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Proc. nº 755/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Na Comarca de Guimarães, o Ministério Público deduziu acusação contra onze arguidos, entre os quais a arguida A, por se mostrar indiciada, quanto a esta, a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro. Por despacho de 16 de Junho de 2000 (fls. 38 a 40 destes autos), a acusação foi recebida e designado dia para julgamento. Foi imposta à arguida A a medida de coacção de prisão preventiva, com os seguintes fundamentos:
'Tendo presente a natureza e as circunstâncias do crime, bem como a personalidade da arguida – consumidora de heroína e cocaína – é de considerar, que no caso concreto, se verifica a existência de perigo de continuação da actividade criminosa – artº 204º, alínea c) do C.P.P., sendo certo que à arguida foi aplicada, anteriormente, a medida de coacção de se apresentar periodicamente, não tendo cumprido tal medida. Assim, atendendo às exigências cautelares que o caso requer e que acima se referiram e que levam a considerar como inadequadas e insuficientes todas as medidas de coacção previstas no Cód. P. Penal, com excepção da prisão preventiva, que, por seu turno, se mostra proporcional à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente virá a ser aplicada – artºs. 191º, 193º, 198º e 204º, alíneas a) e c) do C.P.P. – determino que a arguida aguarde os ulteriores termos do processo em prisão preventiva, emitindo-se, para o efeito, os competentes mandados de detenção.'
Em 14 de Julho de 2000, foi a arguida A submetida a interrogatório judicial (fls. 43 e seguintes), tendo então o Ministério Público requerido a manutenção da medida de coacção de prisão preventiva. O Juiz da Comarca de Guimarães proferiu o seguinte despacho:
'Afigurando-se que se mantêm os pressupostos de facto e de direito que determinaram a aplicação da prisão preventiva, nomeadamente, o invocado perigo de continuação da actividade criminosa, já referido no douto despacho que a ordenou, decide-se que a arguida continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeita à medida de prisão preventiva'.
2. Inconformada com este despacho, dele interpôs recurso a arguida A
(requerimento de fls. 48 a 55). Nas alegações que então apresentou, formulou as seguintes conclusões:
'1. No douto despacho recorrido decidiu-se que a arguida iria aguardar os ulteriores termos do processo sujeita a medida de prisão preventiva por haver perigo de continuação da actividade criminosa;
2. Salvo o devido respeito não foi feita uma correcta avaliação dos pressupostos de facto e de direito, violando-se os princípios constitucionais e legais consagrados no actual C.P.P. no que concerne a medida de coacção;
3. Ressaltam dos autos (dos documentos juntos pela arguida e das suas próprias declarações a fls. 676 e ss) os seguintes factos que não foram considerados pelo douto julgador a quo; a) a arguida encontra-se a trabalhar num café há dois meses; b) vive com os pais e uma filha de dois anos; c) está grávida de 5 meses; d) iniciou um programa de substituição por metadona no CAT de Braga em Fevereiro de 2000, tendo sido transferida para o CAT de Guimarães onde continuou as mesmas tomas com periodicidade diária.
4. No presente caso, é forçoso concluir que as possibilidades de continuação da actividade criminosa relativamente às existentes na data em que foi decretada a liberdade provisória não se encontram aumentadas, fundadamente em concreto, pelo contrário, elas diminuíram.
5. Estando a arguida num processo de recuperação física e social é de uma violência extrema afastá-la desse mesmo processo sendo mais adequada a presente caso uma medida de coacção de proibição de permanência, de ausência e de contactos (art. 200º do C.P.P.) ou de obrigação de permanência na habitação
(art. 201º do C.P.P.).
6. Por outro lado o douto julgador a quo nem sequer fundamentou a necessidade de aplicação ao presente caso de medida de prisão preventiva, nem a insuficiência de outras medidas cautelares.
7. Foram violados os princípios constitucionais e legais da adequação, da proporcionalidade e da subsidiariedade e as normas dos arts. 28º, nº 2 e 205º, da Constituição e dos arts. 191º, 193º, nºs 1 e 2, 200º, 201º, 202º, nº 1, 374º, nº 2, 379º do C.P.P. e art. 158º do C.P.C..'
3. Por acórdão de 18 de Outubro de 2000 (fls. 81 a 85 vº), o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida. Lê-se no mencionado acórdão, para o que aqui releva:
'Começa-se, naturalmente, pela questão da falta de fundamentação da decisão recorrida, arguição que a recorrente justifica no artº 158º C.P.Civil, mas que tem sede própria em processo penal, mais precisamente no nº 4 do artº 97º do C.P. Penal. Aí se dispõe, com efeito, que «os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão», preceito que assim cumpre o princípio constitucional consignado no actual nº 1 do artº
205º do diploma fundamental que estabelece que «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei». Reflectindo sobre a exigência de fundamentação dos actos decisórios, com a indicação dos motivos de facto e de direito em que se apoia, logo nos ocorrem duas ordens de razões: por um lado, a necessidade de conferir autoridade à própria decisão, dando a conhecer aos seus destinatários directos e à sociedade em geral a que também se dirige a justeza e a razoabilidade do decidido, assim contribuindo naturalmente para o seu acatamento, pois se aceita mais facilmente aquilo que se sente que é razoável ou justo; por outro lado, certamente o mais importante, para conferir aos destinatários directos da decisão a possibilidade de reacção eficaz contra o decidido, para o que, como é intuitivo, é essencial conhecer as razões em que a decisão se estriba, sem o que poderá sair comprometida a pretensão de demonstrar a sua sem-razão. Donde a importância que a exigência assume e que é, assim, uma garantia dos cidadãos nos Estados de Direito democráticos. Porém, enquanto para a sentença, o acto decisório por excelência, a lei – artº
374º e 379º, nº 1, al. a), do C.P.Penal – comina com a nulidade a falta de fundamentação, já quanto às demais decisões tal não sucede, isto é, não diz a lei quais as consequências daí decorrentes, pelo que, em conformidade com o disposto no nº 2 do artº 118º, a inobservância dessa imposição legal de fundamentação importa mera irregularidade, com o específico e apertado regime de arguição estabelecido no artº 123º que, essencialmente, determina que o vício seja arguido no próprio acto, se o interessado a ele assistiu, ou, se tal não for o caso, nos três dias subsequentes à sua notificação para qualquer termos do processo ou da sua intervenção em qualquer acto nele praticado. Ora, no nosso caso, essa arguição apenas teve lugar na motivação de recurso, tardiamente, pois, pelo que a alegada irregularidade sempre estaria agora sanada. Sem embargo, não deixará de se dizer, com o Mº Pº nesta instância, que o despacho em crise, proferido que foi em função do cumprimento do estatuído no artº 254º, nº 1, al. a), do C.P. Penal, ou seja, na execução da medida de coacção de prisão preventiva antes determinada, apenas se limita a aquilatar da regularidade da detenção efectuada e a remeter para o primeiro despacho – o de
16/6/00 – quanto aos fundamentos justificativos da medida de coacção imposta, fundamentos que considera se mantêm. Não há, pois, falta de fundamentação na decisão recorrida, sucedendo apenas que nela se consideram acolhidas, por imodificadas, as razões de facto e de direito que haviam justificado a anterior decisão. E se, como é sabido, a irregularidade em causa apenas ocorre quando há falta de fundamentação – o que se não confunde com a sua insuficiência –, também por aí a arguição improcederia, pois dir-se-ia, quando muito, que tal fundamentação podia porventura ter sido mais completa e expressa.
[...].'
4. A veio então interpor recurso para o Tribunal Constitucional
(requerimento de fls. 88 e seguinte), ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, para apreciação da 'inconstitucionalidade da norma do art. 97º, nº 4, do C. P. P., quando interpretada no sentido de que a falta de fundamentação da decisão só ocorre quando esta inexiste por absoluto (e não quando se remete para a fundamentação de outra decisão), por violação do art. 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa; bem como apreciada a inconstitucionalidade das normas constantes dos arts. 204º, alínea c), art.
193º, nº 2 e art. 202º, nº 1 do C.P.P., quando interpretadas no sentido de que os pressupostos de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva não necessitam de estar corporizadas no processo através de elementos objectivos e que cabe ao arguido provar que estes pressupostos não existem no caso concreto, por violação dos princípios da adequação e da subsidiariedade da prisão preventiva e dos arts. 28º, nº 2 e art. 32º, nº 2 da Constituição'.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 91.
5. Nas alegações que apresentou no Tribunal Constitucional, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
'I. O douto acórdão em apreço decidiu negar provimento ao recurso interposto pela arguida, mantendo-se a decisão que ordenou a prisão preventiva, com fundamento no perigo de continuação da actividade criminosa. II. Parte-se, pura e simplesmente, de um juízo de culpabilidade da arguida quanto aos factos de que vem acusada para fundamentar a necessidade de aplicação desta medida de coacção. III. No presente processo não existem quaisquer elementos objectivos que levem à conclusão de que existe perigo de continuação criminosa por parte da arguida. IV. Pelo contrário, existem no processo elementos objectivos que permitem concluir que a arguida se encontra num processo de recuperação física e social, encontrando-se diminuídas as possibilidades de continuação da actividade criminosa. V. Não é adequada ao presente caso a aplicação da medida de prisão preventiva e existem outras medidas de coacção menos gravosa aplicáveis ao caso. VI. O acórdão em análise antecipa a punição da arguida, pois justifica a necessidade de prisão preventiva com fundamento num juízo de culpabilidade da arguida em relação aos factos de que vem acusada, violando o princípio da presunção da inocência do arguido. VII. As exigências constitucionais de fundamentação das decisões judiciais não ficam satisfeitas com uma fundamentação incompleta ou incoerente, nem com a remissão para uma outra decisão. VIII. Foram violados os princípios constitucionais e legais da adequação, da proporcionalidade e da subsidiariedade da prisão preventiva e os arts. 28º nº 2,
32º nº 2 e 205º da CRP.
