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Processo nº 640/99
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - A C, SA, com sede em Lisboa – doravante C – interpôs recurso contencioso de anulação da decisão do Director do Departamento de Construção e Conservação de Edifícios e Obras Diversas da Câmara Municipal de Lisboa, com subdelegação de poderes do Presidente da Câmara, que a intimou a
'proceder à demolição das obras efectuadas clandestinamente' em prédio sito nesta cidade, e a repor 'o local em conformidade com o projecto aprovado'.
O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa (TACL), por sentença de 18 de Novembro de 1997, não só julgou improcedente a suscitada questão prévia de irrecorribilidade do acto impugnado, tendo em conta a sua natureza de acto não definitivo, como, entrando na apreciação de mérito, concedeu provimento ao recurso, julgando a decisão daquela entidade ferida de vício de violação de lei, face ao disposto nos artigos 3º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, e 153º do Decreto-Lei nº 694/70, de 31 de Dezembro.
O autor do acto recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo, o qual, por acórdão de 23 de Junho de 1999, negou provimento ao mesmo.
Reagiram ao assim decidido a entidade recorrida e o Ministério Público.
Aquela, mediante recurso para o Pleno da Secção, nos termos da alínea a) do artigo 22º do Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril – Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) –, na redacção do Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro, por alegada oposição de julgados, invocando, como acórdão-fundamento, aresto de 24 de Novembro de 1998; o Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, uma vez que no acórdão se terá recusado a aplicação do disposto no artigo 56º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho – Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA) – com fundamento na inconstitucionalidade dessa norma, por violação do disposto nos artigos 20º, nº
4, e 268º, nº 4, da Constituição da República (CR).
2. - Está agora em causa apenas o último dos citados recursos, que foi recebido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, tendo alegado apenas o recorrente.
As conclusões foram estas:
'1º- A norma constante do artigo 56º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, ao estabelecer a preclusão do conhecimento de mérito do recurso contencioso interposto de acto praticado com expressa invocação de delegação ou subdelegação de competência quando se venha a concluir que, afinal, esta era inexistente, inválida ou ineficaz, criando para o particular – que reagiu adequadamente à aparência de acto definitivo criado pela Administração – o ónus de esgotar previamente os recursos hierárquicos possíveis, como condição de um futuro e eventual acesso à justiça administrativa, constitui limitação desproporcionada e excessiva ao referido direito ao recurso contencioso, entendido como implicando a obtenção de uma decisão de mérito e em prazo razoável.
2º- Tal norma, ao frustrar a razoável e fundada expectativa do administrado em obter no recurso contencioso a dirimição substancial do litígio que o opunha à Administração – inviabilizando tal solução do pleito em consequência de uma ilegalidade exclusivamente imputável àquela – viola o princípio da confiança.
3º- Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.'
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
1. - A norma que integra o objecto do presente recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade está contida no artigo 56º da LPTA que assim dispõe:
'No caso de rejeição do recurso interposto de acto praticado com invocação de delegação ou subdelegação de competência, por estas não existirem, não serem válidas ou eficazes, ou não compreenderem a prática do acto, pode o recorrente usar o meio administrativo necessário à abertura da via contenciosa, no prazo de um mês, a contar do trânsito em julgado da decisão de rejeição.'
A apreciação que está em causa respeita a uma dada dimensão do preceito normativo que se articula com a implícita necessidade de se recorrer à via hierárquica, necessariamente, postergando para um segundo momento, se necessário, o recurso contencioso, sempre que se verifique uma situação de facto subsumível à previsão normativa.
2. - No regime da LPTA apenas se garantia o recurso contencioso de actos administrativos definitivos e executórios, não sendo esse o caso que, em princípio, sucede perante um acto praticado por agente subalterno, não compreendido na delegação ou subdelegação de competências.
De acordo com esse regime, a via contencioso só tem lugar uma vez proferida a última palavra da Administração, configurando-se a interposição do recurso hierárquico necessário como indispensável pressuposto do exercício da competência do superior, que dispõe do poder de reanálise de toda a situação sobre a qual o subalterno se debruçou. Assim, e como ensinava Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, 10ª edição, 1973, Coimbra, pág. 430) o recurso hierárquico tem lugar quando um subalterno pratique um acto que só se tornará definitivo e executório se os interessados prescindirem da intervenção dos superiores mas, em algum caso, será susceptível de impugnação contenciosa.
A esta luz, e perante um quadro de fundada aparência de definitividade, a norma do artigo 56º perfila-se como emanação do princípio da boa fé no âmbito das relações entre a Administração e os administrados e assume-se como salvaguarda das regras do Estado de direito democrático.
Com efeito, se o particular se orientou processualmente mediante a impugnação de um acto aparentemente definitivo, praticado com invocação inexistente ou ineficaz, de uma delegação ou subdelegação de competências, e vê posteriormente rejeitado o seu recurso com fundamento em falta de definitividade vertical do acto, encontrar-se-ia em situação irremediável, esgotado já o prazo para o recurso hierárquico, se não fosse a abertura que a norma do artigo 56º lhe proporciona.
Ora, por efeito dessa norma, como observa um autor, o particular 'pode usar do meio administrativo necessário à abertura da via contenciosa no prazo de um mês a contar do trânsito em julgado da decisão de rejeição' (cfr. Santos Botelho, Contencioso Administrativo, 3ª ed., Coimbra,
2000, pág. 380).
A mesma ideia transparece na anotação feita ao preceito por Artur Maurício, Dimas de Lacerda e Simões Redinha quando comentam manter-se, por força daquele normativo, 'a consequência inevitável da rejeição do recurso, mas possibilita-se a interposição tempestiva do recurso hierárquico necessário
[...]' (cfr. Contencioso Administrativo, 2ª ed., Lisboa, pág. 169). No mesmo sentido João Caupers e João Raposo, Contencioso Administrativo Anotado e Comentado, Lisboa, 1994, pág. 155).
3. - É certo que a garantia de recurso contencioso passou a ser aferida pelo critério da lesividade, com a revisão constitucional de 1989, admitindo-se, a partir de então, a recorribilidade contenciosa dos actos administrativos dotados de capacidade de lesarem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
No entanto, a eliminação da referência às características de definitividade e de executoriedade dos actos administrativos não implica, necessariamente, a abertura a um recurso contencioso imediato, sendo admissível a exigência do prévio esgotamento das vias graciosas, mesmo na perspectiva da irrestrição da tutela jurisdicional efectiva dos administrados, cujo direito ao recurso contencioso é mera e legitimamente condicionado, desse modo se procurando assegurar, previamente, que a via hierárquica possa dar satisfação ao interesse do administrado, por meio da revisão do acto administrativo praticado pelo subalterno (assim, J.C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 2ª edição, Coimbra, 1999, págs. 181 e segs.).
O Tribunal Constitucional tem, a este respeito, mantido uma orientação que, a partir da revisão constitucional aprovada pela Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, surpreende na eliminação do inciso
'definitivos e executórios', que constava do nº 2 do artigo 268º da CR, na versão de 1982, tão só o sentido de purificação do conceito de acto administrativo susceptível de ser contenciosamente impugnado. De acordo com este sentido, o que a garantia constitucional de accionabilidade dos actos administrativos ilegais procura assegurar é que haja sempre a possibilidade de sindicar judicialmente, com fundamento na sua ilegalidade, todo e qualquer acto de autoridade que produza ofensa de situações juridicamente reconhecidas, ou seja, que tenha efeitos externos.
Constituem expressão desta jurisprudência, mercê da qual a impugnação contenciosa de actos administrativos encontra-se, em princípio, subordinada à interposição prévia de recurso hierárquico, acórdãos como os nºs.
9/95, 603/95, 115/96, 499/96, 425/99 ou 124/2000 (publicados os três primeiros e o penúltimo no Diário da República, II Série, de 22 e 14 de Março de 1995, 6 de Maio de 1996 e 3 de Dezembro de 1999, respectivamente, o quarto in Jurisprudência Administrativa, nº 0, de Dezembro de 1996, com anotação favorável de J.C. Vieira de Andrade, mantendo-se o último inédito).
Pode, assim, concluir-se que a prévia interposição do recurso hierárquico necessário não viola a garantia constitucional da accionabilidade do acto administrativo, como se frisou no acórdão deste Tribunal nº 161/99, publicado no Diário da República, II Série, de 16 de Fevereiro de
2000.
4. – O acórdão recorrido reconhece que a admissibilidade constitucional do recurso hierárquico necessário assentou em razões de adequação e proporcionalidade, sendo razoavelmente compensado o inconveniente que para a administrado resulta da impossibilidade de um acesso imediato aos tribunais pelo facto de o recurso hierárquico necessário ser decidido em prazo mais curto, a que acrescem a natureza do reexame obtido, em contraste com a natureza estritamente revisora e cassatória do recurso contencioso, o efeito suspensivo que, em regra, é observável e a gratuitidade do processo administrativo.
No entanto, já considera constitucionalmente inadmissível a imposição do recurso hierárquico necessário 'naqueles casos em que o processo imposto por lei para se alcançar a reacção contenciosa esteja de tal modo eriçado de escolhos que, na prática, suprima ou restrinja em medida intolerável o direito dos cidadãos ao recurso contencioso' ou sempre que daí resulte um significativo encurtamento das garantias do particular.
Aqui, a particular onerosidade da impugnação contenciosa violará a garantia do direito ao recurso contencioso.
A ponderação do concreto caso conduziu, no aresto recorrido, ao afastamento do regime previsto no artigo 56º, uma vez que obrigar o administrado, por circunstâncias que não lhe dizem respeito, a esgotar as vias graciosas, correndo o risco de, mais tarde, ter de se socorrer de meio contencioso, representará uma desrazoável e desproporcionada medida, protelando a tutela efectiva e definitiva que, de outro modo, estaria prestes a ser alcançada.
Escreveu-se, com efeito, a este propósito, no acórdão, em sustentação da 'desaplicada' vertente normativa:
'No presente caso, porém, não estamos perante o vulgar caso de um acto de um subalterno, praticado sem invocação de delegação de competência, perante o qual um jurista minimamente competente sabe que se tratará, em regra, de acto praticado no uso de competência própria mas não exclusiva, pelo que, para alcançar a via contenciosa, terá de previamente esgotar as vias graciosas. A situação, aqui, é substancial e significativamente diferente: trata-se de um acto praticado com expressa invocação de delegação e de subdelegação de competência, em que, manifestamente, o seu autor quis praticar um acto definitivo e executório e dizer a última palavra da Administração a definir a situação concreta do destinatário do acto. Perante este quadro, não merece qualquer censura ou sancionamento o comportamento processual do interessado, que diligentemente interpôs de imediato recurso contencioso daquele acto, que lhe surgia com toda a aparência de acto definitivo, executório e lesivo dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Ingressado o litígio na via contenciosa e apurado, por decisão jurisdicional (embora ainda não transitada), que o acto impugnado padece de vício de violação de lei substantiva que inviabiliza a sua renovação com o mesmo sentido decisório, deixam de valer aqui os argumentos de razoabilidade e de proporcionalidade que sustentam a tese da admissibilidade constitucional do recurso hierárquico necessário. O interessado está prestes a alcançar, na via judiciária, a tutela efectiva e definitiva da sua pretensão. Nenhum sentido faz, neste caso, rejeitar o recurso contencioso, obrigar o interessado a esgotar as vias graciosas, com o risco de, face a eventual indeferimento, expresso ou silente, do recurso hierárquico, ter de reiniciar a via contenciosa. Tratar-se-ia, no presente caso, de imposição do tal
'percurso eriçado de escolhos' – de que vem falando a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo –, que, na prática, restringe em medida intolerável o direito dos cidadãos ao recurso contencioso, na dupla perspectiva de direito a uma tutela jurisdicional efectiva e do direito a uma decisão em prazo razoável (artigos 268º, nº 4, e 20º, nº 4, da Constituição), e, por isso,
é constitucionalmente inadmissível.'
5. - A especificidade da situação subjacente revela uma
'fundada aparência' do acto definitivo, imputável exclusivamente à Administração, uma vez que radicada em invocação de inexistente delegação ou subdelegação de competência.
Poderá, no entanto, considerar-se que constitui um desrazoável obstáculo à apreciação do mérito do recurso contencioso o 'ónus' pendente sobre o administrado de 'suprir' o vício detectado, utilizando a cadeia hierárquica para, desse modo, provocar a decisão do órgão verdadeiramente detentor da competência para praticar o acto administrativo em causa e, ainda, eventualmente, se a decisão vier a ser desfavorável, para dela contenciosamente voltar a recorrer?
Crê-se que se impõe uma resposta negativa, a única que, de resto, se compatibilizará com o espírito do sistema.
Com efeito, e já houve oportunidade de o referir, o Tribunal Constitucional vem considerando, ainda que só maioritariamente, não se colocar em crise a garantia constitucional da accionabilidade dos actos administrativos perante a exigência de prévia interposição do recurso hierárquico necessário.
É que, preservada que seja essa garantia, não será caso de equacionar um problema de tutela jurisdicional efectiva na vertente que o nº
4 do artigo 20º da Constituição desdobra, relativa ao direito que todos têm a que a causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável.
Ao invés, aquela exigência de utilização da via hierárquica servirá, em princípio, para economizar um recurso contencioso, servindo, desse modo, como instrumento de racionalização do acesso à via judiciária. Como se ponderou no citado acórdão nº 161/99, 'basta que, interposto recurso gracioso, o particular obtenha, ao nível da Administração, a reformulação da decisão que considera lesiva dos seus direitos ou interesses legítimos. E, quando não evite o recurso contencioso, a utilização desse meio administrativo não impede a impugnação dos actos administrativos viciados, nem a torna particularmente onerosa; impõe apenas um compasso de espera'.
Conclui-se assim, a este respeito, em consonância com o juízo formulado no acórdão nº 425/99, igualmente já referido:
'A tutela jurisdicional efectiva dos administrados não resulta, nem inviabilizada, nem, sequer, restringida pela previsão de tal via hierárquica necessária como meio de, em primeira linha, tentar obter a satisfação do interesse do administrado pela revisão do acto administrativo praticado pelo
órgão subalterno da Administração, previamente ao, sempre assegurado, recurso jurisdicional.'
Como então mais se escreveu, citando J.C. Vieira de Andrade (ob. Cit., págs. 181 e segs.), trata-se, apenas de 'um condicionamento legítimo do direito do recurso contencioso, ficando sempre ressalvada a garantia da tutela judicial em todos os casos concretos'.
A norma em causa visa, de um lado, assegurar aos particulares a utilização da via hierárquica oportunamente não utilizada; e, de outro lado, garantir que o acto administrativo seja praticado pela entidade efectivamente competente para o efeito.
Não se detecta, assim, qualquer afectação das garantias do particular, nem tão pouco se considera existir uma onerosidade excessiva na iniciativa exigida ao administrado, beneficiando ainda, esse entendimento, da objectividade necessária a uma serena e segura interpretação pelo operador jurídico.
Tanto basta para não se surpreender parcela ou dimensão inconstitucional na norma do artigo 56º da LPTA.
III
Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, consequentemente, deverá o acórdão recorrido ser reformulado em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade. Lisboa, 13 de Março de 2001 Alberto Tavares da Costa Messias Bento José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida