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Processo n.º 624/10
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial de Espinho, o ora reclamante, A., veio interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, da decisão de pronúncia, complementada pela decisão datada de 14 de Maio de 2010 proferida na sequência da arguição da irregularidade da decisão instrutória, por omissão de pronúncia.
O Juiz do tribunal a quo não admitiu o recurso interposto, por ter entendido que quer a decisão instrutória, quer a decisão que apreciou da irregularidade daquela primeira, são susceptíveis de recurso ordinário, circunstância que prejudicaria o pressuposto previsto no artigo 70.º, n.º 2 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC). Para fundamentar tal recorribilidade, a decisão reclamada invoca a inconstitucionalidade do artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP) e recusa a aplicação da norma extraída de tal preceito, que consagra a irrecorribilidade do despacho de pronúncia, pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, na parte em que conheça de questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Inconformado, veio o recorrente reclamar, pugnando pela admissão do recurso.
O Ministério Público, na 1.ª Instância, pronunciou-se pela manutenção da decisão reclamada.
No Tribunal Constitucional, o Ministério Público defendeu a inadmissibilidade do recurso, embora com fundamentos diversos, a saber: a natureza não normativa da questão que é objecto de recurso e a falta de coincidência entre a dimensão normativa efectivamente aplicada na decisão recorrida e a questão exposta no requerimento de interposição de recurso.
Notificado para se pronunciar, face à alegação de outros motivos de indeferimento do recurso por si interposto, não constantes da decisão reclamada, veio o reclamante responder, contraditando os argumentos utilizados como fundamento da não admissibilidade do recurso, quer na decisão reclamada, quer pelo reclamado.
Sobreveio, entretanto, a prolação de acórdão condenatório, em 1.ª Instância, que não se pronuncia sobre a específica arguição de nulidade, aduzida pelo reclamante em sede de Instrução e que subjaz ao presente recurso, pronunciando-se, porém, sobre questão substancialmente idêntica, renovada, em sede de contestação, por outros arguidos.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
2. Antes de entrarmos na análise da reclamação apresentada, começamos por salientar que o recurso de constitucionalidade é interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, considerando-se a alusão, feita pelo recorrente, no requerimento de interposição de recurso, à alínea f) do mesmo normativo, desprovida de qualquer relevância, porquanto não é problematizada qualquer questão de legalidade normativa, decorrente de violação de lei com valor reforçado.
3. O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objecto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP); artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Vejamos, pois, se tais requisitos se encontram preenchidos in casu ou se, pelo contrário, procedem os argumentos utilizados na decisão reclamada ou no parecer do Ministério Público, aqui reclamado.
Comecemos pelos pressupostos, cuja verificação é colocada em crise, elegendo, para a primeira abordagem, a análise da natureza do objecto de recurso de constitucionalidade.
O reclamante centra o objecto do recurso na interpretação dada aos artigos 272.º, n.º 1; 120.º, n.º 2, al. d); 141.º, n.º 4, al. c) e 144.º, todos do Código de Processo Penal (CPP), no sentido de que “a não confrontação, em sede de interrogatório judicial, do arguido com todos os factos pelos quais este acaba por ser acusado, mas apenas com parte deles, não põe em causa os seus direitos constitucionalmente consagrados, incluindo as garantias de defesa respectivas”.
Refere ainda que é inconstitucional a interpretação dada aos mesmos preceitos, “no sentido de que é possível e legal um cidadão português ser objecto de acusação formal, por factos concretos relativamente aos quais não tenha sido confrontado em Inquérito”.
Tendo em conta os preceitos de direito infra-constitucional seleccionados pelo reclamante e a exposição – ainda que sintética – do seu juízo de inconstitucionalidade, consideramos que este pretenderá, embora sob uma formulação diversa, a sindicância da interpretação normativa, extraída da leitura conjugada dos supra referidos preceitos do Código de Processo Penal, no sentido de que não constitui nulidade, por insuficiência de Inquérito, o não confronto do arguido, em interrogatório, com factos concretos, que venham a ser inseridos no despacho de acusação contra o mesmo deduzido.
O objecto do presente recurso – delimitado em termos que cremos mais claros, na formulação supra, mas perfeitamente reconhecíveis, na formulação escolhida pelo reclamante – comporta uma dimensão normativa, enquanto regra abstractamente enunciada e vocacionada para uma aplicação genérica.
Por essa razão, cremos ser idóneo o objecto do recurso.
No tocante ao pressuposto da efectiva aplicação da norma a sindicar, deve considerar-se que a interpretação normativa individualizada pelo reclamante se encontra subjacente à decisão recorrida.
Na verdade, tendo o tribunal a quo decidido que não configura nulidade, decorrente de insuficiência do Inquérito, a circunstância de o arguido não ter sido sujeito a interrogatórios complementares, para confronto com a totalidade dos factos por que venha a ser acusado, é de notar que a argumentação desenvolvida nos remete para a conjugação dos preceitos identificados pelo reclamante, sendo a dimensão normativa, seleccionada como objecto do recurso, reconhecível na solução jurídica adoptada pela decisão recorrida.
Relativamente ao requisito da prévia exaustão das instâncias, note-se que o Juiz do tribunal a quo não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por ter entendido que a decisão instrutória, e a que apreciou a sua irregularidade, seriam susceptíveis de recurso ordinário (desaplicando, por inconstitucionalidade, a norma extraída do artigo 310.º, n.º 1 do CPP, que consagra a sua irrecorribilidade), pelo que não estaria preenchido, em seu entender, aquele requisito. Ora, em situações em que, no ordenamento processual convocado pelo processo base, é controvertida a admissibilidade de impugnação de determinadas decisões, nomeadamente a sua recorribilidade, o Tribunal Constitucional tem admitido o recurso de constitucionalidade, sem impor ao recorrente o ónus de exaustão dos recursos ordinários hipoteticamente existentes (v.g. acórdãos n.ºs 21/87, 147/97 e 585/98).
Por outro lado, quanto a este requisito – que visa restringir o acesso ao Tribunal Constitucional, limitando-o apenas às pretensões que já tenham sido previamente analisadas pela hierarquia judicial correspondente –, este Tribunal já anteriormente decidiu no sentido da não desconformidade constitucional do referido artigo 310.º, n.º 1, à luz da anterior redacção do preceito – que veio a ser alterada pela Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto – que não continha a menção expressa da irrecorribilidade da decisão instrutória, na parte relativa a questões prévias ou incidentais. Sobre tal questão, pronunciam-se, nomeadamente, os acórdãos n.ºs 216/99 e 387/99 (disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt.).
4. Saliente-se, por último, que a prolação do acórdão condenatório não faz precludir o interesse processual do recorrente em ver a questão, que é objecto do presente recurso, dirimida pelo Tribunal Constitucional, porquanto tal acórdão manteve intocada a decisão recorrida, quanto ao reclamante.
Face às considerações expendidas, encontrando-se verificados os restantes pressupostos da admissibilidade do recurso, considera-se procedente a reclamação.
III – Decisão
5. Nestes termos, decide-se:
- julgar procedente a presente reclamação e, em consequência, admitir o recurso interposto pelo reclamante para este Tribunal Constitucional.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Abril de 2011.-Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano (junto declaração de voto) – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
A Constituição não admitiu o direito ao recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma inconstitucional de forma absoluta, tendo ela própria estabelecido alguns limites (na própria alínea b), do n.º 1, do artigo 280.º, e nos n.º 4 e 6 do mesmo artigo) e conferido ao legislador ordinário liberdade para fixar os requisitos de admissão deste tipo de recursos (artigo 280.º, n.º 4, da C.R.P.).
Um desses requisitos, nos recursos interpostos ao abrigo da competência estabelecida na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, foi o da exaustão das instâncias (artigo 70.º, n.º 2). Visou-se poupar o Tribunal Constitucional a intervenções dirigidas à aplicação de normas sem carácter definitivo no processo em causa. Quando essa aplicação tem um cariz ainda provisório, uma vez que a decisão que fundamenta encontra-se sujeita a recurso perante uma instância superior, o Tribunal Constitucional não se pode pronunciar sobre a constitucionalidade das normas aplicadas, devendo aguardar que essa aplicação se torne definitiva no processo. Sendo este tipo de recurso mais volúvel a uma utilização dilatória ou extemporânea pelas partes, exigiu-se que previamente à intervenção do Tribunal Constitucional tenham sido esgotados todos os recursos ordinários.
Preferiu-se uma intervenção selectiva do Tribunal Constitucional apesar dos riscos da produção de efeitos prejudiciais para as partes de decisões provisórias (uma vez que estas podem ser muitas vezes executadas, face ao efeito meramente devolutivo da maior parte dos recursos).
À mesma lógica deve obedecer a recorribilidade de decisões que procedam à aplicação das normas impugnadas com uma eficácia provisória, como sucede, por exemplo, nos procedimentos cautelares, em processo civil, ou nos despachos de pronúncia, em processo penal, devendo o Tribunal Constitucional apenas intervir quando essas normas sejam aplicadas pela instância recorrida, com carácter definitivo.
Note-se que a interpretação das normas de direito constitucional e ordinário que estabelecem os requisitos do recurso constitucional, de modo a racionalizar a actividade do Tribunal Constitucional, segundo a qual não é admissível submeter a este tribunal a apreciação da constitucionalidade de norma aplicada com uma eficácia provisória, não retira ao interessado a possibilidade de submeter à fiscalização do Tribunal Constitucional a norma aplicada pelo tribunal recorrido que entende violar a Constituição, impondo apenas que o exercício desse direito se faça somente quando ocorra uma pronúncia definitiva sobre a aplicação dessa norma.
Se este deferimento na apreciação da questão de constitucionalidade pode permitir que se concretizem alguns efeitos da sua aplicação provisória, como sucede com a sujeição a julgamento em processo penal, resultante da prolação do despacho de pronúncia, isso não é razão suficiente para que se subvertam os princípios que configuram o nosso sistema de recursos de constitucionalidade, uma vez que a possibilidade de ocorrerem ou se agravarem danos também se verifica relativamente à qualquer decisão susceptível de recurso para os tribunais superiores, também elas dotadas de um cariz provisório, sem que se questione a vigência da regra de que só após a exaustão das instâncias se poderá recorrer para o Tribunal Constitucional.
Esta solução, no meu entendimento, é a única que se integra coerentemente na lógica do sistema português de recursos de fiscalização sucessiva concreta para o Tribunal Constitucional, pelo que a extensão destes recursos a um juízo provisório de aplicação de uma determinada norma, só poderá ser feita excepcionalmente pelo legislador, não podendo o próprio Tribunal Constitucional, abrir uma brecha naquele sistema.
No presente recurso foi pedida a fiscalização de constitucionalidade dos artigos n.º 272.º, n.º 1, 120.º, n.º 2, d), 141.º, alínea c), e 144.º, todos do CPP, na interpretação de que “a não confrontação, em sede de interrogatório judicial do arguido, com todos os factos pelos quais este acaba por ser acusado, mas apenas com parte deles, não põe em causa os seus direitos constitucionalmente consagrados, incluindo as garantias de defesa respectivas”, aplicada em despacho complementar ao despacho de pronúncia, que apreciou a respectiva arguição de nulidade.
O 310.º, do CPP, dispõe o seguinte:
“1 - A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a competência do tribunal de julgamento para excluir provas proibidas.
…”.
Não se encontrando estabilizada na jurisprudência a posição de que o tribunal de julgamento tem competência para voltar a apreciar a arguição de nulidades do inquérito, que já tenham sido julgadas improcedentes no despacho de pronúncia, para além das situações referidas no n.º 2, do transcrito artigo 310.º, do CPP, não é possível afirmar, com segurança, que a decisão recorrida que aplicou a interpretação normativa impugnada tenha um cariz provisório, pelo que, neste caso, apoiei a decisão de se conhecer o recurso interposto, uma vez que não se mostra garantido que a decisão recorrida não seja definitiva, relativamente à norma cuja fiscalização de constitucionalidade foi requerida. João Cura Mariano.