Por sua vez, o Ministério Público concluiu assim as suas alegações:
'1º - É inútil a apreciação de certa questão de constitucionalidade, suscitada relativamente à norma que prevê determinada irregularidade processual, quando as instâncias concluem que – por aplicação de outra norma que não integra o objecto do recurso – tal irregularidade se mostra irremediavelmente sanada.
2º - Falta um pressuposto do recurso de constitucionalidade quando a decisão recorrida não aplicou o sentido normativo, alegadamente inconstitucional, especificado pelo recorrente – não integrando objecto idóneo de um recurso de constitucionalidade sindicar se as instâncias valoraram ou não correctamente a matéria de facto revelada pelo processo, na óptica da existência de um risco fundado de continuação da actividade criminosa do arguido.
3º - Termos em que não deverá conhecer-se do objecto do recurso.'
Notificada para se pronunciar sobre a questão prévia de não conhecimento do recurso suscitada pelo Ministério Público, a recorrente sustentou, em síntese, que a mesma deve ser julgada improcedente.
II
6. No presente recurso, pretende a recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos
97º, nº 4, 204º, alínea c), 193º, nº 2, e 202º, nº 1, do Código de Processo Penal.
Sendo o recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para que o Tribunal Constitucional dele pudesse conhecer seria necessário que a recorrente tivesse suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade das normas que pretende que o Tribunal aprecie e que essas normas tivessem sido aplicadas na decisão recorrida, como ratio decidendi, não obstante a acusação de inconstitucionalidade que lhes foi feita.
7. Ora, as normas que se pretende submeter à apreciação deste Tribunal não constituíram o fundamento – ou, pelo menos, não constituíram o fundamento
único e decisivo – do julgamento proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no acórdão recorrido (acórdão de 18 de Outubro de 2000).
Na verdade, depois de se referir, em termos gerais, à exigência legal de fundamentação dos actos decisórios, em cumprimento do princípio constitucional consagrado no artigo 205º, nº 1, da Lei Fundamental, o Tribunal da Relação do Porto apreciou a questão suscitada no processo à luz do regime das nulidades constante do Código de Processo Penal, concluindo que, face ao disposto nos artigos 123º e 118º, nº 2, desse Código, a eventual irregularidade do despacho então recorrido, a existir, estaria sanada, por não ter sido arguida oportunamente (cfr. texto do acórdão, na parte transcrita supra, nº 3.).
Só subsidiariamente o Tribunal da Relação acrescentou que o despacho recorrido não padecia de qualquer irregularidade, por entender que o mesmo se encontra fundamentado, na medida em que tal despacho acolhe as razões de facto e de direito invocadas no despacho anterior.
Ou seja, embora se tenha pronunciado sobre a questão da eventual falta de fundamentação do despacho que ordenou a prisão preventiva (questão suscitada pela recorrente no recurso para a Relação) – não considerando procedentes as razões por ela invocadas –, o Tribunal da Relação do Porto fê-lo a título meramente subsidiário. Na verdade, tendo em conta a razão de decidir constante do acórdão do Tribunal da Relação, sempre seria de negar provimento ao recurso interposto pela recorrente, uma vez que a eventual irregularidade do despacho que determinou a prisão preventiva foi arguida tardiamente, na motivação do recurso, devendo por isso considerar-se sanada.
O fundamento decisivo do julgamento de não provimento do recurso proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no acórdão recorrido residiu portanto nas normas dos artigos 123º e 118º, nº 2, do Código de Processo Penal – que não integram o objecto do presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
Falta portanto um dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da lei do Tribunal Constitucional – a aplicação na decisão recorrida, como ratio decidendi, das normas cuja inconstitucionalidade se pretende que este Tribunal aprecie.
Daqui resulta que, qualquer que fosse a posição que o Tribunal Constitucional viesse a adoptar sobre a constitucionalidade das normas impugnadas no presente recurso, sempre se manteria o sentido do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, já que – repete-se – o julgamento assentou na verificação da intempestividade da arguição da eventual irregularidade do despacho que ordenou a prisão preventiva. Desta razão de decidir decorreria, em qualquer caso, a confirmação pelo Tribunal da Relação do Porto do despacho do Juiz da Comarca de Guimarães.
Atenta a função instrumental reconhecida, em geral, ao recurso de constitucionalidade, o Tribunal Constitucional só deve conhecer das questões de constitucionalidade normativa quando a decisão a proferir possa influir utilmente no julgamento da questão de mérito discutida no processo (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal, nº 257/92, Diário da República, II, nº 141, de 18 de Junho de 1993, p. 6448 ss, p. 6452, e nº 440/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º vol., p. 319 ss, p. 326).
8. Nestes termos, não tendo sido aplicadas como fundamento único e decisivo do acórdão recorrido as normas questionadas no presente processo, e considerando o carácter instrumental do recurso de constitucionalidade, não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do objecto do recurso.
Julga-se, assim, procedente a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.
III
9. Tendo em conta o que antecede, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 (oito) unidades de conta.
Lisboa, 14 de Março de 2001-03-22 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida