requerida depois do oferecimento da contestação.' O recurso foi admitido.
2. Nas alegações apresentadas no recurso de agravo, de fls. 74, C sustentou que tal norma era inconstitucional quando interpretada no sentido de que não carece de aceitação do réu a desistência da instância apresentada antes da contestação, mas depois da citação, por violação do 'princípio da igualdade de armas no processo' (conclusão B) das referidas alegações), consagrado no nº 4 do artigo
20º da Constituição. O Tribunal da Relação do Porto, porém, desatendeu a alegação de inconstitucionalidade material e negou provimento ao recurso, interposto da sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Paredes que homologara a desistência da instância na acção de preferência que contra ela e outra ré haviam proposto R e marido. A desistência fora homologada sem que o tribunal considerasse necessária a aceitação das rés, uma vez que fora requerida depois da citação, mas antes da apresentação das contestações.
3. Notificada para o efeito, C apresentou as suas alegações, nas quais concluiu da seguinte forma:
'(...) b) O artigo 296 n.º 1 do C.P. Civil é materialmente inconstitucional. c) Na verdade, a desistência da instância após a citação e antes do oferecimento da contestação viola vários princípios fundamentais imanentes ao nosso sistema processual civil e jurídico-constitucional. d) A partir da citação geram-se entre as partes em confronto um complexo de direitos e deveres recíprocos, que não mais podem ser postos em causa apenas por uma das partes e ou de modo arbitrário. e) A partir da citação o réu vê-se legalmente obrigado a desenvolver toda uma actividade material e ou jurídica conducente a uma boa defesa, a qual tem de ser defendida de modo consistente e não arbitrário. f) O legislador ordinário não pode ignorar a realidade objectiva que se desenvolve a partir da citação do réu e até ao termo do prazo que tem para contestar, a qual corre por sua conta e risco e exclusivo interesse e que pode e deve ser tutelada juridicamente e não pode ser obstaculizada por um acto arbitrário da outra parte mesmo que aparentemente coberto pela lei. g) Durante esse período que tem para contestar nada pode afectar a estabilidade da instância e ou a consistência jurídica e ou económica dos interesses do réu. h) Estando em confronto um eventual direito do autor de desistir da instância após a citação e até ao oferecimento da contestação, com o complexo de direitos adquiridos pelo réu, após a citação, onde se inclui o direito de não contestação, devem prevalecer claramente os interesses deste, porque hierarquicamente superiores no nosso ordenamento jurídico. i) O princípio da estabilidade da instância, após a citação, e o da igualdade das partes e ou de armas no processo, são valores fundamentais a preservar no nosso ordenamento processual civil e jurídico constitucional. j) Por outro lado a citação confere direitos ao réu de que este não pode ser despojado senão com justa indemnização, sendo que um deles, é de ver solucionada a questão submetida a juízo e a não dar por perdido todo o trabalho despendido e que pode ser economicamente de valor muito elevado. l) O princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 268 n.º 4 da Constituição, concede ao réu na acção o direito de se defender no prazo que lhe foi concedido em processo equitativo e de não ver prejudicados os seus direitos de defesa, nestes incluídos os prejuízos e ou incómodos desenvolvidos no sentido de contestar em tempo útil e ver solucionada a questão, o que não aconteceu in casu. m) Na verdade, as recorrentes, designadamente a recorrente C, teve que se deslocar da República Federal da Alemanha a Portugal, para constituir mandatário e diligenciar por obter a matéria de facto e ou provas pertinentes, o que lhe causou graves prejuízos económicos, sem contar com o enorme stress que lhe causou a propositura da acção e que a manter-se o entendimento das instâncias nunca será ressarcível e daí a sua inconstitucionalidade. n) Será que os prejuízos causados às recorrentes com o trabalho dispendido para poderem oferecer a contestação em tempo útil, não são juridicamente relevantes e dignos de tutela?!. o) Como é que os recorrentes se podem defender efectivamente nesta acção, se, depois de desenvolverem uma actividade complexa após a citação, consistente na pratica de factos materiais e ou jurídicos, se vêem defraudados por um acto unilateral dos AA. que inutiliza todo o enorme esforço despendido sem qualquer contrapartida justa ?!. p) Os RR. confiaram que podiam contestar a acção no prazo concedido e que esta seria objecto de conhecimento pelo Tribunal, tendo visto frustrados os seus direitos de defesa. q) O legislador ordinário não podia desconhecer nem desproteger os interesses legítimos do réu após a citação. r) O art. 296 n.º 1 do C. P. Civil só pode ser entendido e interpretado face aos princípios gerais processuais civis e jurídico constitucionais, onde está inserido, no sentido de que desistência da instância só pode ser relevante até à citação do réu. s) O art. 296 n.º 1 do C. P. Civil, não pode ser assim interpretado literalmente como o fizeram as instâncias, pelo que se impõe reformar o douto acórdão recorrido de acordo com o normativo constitucional. t) Os princípios gerais fundamentais imanentes ao sistema jurídico constitucional não permitem assim que o autor possa desistir da instância após a citação sem o consentimento do réu, sob pena de ofender aqueles princípios. u) Violou o douto acórdão recorrido, por erro de subsunção, o disposto no n.º 4 do artigo 268 e n.º 4 do artigo 20 da Constituição da República Portuguesa, devendo ser reformado em conformidade com a decisão sobre constitucionalidade que vier a ser agora decidida. Termos em que declarando-se materialmente inconstitucional o disposto no artigo
296 n.º 1 do C.P. Civil e ordenando-se a reforma, em conformidade, do douto acórdão recorrido, será feita, JUSTIÇA' Os recorridos não responderam.
4. Sustenta a recorrente que a norma aqui sob julgamento viola o princípio da estabilidade da instância, e que este princípio é constitucionalmente tutelado. Independentemente da averiguação desta alegada – mas não especificada – base constitucional, a verdade é que o princípio referido em nada é afectado pela admissibilidade da desistência da instância requerida depois da citação, mas antes da apresentação da contestação, sem necessidade de acordo do réu. Com efeito, deste princípio apenas resulta que, citado o réu, só podem ocorrer alterações nos elementos identificadores da acção – sujeitos, pedido e causa de pedir – nas condições previstas na lei.
É evidente a razão de ser deste regime. Deixando agora de lado eventuais interesses de terceiros, que manifestamente não vêm ao caso, entre o interesse do autor na liberdade de alteração daqueles elementos (liberdade que, até à citação, não conhece restrições) e a necessidade de proteger o réu que prepara a sua defesa de acordo com a configuração da acção de que tomou conhecimento ao ser citado, a lei encontrou o equilíbrio na regulamentação contida essencialmente nos artigos 269º, 270º e 273º do Código de Processo Civil, desenhados de forma a evitar que o réu seja surpreendido com uma causa nova num momento do processo em que já não disponha da oportunidade de devidamente orientar a sua oposição. Ora a desistência da instância visa pôr termo ao processo, e não alterar nenhuma acção que deva prosseguir contra o réu; e esta verificação não significa apenas que formalmente se está fora do âmbito de protecção do princípio da estabilidade da instância, mas também que, do ponto de vista material, não há que condicionar as regras relativas às condições da sua admissibilidade aos interesses tutelados pelo mesmo princípio.
5. Também se não pode entender que a norma em apreciação infrinja o princípio da igualdade de armas no processo, ou, em geral o princípio da igualdade das partes, como pretende a recorrente. A desistência da instância, como se sabe, tal como a desistência do pedido, é um negócio unilateral, mediante o qual o autor duma acção pretende pôr termo ao processo; distingue-se da desistência do pedido, que extingue o direito que o autor pretende exercer, por não se reflectir na relação material litigada. Sendo um negócio unilateral, a vontade do réu não releva para a sua formação; pode, todavia, condicionar a respectiva eficácia, naturalmente. E, efectivamente, a norma agora impugnada faz depender de aceitação do réu que contestou a eficácia da desistência da instância. No fundo, a lei tutela o interesse que o réu que já apresentou a sua oposição eventualmente tenha em que a questão de fundo seja resolvida, mesmo contra a vontade do autor. Sustenta a recorrente que esta norma é inconstitucional por não exigir a aceitação do réu, por violação dos referidos princípios da igualdade de armas e da igualdade das partes. Como este Tribunal já teve a oportunidade de afirmar por diversas vezes, 'o princípio da igualdade de armas, a que' a 'recorrente(s) faz(em) apelo - princípio que, para o processo civil, decorre do facto de, num Estado de Direito, o processo dever ser equitativo e leal (a due process, a fair process), em que cada uma das partes deve poder expor, em condições que a não desfavoreçam em confronto com a outra parte, as suas razões perante o tribunal [cf. acórdão nº 249/97 (Diário da República, II série, de 17 de Maio de 1997)], (...) apenas recusa distinções de tratamento arbitrárias, irrazoáveis, carecidas de fundamento racional, que conduzam a que uma das partes fique, injustificadamente, colocada em posição de inferioridade processual. Só nesse caso, com efeito, se destrói o equilíbrio postulado pelo dito princípio [cf. o acórdão nº 649/96 (...)] (Acórdão nº 524/98, Diário da República, II Série, de
10 de Novembro de 1998). Não é o que se verifica relativamente à norma em apreciação, que toma em consideração, por um lado, a natureza de acto unilateral da desistência – acto que, por definição, só pode provir do autor da acção –, e, por outro, o interesse do réu, embora apenas o considerando digno de protecção autónoma após a contestação. Não é arbitrária a escolha desse momento. No fundo, o legislador considerou que era de atender o interesse do autor dispor da oportunidade de corrigir os termos em que propôs a acção, repetindo-a, quando ainda não conhecia a oposição do réu; e essa escolha não se pode considerar desrazoável ou arbitrária.
6. Também carece de fundamento a afirmação de que a norma impugnada afecta o
'princípio da tutela jurisdicional efectiva', que a recorrente filia no nº 4 do artigo 268º da Constituição, e o direito a um processo equitativo, tutelado pelo nº 4 do artigo 20º, também da Constituição. Não tem aqui cabimento a referência ao nº 4 do artigo 268º, relativo às garantias dos administrados; mas sempre se poderia invocar direito de acesso à justiça e aos tribunais, consagrado no nº 1 do artigo 20º. Como se escreveu no acórdão nº 529/94 (Diário da República, II Série, de 20 de Dezembro de 1994), '2 - O artigo 20º do diploma básico estatui o direito geral à protecção jurídica, abarcando, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., pp. 161 e seguintes), vários direitos componentes, como sejam o de acesso ao direito, o acesso aos tribunais, o de informação e consulta jurídicas e o de patrocínio judiciário. No que tange à componente de direito de acesso aos tribunais – ou de acesso à tutela jurisdicional –, tem este Tribunal entendido que o mesmo implica a garantia de uma eficaz e efectiva protecção jurisdicional, desdobrada: a. No direito, para defesa de um direito ou interesse legítimo, de acesso a
órgãos independentes e imparciais titulados por quem goza estatutariamente de prerrogativas de inamovibilidade e irresponsabilidade quanto às suas decisões; b. No direito a obter num prazo razoável, por parte daqueles órgãos, uma decisão jurídica sobre uma questão jurídica relevante; e c. No direito à execução da decisão tomada pelo tribunal (cf. Acórdão n.º
444/91, publicado no Diário da República, 2ª série, de 2 de Abril de 1992; cf., em sentido idêntico, G. Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., pp. 666 e seguintes, e G. Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 163). No âmbito do direito de acesso aos tribunais, e como emanação do princípio de Estado de direito democrático e, com ele, do próprio princípio de igualdade, não pode deixar de reconhecer-se caber ali, para que se atinja uma equitativa solução jurídica de conflitos, ‘um correcto funcionamento das regras do contraditório’ (para se utilizarem as palavras do Acórdão n.º 86/88, publicado no Diário da República, 2ª série, de 22 de Agosto de 1988) e da igualdade das
‘partes’. Na verdade, como se discreteou no Acórdão n.º 62/91 (Diário da República, 1ª série, de 19 de Abril de 1991), ‘[s] e bem que não estejam autonomamente consagrados na Constituição, os princípios da igualdade das partes e do contraditório possuem dignidade constitucional, por derivarem, em última instância, do princípio do Estado de direito [...]’. E, mais adiante, acrescentou-se: Por outro lado, aqueles princípios processuais constituem directas emanações do princípio da igualdade. Assim, a sua hipotética violação consubstancia, naturalmente, uma inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 2º e
13º, n.º 1, da Constituição.
9 – Os princípios da igualdade das partes e do contraditório estão intimamente associados: com efeito, o segundo deriva do primeiro. O princípio do contraditório – ou da contraditoriedade – implica que, ‘sendo formulado um pedido ou aposto um argumento a certa pessoa, deve-se dar a essa oportunidade de se pronunciar sobre tal pedido ou argumento, não se decidindo antes de dar tal oportunidade’ [...] Tal princípio assegura, pois, um tratamento igualitário das partes num processo, designadamente ao nível da admissão da prova e da apreciação do seu valor […]. Ambos os princípios, assim conexionados, derivam, em ultima instância, do princípio do Estado de direito, como se referiu, uma vez que encerram ‘uma particular garantia de imparcialidade do tribunal perante as partes’.
3 – Assentes estes parâmetros, deflui desde logo que a garantia ínsita do n.º 1 do artigo 20º da Constituição contém, ela mesma, toda aquela dimensão acarretada pelo princípio da igualdade de armas que a jurisprudência, quer da Comissão Europeia dos Direitos do Homem, quer do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tem entendido como critério de efectivação do direito a um processo equitativo previsto no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cf. Décisions et Rapports, n.ºs 3, 7 e 14, 77, 115, e 228, respectivamente; cf., ainda, Pinheiro Farinha, Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, pp. 29 e seguintes).
(...)
4 – Neste contexto, e não olvidando que o direito de acesso aos tribunais, como se viu já, é elemento que faz parte do próprio princípio da igualdade (‘elemento integrante do princípio material da igualdade [...] e do próprio princípio democrático’, nas palavras de G. Canotilho e V. Moreira, ibidem, p. 162), o o que há que saber é se a norma sub specie vai, na realidade, estabelecer de modo injustificado, intolerável, irrazoável e arbitrário um regime discriminatório para uma das ‘partes’ da acção de molde a tornar a posição processual de uma desvantajosa em relação a outra no tocante ao pleno desfrute dos meios adjectivos postos à sua disposição, o que, a suceder, necessariamente se reflectiria na própria decisão final sobre a questão cuja dilucidação é colocada ao tribunal.' Ora a verdade é que a posição material do réu em nada é afectada pela desistência da instância, que se não repercute na relação material litigada.
7. Em rigor, os fundamentos materiais apontados pela recorrente para sustentar a inconstitucionalidade material da norma em julgamento, e que merecem ponderação, reconduzem-se à ideia de que o réu que é citado para uma acção, para além de poder sofrer danos de natureza moral, como sustenta a recorrente, realiza em vão despesas com a preparação da sua defesa pelas quais não é indemnizado em caso de o autor desistir da instância. Embora caiba observar que, se o autor vier a repetir a acção, sempre teria o réu que organizar a sua – a mesma – defesa, a verdade é que pode efectivamente colocar-se o problema. Acontece, todavia, que, seja qual for a questão de constitucionalidade que uma eventual impossibilidade de ressarcimento pudesse colocar, o (hipotético) vício não poderia ser atribuído à norma do nº 1 do artigo 296º do Código de Processo Civil, da qual nada decorre quanto à ressarcibilidade de tais prejuízos.
Assim, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido no que respeita ao julgamento da questão de constitucionalidade. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs, sem prejuízo do apoio judiciário concedido. Lisboa, 13 de Março de 2001 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida