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Processo n.º 156/11
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. No presente recurso em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público, B. e C., o relator proferiu a seguinte decisão, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC):
«1. O recorrente interpôs recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Dezembro de 2010, que rejeitou, por inadmissibilidade, o recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23 de Junho de 2010, bem como do acórdão do mesmo Supremo Tribunal, de 2 de Fevereiro de 2011, que indeferiu a arguição de nulidade daquele primeiro aresto.
O arguido havia sido condenado, em 1ª instância, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal (CP) e de dois crimes de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.ºs 1 e 2 do CP, numa pena de 2 anos de prisão por cada um desses crimes. Em cúmulo jurídico foi condenado numa pena única de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa pelo período de 3 anos e 2 meses. A Relação, em sede de recurso interposto pelo Ministério Público, decidiu revogar a suspensão da execução da pena, mantendo no mais a sentença condenatória.
2. O objecto do presente recurso é indicado nos seguintes termos no respectivo requerimento de interposição
“(…)
Assim sendo considera-se que tais decisões (Acórdãos do STJ) violaram designadamente o disposto nos artigos 13º, 20 nº, 22 nº 1 e 32 nºs 1 e 7 da Constituição da Republica Portuguesa, e mais precisamente, os princípios da igualdade e proporcionalidade das garantias de defesa e do recurso em sede penal do arguido, ao interpretar como interpretou, o que se prescreve nos artigos 399 e 400 do Código do Processo Penal, impregnando estas normas de um conteúdo manifestamente inconstitucional, e, por isso, ou seja, pelo conteúdo manifestamente inconstitucional, e, por isso, ou seja, pelo conteúdo que lhe deu e também devido àquelas interpretações, recusando a sua aplicação.”
3. O recurso não pode prosseguir, o que imediatamente se decide ao abrigo do n.º1 do artigo 78.º-A da LTC.
3.1. Face ao trecho transcrito do requerimento de interposição do recurso, a inconstitucionalidade que se pretende ver apreciada, a desconformidade a normas e princípios constitucionais, parece ser directamente imputada às decisões do Supremo Tribunal de Justiça e não às normas de que esses acórdãos fizeram aplicação. Ora, resulta da Constituição (artigo 280.º da CRP) e da Lei (artigo 70.º da LTC) e constitui jurisprudência constante que o recurso de constitucionalidade tem “natureza normativa”, i.e., só pode ter por objecto (em sentido material) a apreciação de constitucionalidade de normas aplicadas ou a que tenha sido recusada aplicação ao abrigo do artigo 204.º da Constituição) pela decisão judicial recorrida. Não esta, em si mesmo considerada.
Mesmo que seja possível vislumbrar no requerimento de interposição do recurso um “objecto normativo”, consistente na interpretação “do que se prescreve nos artigos 399 e 400 do Código do Processo Penal, impregnando estas normas de um conteúdo manifestamente inconstitucional, e, por isso, ou seja, pelo conteúdo manifestamente inconstitucional, e, por isso, ou seja, pelo conteúdo que lhe deu e também devido àquelas interpretações, recusando a sua aplicação”, ainda assim o recurso não poderá prosseguir por não corresponder tal objecto à norma que constitui ratio decidendi da rejeição do recurso.
Com efeito, o que o acórdão de 16 de Dezembro de 2010 entendeu foi que o disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Penal deve ser interpretado no sentido de que a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões que aplicam penas não privativas de liberdade está dependente do facto de as mesmas penas se inscreverem no catálogo do n.º 1 alínea c) do artigo 432 do mesmo diploma, ou seja, serem superiores a cinco anos. E, fazendo aplicação deste entendimento, considerou que a norma do artigo 400.º alíneas e) e f), conjugada com a norma do artigo 432.º, n.º 1, alínea c) do CPP, [devem ser] interpretadas no sentido de não ser admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de um acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão efectiva.
Foi este bloco normativo, assim interpretado, que conduziu à rejeição do recurso, pelo acórdão de 16 de Dezembro de 2010. Não há, portanto, coincidência entre a norma aplicada pelo acórdão que rejeitou o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e aquela que o recorrente quer ver apreciada, mesmo na leitura do requerimento de interposição, como visando a apreciação da constitucionalidade do critério normativo de decisão e não da decisão em si mesma.
3.2. Finalmente, no que respeita ao acórdão que decidiu a nulidade, este não fez aplicação de quaisquer normas respeitantes à admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Aplicou tão somente critérios respeitantes à regularidade formal ou congruência das decisões judiciais.
4. Acresce, que mesmo que nenhuma das razões anteriores procedesse e se entendesse conhecer do recurso, sempre sobre ele recairia imediata decisão de improcedência, na linha do acórdão n.º 424/09, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, no qual, sobre esta mesma questão, se disse:
«3. Os arguidos interpuseram recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), tendo o relator proferido decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.
No que agora interessa e respeita aos arguidos, decidiu-se negar provimento aos recursos, não julgando inconstitucional a norma do artigo 400.º alíneas e) e f), conjugada com a norma do artigo 432.º n.º 1 alínea c) do CPP, na redacção emergente da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão efectiva.
Esta decisão tem os seguintes fundamentos:
“B) Quanto aos demais recorrentes
Quanto ao objecto possível dos recursos vale o que anteriormente se disse. Sendo o recurso interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que se limitou a rejeitar o recurso por inadmissibilidade, só a constitucionalidade das normas em que tal rejeição se fundou pode agora apreciar-se. Tudo o mais, seja o acerto da interpretação de tais normas no plano do direito ordinário, seja o que respeita à constitucionalidade de outras normas, designadamente daquelas de que a Relação fez ou de que, no entender dos recorrentes, deveria ter feito aplicação, exorbita do objecto possível do presente recurso de constitucionalidade.
Portanto, só cabe apreciar a constitucionalidade da norma do artigo 400.º alíneas e) e f), conjugada com o norma do artigo 432.º n.º 1 alínea c) do CPP, interpretadas no sentido de não ser admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de um acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão efectiva.
O Tribunal Constitucional já apreciou por diversas vezes questão semelhante à que os recorrentes colocam. Referimo-nos às pronúncias de não inconstitucionalidade de normas que não admitem recurso para o Supremo Tribunal de acórdãos condenatórios da Relação que revogaram sentenças absolutórias de 1.ª instância.
Disse-se sobre esta questão no acórdão nº 49/2003, de 29 de Janeiro (Diário da República, II Série, de 16 de Abril de 2003), na parte que releva, que não desrespeita o nº 1 do artigo 32.º da CRP a norma da alínea e) do nº 1 do artigo 400º do CPP, quando interpretada no sentido de não admitir o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a decisão condenatória proferida pela Relação em recurso de decisão absolutória da 1ª instância, por o acórdão da Relação consubstanciar a garantia do duplo grau de jurisdição, tendo em conta que perante ela o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa.
Tal aresto sustentou-se na argumentação que se transcreve:
“(...)
A questão de constitucionalidade suscitada reside, assim, em saber se o nº 1 do artigo 32º da Constituição impõe o direito a recorrer de decisões condenatórias proferidas pelo tribunal da relação em recurso de decisões absolutórias, relativamente a crimes de pequena gravidade (puníveis com pena de multa ou com prisão até cinco anos). Apenas se considera, portanto, a norma contida na alínea e) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal quando aplicada a recursos interpostos de acórdãos condenatórios da Relação proferidos em recursos interpostos de decisões absolutórias da 1ª instância, pois que é a esta dimensão que as alegações apresentadas neste Tribunal pela recorrente restringem o objecto do recurso de constitucionalidade.
4. A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem tido oportunidade para salientar, por diversas vezes, que o direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal.
Este direito assenta em diferentes ordens de fundamentos.
Desde logo, a ideia de redução do risco de erro judiciário. Com efeito, mesmo que se observem todas as regras legais e prudenciais, a hipótese de um erro de julgamento – tanto em matéria de facto como em matéria de direito – é dificilmente eliminável. E o reexame do caso por um novo tribunal vem sem dúvida proporcionar a detecção de tais erros, através de um novo olhar sobre o processo.
Mais do que isso, o direito ao recurso permite que seja um tribunal superior a proceder à apreciação da decisão proferida, o que, naturalmente, tem a virtualidade de oferecer uma garantia de melhor qualidade potencial da decisão obtida nesta nova sede.
Por último, está ainda em causa a faculdade de expor perante um tribunal superior os motivos – de facto ou de direito – que sustentam a posição jurídico-processual da defesa. Neste plano, a tónica é posta na possibilidade de o arguido apresentar de novo, e agora perante um tribunal superior, a sua visão sobre os factos ou sobre o direito aplicável, por forma a que a nova decisão possa ter em consideração a argumentação da defesa.
Resulta do exposto que os fundamentos do direito ao recurso entroncam verdadeiramente na garantia do duplo grau de jurisdição. A ligação entre o direito ao recurso e o duplo grau de jurisdição é, pois, evidente, sendo reconhecida pela recorrente nas alegações apresentadas neste Tribunal (cfr. a conclusão D).
5. A norma impugnada pela recorrente – contida na alínea e) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal – exclui, nos casos nela previstos, a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos proferidos em recurso pela relação.
Importa ter presente, todavia, que tais acórdãos resultam justamente da reapreciação por um tribunal superior (o tribunal da relação), perante o qual o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa. Por outras palavras, o acórdão da relação, proferido em 2ª instância, consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição, indo ao encontro precisamente dos fundamentos do direito ao recurso.
Dir-se-á – como faz a recorrente – que, tendo havido uma decisão absolutória na primeira instância, o direito ao recurso implicaria a possibilidade de recorrer da primeira decisão condenatória: precisamente o acórdão da relação.
Tal entendimento, não só encara o direito ao recurso desligado dos seus fundamentos substanciais (como resulta do que já se disse), mas levaria também, em bom rigor, a resultados inaceitáveis, como se passa a demonstrar.
Se o direito ao recurso em processo penal não for entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição, sendo antes perspectivado como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da primeira decisão condenatória, ainda que proferida em recurso, deveria haver recurso do acórdão condenatório do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto de decisão da Relação que confirmasse a absolvição da 1ª instância. O que ninguém aceitará.
A verdade é que, estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias.
Tais fundamentos são a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, evitando a sua eventual paralização, e a circunstância de os crimes em causa terem uma gravidade não acentuada. Esta segunda justificação, aliás, explica a diferença entre as alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal; com efeito, se ao crime em causa for aplicável pena de prisão 'não superior a oito anos' (alínea f)) – não sendo hipótese abrangida pela alínea e), naturalmente –, só não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão condenatório proferido pela Relação se este confirmar 'decisão de 1ª instância'.
Não se pode, assim, considerar infringido o nº 1 do artigo 32º da Constituição pela norma que constitui o objecto do presente recurso, já que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas.
6. A concluir, refira-se o artigo 2º do protocolo nº 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República nº 22/90, 27 de Setembro, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 51/90, da mesma data), cujo texto é o seguinte:
Artigo 2º
1 – Qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados por lei.
2 – Este direito pode ser objecto de excepções em relação a infracções menores, definidas nos termos da lei, ou quando o interessado tenha sido julgado em primeira instância pela mais alta jurisdição ou declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição.
Como se vê, a parte final do nº 2 ressalva, precisamente, a hipótese que está em apreciação no presente recurso.”
No mesmo sentido se decidiu pelos acórdãos n.ºs 255/2005, 487/2006 e 682/2006, in www.tribunalconstitucional.pt.
Ora, se assim é quando a decisão da Relação inverte o sentido da decisão de 1.ª instância, condenando o arguido quando a decisão de 1.ª instância era absolutória, por maioria de razão não será inconstitucional a norma quando interpretada no sentido de não admitir recurso em caso de a decisão do tribunal superior não manter a suspensão da execução da pena de prisão”.
4. Os argumentos dos reclamantes não abalam os fundamentos em que assenta a decisão sumária, que correspondem a jurisprudência uniforme e constante do Tribunal quanto à garantia de recurso consagrada no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição.
Em primeiro lugar importa notar que não cabe ao Tribunal Constitucional apreciar o acerto da decisão do Supremo Tribunal quanto à escolha e interpretação do direito ordinário, designadamente quanto a saber se, face às disposições do Código de Processo Penal aplicáveis, o recurso deveria ter sido admitido.
Por outro lado, é também deslocada a insistência do arguido Marco Gomes em que não se trata de uma situação de “dupla conforme”. Não foi esse o motivo operante da rejeição do recurso por ele interposto.
Fundamento comum às duas reclamações é o de que não pode considerar-se garantido em concreto um grau de recurso quando a aplicação da pena de prisão efectiva só tenha ocorrido na Relação, atendendo a que está em consideração o valor da liberdade. Mas, esta circunstância não justifica a revisão da jurisprudência do Tribunal. Tal condenação resulta justamente da reapreciação por um tribunal superior (o tribunal da relação), perante o qual o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa. Face a uma mesma imputação penal e à pretensão de aplicação de uma pena privativa de liberdade arguido tem a oportunidade de defender perante dois tribunais, o tribunal de 1.ª instância e o tribunal superior, o seu direito à liberdade. Perante o tribunal superior pode fazer rever tanto a decisão que o condenou, como contrariar a pretensão de que essa condenação seja agravada, designadamente que se converta em pena privativa de liberdade.
Tanto basta para, transpondo o entendimento firmado pelo Tribunal na jurisprudência citada na decisão reclamada, julgar improcedentes as reclamações.»
Também por esta razão se justificaria que o recurso não prosseguisse, embora se vá adoptar, por ter precedência lógica, uma pronúncia decisão de não conhecimento.
4. Decisão
Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC decide-se não conhecer do objecto do recurso e condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em sete unidades de conta.»
2. O recorrente reclama desta decisão nos seguintes termos:
«(…)
Do supra indicado resulta e contrariamente ao entendido pelo Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator que:
a) No requerimento de interposição de recurso há um claro “objecto normativo”, pois e tal conforme o referido em termos sintéticos, é verdade, resulta que a interpretação dada nas decisões recorridas ao interpretarem como interpretaram o disposto no artigo 400 n°1 al. e) e b) do Código do Processo Penal, recusando o recurso interposto pelo aqui Reclamante, está impregnada de um conteúdo manifestamente inconstitucional, tendo na sua sequência o Reclamante suscitado a apreciação de constitucionalidade das normas aplicadas.
b) Há coincidência entre a norma aplicada pelo Acórdão que rejeitou o Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e aquela que vem apreciada, já que o recurso do aqui Reclamante foi rejeitado nos termos dos artigos 420 nº 1 al. b) e 414 n° 2 do Código do Processo Penal face à interpretação dada ao disposto no n°1 als.) e) e b) do artigo 400, interpretação esta e tal conforme o supra indicado, se considera impregnada de um conteúdo manifestamente inconstitucional.
c) Com o devido respeito, o mandatário do Reclamante e com toda a sua humildade, discorda em termos jurídicos do teor do Acórdão nº 424/09, sendo certo que, e tal conforme resulta na jurisprudência e na doutrina, a questão em apreço é controvertida.
Assim
Foi proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra o Acórdão de fls., o qual e com os fundamentos expostos e em súmula:
a- Julgou parcialmente procedente o Recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência revogou a sentença recorrida no que respeita à suspensão da execução da pena de prisão, aplicada ao arguido, mantendo no demais o decidido.
b- Julgou improcedente o recurso pelo arguido, mantendo a sentença recorrida nos termos acima expostos.
O aqui Reclamante e por não se conformar com o teor do douto Acórdão recorrido, interpôs recurso e pelos motivos que em súmula se indicam entende que:
a- Enferma o Acórdão de um vício que determina a sua nulidade.
b- Possui outros vícios, nomeadamente relacionados com o facto de não ter interpretado correctamente os factos ao direito em termos de qualificação do crime praticado pelo arguido, bem como não ter aplicado de forma correcta as normas legais ao ter revogado a suspensão da prisão ao arguido e aqui recorrente.
Tal recurso e tal conforme resulta de fls. foi aceite pelo Exm° Senhor Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra por entender que o Acórdão dessa Relação não confirmou na integra o Acórdão proferido na 1a instância atento ao imposto nos artigos 432 nº 1 al. b) e 400 al. b) ambos do C.P.C.
Mas será que tal conforme se resulta no douto Acórdão em apreço, que é inadmissível-
Tal conforme o já corroborado pelo Exm° Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra, também entendemos que o recurso em apreço NÃO DEVE SER REJEITADO, já que o mesmo é admissível nos termos no artigo 400 do CPP.
Ao arguido é reconhecido um estatuto processual, com direitos e deveres. Nestes direitos está incluído o direito ao recurso.
De facto o direito ao recurso para além da sua consagração no artigo 2º do Protocolo nº 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, tem consagração legal, de resto, ao nível do artigo 32º do nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
Por outro lado, em matéria de recorribilidade do processo penal rege o princípio geral consignado no artigo 399° do C.P.P. no qual se estipula que é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei” (os sublinhados são nossos)
Os casos em que as decisões judiciais não são recorríveis estão essencialmente tipificados no artigo 400 do C.P.P. e, nalgumas situações, em normas avulsas, devendo interpretar-se, tanto uma como outras, como leis de excepção, valendo, na dúvida, a regra geral.
A decisão recorrida é um Acórdão condenatório do Tribunal da Relação de Coimbra, que alterou o Acórdão do Tribunal da 1ª instância no sentido de efectivar em vez de suspender a pena de prisão que foi aplicada ao recorrente.
No Acórdão em apreço defende-se e face a uma interpretação restritiva do disposto no artigo 400 nº 1 alínea e) em conjugação com o disposto no artigo 432 nº 1 alínea c) ambos do CPP, o recurso não é admissível, em virtude de não ter sido aplicado pena de prisão superior a 5 anos.
Ora tal interpretação é ilegal, por não resultar de forma clara e expressa da Lei.
De facto e ao analisar o artigo 400 alíneas e), e f) do CPP na redacção introduzida pela Lei nº 59/98 de 25 de Agosto com a redacção introduzida pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto, resulta à saciedade que a interpretação defendida no Acórdão em apreço é ILEGAL, por não resultar da Lei ou seja nas processuais penais.
Ora o legislador não quis em algum momento coarctar o direito ao recurso aos arguidos...
Ora no caso em apreço estamos na presença de Acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo do Tribunal de Castelo Branco que foi parcialmente alterado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra. Deste modo e tendo em atenção que existiu uma alteração da pena que determinou a prisão efectiva do arguido, não se vislumbra como não pode o recurso ser admitido.
O que o legislador quis efectivamente alterar, tem a ver com situação bem diferente no caso dos autos: ou seja, impossibilitar que duas decisões condenatórias do mesmo teor, e com uma pena inferior a 5 anos possam ser apreciados pelo Supremo Tribunal de Justiça; no entanto e caso não haja conformidade de Acórdão, há possibilidade de recurso para o STJ.
Ora seja, atento ao disposto as alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 400 e 432 alínea b) o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, só está vedado para decisões que apliquem pena de prisão inferior a 8 anos, desde que, a sentença da 1a instância seja confirmada na integra pelo Acórdão do Tribunal da 2ª instância, ou seja, do Tribunal da Relação, sendo assim clara a intenção do legislador salvaguardar direito ao recurso por parte do arguido.
“Ora e tal como é referido no Acórdão de 25/11/2010 deste STJ – secção 5.ª”
II. Não se devem esgrimir argumentos de ordem lógico-sistemática para contrariar essa ideia da recorribilidade, até porque a regra é a da recorribilidade e, portanto, as exclusões devem ser tratadas de forma restritiva quanto aos casos de não recorribilidade.
III. Aos tribunais não cabe discutir o critério legislativo, ou a falta dele, no que respeita às questões que podem ou não chegar ao Supremo Tribunal de Justiça pela via de recurso, umas mais graves que não lhe podem ser colocadas, outras de menor dimensão e que são sujeitas à sua reapreciação. Tal critério, bom ou mau, é definido no âmbito da competência da política legislativa, reservada à Assembleia da República. Para além de que a regra é a da recorribilidade. Não é, pois, por esse motivo, de ordem lógico-sistemática, que se pode recusar a recorribilidade da decisão proferida nestes autos pela Relação.
IV. A simples leitura dos art.ºs 399.º e 400.º do CPP permite que existam em simultâneo estas duas situações:
- não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que condenou o arguido numa pena não privativa da liberdade por determinado crime e que, assim, revogou a absolvição da ia instância (art.º 400º, n.º 1, al. e, do CPP);
- é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade (art.ºs 399.º e 400º, este “a contrário”).
V. Trata-se, porém, da mesma situação, embora em posições invertidas, pois uma é simetricamente o inverso da outra. Apesar da manifesta semelhança, há um tratamento legislativo diferente ao nível da interposição dos recursos.
VIII. Contudo, o que já não é tolerável do ponto de vista dos direitos de defesa é que no caso simetricamente oposto a esse, em que ao arguido continua vedado o direito a novo recurso, agora por falta de interesse em agir (pois foi absolvido na segunda instância da acusação, após condenação na 1.ª instância em pena não privativa da liberdade), a acusação, isto é, o Ministério Público ou Assistente, possa recorrer.
VI. Nas “duas imagens invertidas”, o arguido não teria direito a interpor recurso em qualquer delas, mas permitir-se-ia ao M.ºP.º e ao Assistente, numa delas, um direito que àquele não assiste (o terceiro grau de jurisdição).
VII. Criar-se-ia uma desigualdade de armas, desfavorecendo o arguido e beneficiando a acusação.
VIII. O tratamento diferente que a lei processual dá aos dois casos de recorribilidade anteriormente indicados, simetricamente opostos e, portanto, indissociáveis, já que não se pode encarar um sem vislumbrar o outro, como num espelho que inverte a imagem da mesma ‘figura”, coloca o arguido nesta situação absurda: naquele em que é condenado, não lhe é permitido recorrer para obter a sua absolvição, no outro em que é absolvido, a acusação pode recorrer para obter a sua condenação!
IX. Esta diferença de tratamento, em casos que deveriam ser tratados como iguais, é irrazoável e arbitrária, para mais com ofensa do núcleo fundamental do direito de defesa.
X. Há ofensa, nesta interpretação das normas de processo penal, dos art.ºs 13º e 32.º, n.º 1, da Constituição, por violação material dos direitos à igualdade e de defesa (através do recurso) no processo penal.
XI. Note-se que estamos aqui a reportar-nos a um caso específico, em que a condenação na 1a instância foi numa pena não privativa de liberdade e que, posteriormente, reapreciada pela Relação em sede de recurso, foi determinada a absolvição do arguido. Pois, se a condenação na 1ª instância fosse em pena privativa de liberdade, nenhuma objecção se poria ao recurso para o STJ por parte da acusação contra o acórdão absolutório da Relação, pois que na situação simetricamente oposta (absolvição na 1a instância e condenação na Relação em pena privativa da liberdade) o arguido poderia interpor recurso para o STJ (cfr. ai. e, a contrário, do n.º 1 do art.º 400.º do C.P.P).
XII. Concluímos, assim, que é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 13.º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo Assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade.”
Tal como refere Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal” – 3ª edição actualizada a pág. 1018 “cabe recurso para o STJ do Acórdão condenatório proferido, em recurso, pelo Tribunal de Recurso que não confirme decisão do Tribunal de primeira instância, mesmo que o Tribunal de Recurso aplique pena de prisão inferior a 8 anos”.
Deste modo, o recorrente continua a entender que no caso em apreço o recurso não deve ser rejeitado em virtude de o mesmo ter sido interposto em tempo e ser legalmente admissível, sendo assim ilegal a interpretação defendida no Acórdão em apreço, violando assim a Lei que determina de forma expressa a admissibilidade do presente recurso, estando assim os Exm°s Juizes Conselheiros deste Tribunal, obrigados a admitir o recurso.
Com o devido respeito não pode o STJ substituir-se ao legislador e o legislador não quis, porque não previu na Lei, a interpretação que lhe foi dada pelo STJ.
Pelo que e salvo melhor e douta opinião, entende-se que a interpretação defendida no Acórdão em apreço, e para além de ilegal, é também inconstitucional, por violação dos artigos 13º, 20º nº 1, 22º nº 1 e 32º nºs 1º e 7º da Constituição da República Portuguesa, por violar o princípio da igualdade e por vedar ao aqui recorrente o direito do recurso.
Deste modo resulta assim que contrariamente ao entendido pelo Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator deste Tribunal na decisão sumária “sub – iudice “o aqui reclamante suscitou adequada e correctamente as questões sobre a inconstitucionalidade das decisões em apreço, indicando os princípios e normas constitucionais violadas, atento que às interpretações realizadas nessas decisões.
Deste modo e contrariamente ao entendido na decisão sumária em apreço, deve ser concebido e como aceite o recurso interposto pelo aqui reclamante, com as consequências daí decorrentes.
Termos em que, e nos melhores de direito, deve a presente reclamação ser julgada procedente, em consequência do que deverá ser recebido e conhecido o recurso interposto por este Tribunal pelo ora reclamante a fls.»
3. O Ministério Publico responde que deve julgar-se improcedente a reclamação, pelas seguintes razões:
“(…)
2º
Na reclamação, o recorrente refere a tramitação do processo mas não adianta quaisquer argumentos que possam abalar os fundamentos da decisão reclamada, sendo certo que a reclamação da Decisão Sumária já não é o momento processual oportuno para, inovatoriamente, se adiantarem requisitos de admissibilidade do recurso.
3.º
Efectivamente, na Decisão Sumária não se apreciou se o recorrente tinha, durante o processo, suscitado adequadamente a questão da inconstitucionalidade, uma vez que ele não enunciara, no requerimento de interposição do recurso, uma questão daquela natureza e mesmo que, generosamente, se entendesse o contrário, não havia correspondência entre a norma aplicada e a “enunciada”.
4.º
Ora, na reclamação, o recorrente não diz, específica e fundamentadamente, porque entende que a afirmação constante do requerimento de interposição do recurso, consubstanciava a enunciação de uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa e porque, contrariamente ao decidido, havia a correspondência anteriormente referida.
5.º
De qualquer forma, mesmo que se entendesse o contrário e ainda que se aceitasse que o recorrente suscitara adequadamente a questão – sobretudo na resposta ao parecer do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça - a Decisão Sumária sempre seria de manter, com base na improcedência do recurso.
6.º
Na verdade, o recorrente não diz nada de novo sobre a constitucionalidade da interpretação normativa em causa, mantendo-se integralmente a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre tal matéria.
7.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
4. Três fundamentos foram invocados na decisão sumária para que o recurso não deva passar da fase liminar.
Em primeiro lugar, dois de ordem formal: (i) o recurso não tem objecto idóneo, porque a inconstitucionalidade é directamente imputada às decisões do Supremo Tribunal de Justiça e não a normas de que esses acórdãos tenham feito aplicação; (ii) ainda que assim se não entenda, não há coincidência entre o bloco normativo que constituiu a ratio decidendi dos acórdãos recorridos e aquele que, em aproveitamento do requerimento de interposição, poderia deste extrair-se como objecto do recurso.
Em segundo lugar, a decisão enunciou um fundamento de ordem substancial para que não se justifique ordenar o prosseguimento do recurso para alegaçoes. Sobre a questão existe, se identificada correctamente a norma que levou à rejeição do recurso para o Supremo Tribunal da Justiça, jurisprudência do Tribunal Constitucional de sentido desfavorável à pretensão do recorrente, que se transcreveu e se reitera.
Por mera razão de precedência lógica, optou-se pela pronúncia de não conhecimento do objecto do recurso, correspondente às duas primeiras razões ou fundamentos.
Ora, mesmo admitindo, como pode admitir-se, que o requerimento de interposição do recurso deva ser interpretado no sentido de que visa submeter a apreciação do Tribunal uma questão de inconstitucionalidade de normas jurídicas e não das decisões judiciais impugnadas, sempre subsistem os outros dois fundamentos da decisão reclamada.
É, na verdade, inquestionável que não há coincidência entre os preceitos legais que podem considerar-se identificados no requerimento de interposição do recurso e aqueles de que o Supremo Tribunal de Justiça extraiu a norma de que não é admissível o recurso para esse Supremo Tribunal de acórdãos da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão efectiva. O recorrente, que não chega sequer a enunciar esta proposição, indica os artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal (CPP) como objecto de interpretação inconstitucional, enquanto o Supremo entendeu que tal sentido se extrai das alíneas e) e f) do artigo 400.º, conjugada com a alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, do referido Código. E esta último preceito é fundamental na interpretação do sistema de recursos em processo penal, segundo o raciocínio jurídico adoptado pelo Supremo Tribunal de Justiça, para rejeitar o recurso do acórdão da Relação em função da gravidade da pena de prisão aplicada.
Por outro lado, nenhuma razão adianta o recorrente que justifique a revisão do entendimento adoptado no acórdão n.º 424/09, que reflecte as linhas fundamentais da jurisprudência neste domínio e se reitera. Deste modo, ainda que houvesse coincidência entre a norma aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça para rejeitar o recurso e aquela que o recorrente pretende ver apreciada e nenhum outro obstáculo de ordem formal procedesse, sempre deveria negar-se provimento ao recurso, pelas razões adiantadas na decisão sumária.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 5 de Maio de 2011.- Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.