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Processo n.º 662/10
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A. intentou em 2 de Abril de 2004 acção de investigação da paternidade contra B. e mulher, C., peticionando o estabelecimento do vínculo jurídico de paternidade jurídica entre a autora e D.. A acção foi julgada procedente na 1ª instância. Inconformados, os réus recorreram para a Relação de Coimbra, que julgou procedente o recurso e declarou extinto o direito de instaurar a acção de investigação da paternidade, por ter caducado nos termos do artigo 19º do DL n.º 47.344/66 de 25 de Novembro. Inconformada, a autora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, que decidiu da seguinte forma:
«Relativamente à caducidade do direito da acção, a decisão da Relação foi no sentido de acolher a posição defendida pelos recorrentes, já que, quando a autora nasceu, em 1945, vigorava na ordem jurídica portuguesa o art. 37.º do Dec. N.º 2, de 25 de Dezembro de 1910, com a seguinte redacção:
«A acção de investigação de paternidade ou maternidade ilegítima só pode ser intentada em vida do pretenso pai ou mãe ou dentro do ano posterior à sua morte, salvo as seguintes excepções:… ».
Todavia, com a publicação do actual Código Civil e sua entrada em vigor, em 1967, este regime foi alterado e a acção de investigação da paternidade passou a só poder ser instaurada durante a menoridade do filho e nos «dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação» - arts. 1873º e 18170 do Código Civil.
Porém, quando o novo Código Civil entrou em vigor, em 1 de Junho de 1967, o art. 19º do DL. nº 47344/66, de 25 de Novembro, norma transitória, veio dispor, quanto às acções de investigação de maternidade ou paternidade ilegítima, o seguinte:
«O facto de se ter esgotado o período a que se refere o nº 1 do artigo 1854º não impede que as acções de investigação de maternidade ou paternidade ilegítima sejam propostas até 31 de Maio de 1968, desde que não tenha caducado antes, em face da legislação anterior, o direito de as propor».
O nº 1 do art. 1854º referido nesta norma transitória pertencia à primeira versão do Código Civil de 1967, cuja redacção era a seguinte:
«A acção de investigação de maternidade ou paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua emancipação ou maioridade».
Este conteúdo normativo passou, mais tarde, a integrar o n.º 1 do art. 1817º deste Código, agora declarado inconstitucional com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional, no seu acórdão nº 23/2006, de 10 de Janeiro de 2006, publicado no Diário da República, I Série, nº 28, de 08-02-2006, pág. 1026.
Aplicando estes normativos, tendo a autora nascido em 2 de Novembro de 1945, teria atingido normalmente a maioridade aos 21 anos, isto é, em 2 de Novembro de 1966.
Porém, como a autora casou em 20 de Outubro de 1962, com 16 anos feitos, adquiriu, devido ao casamento, o estatuto de maior antes de ter completado os 21 anos, por força do disposto no nº 1 do art. 304º, conjugado com o art. 305º, ambos do Código Civil de 1867, onde se estabelecia que o menor se podia emancipar pelo casamento e que a emancipação habilitava «o menor a reger a sua pessoa e bens, como se fosse maior».
No entanto, o art. 306º do mesmo código determinava que a emancipação por casamento só produziria os seus efeitos legais «...tendo o varão dezoito anos completos, e a mulher dezasseis, e tendo sido o casamento completamente autorizado».
Verifica-se, face a estas normas, que a autora atingiu, efectivamente, a maioridade, na data em que casou, isto é, em 20 de Outubro de 1962, pois já tinha, então, completado os 16 anos de idade.
Face ao disposto no mencionado artigo 19º do DL. 11º 47344/66, de 25 de Novembro, a autora dispôs, à época, de prazo para instaurar a acção de investigação da paternidade até 31 de Maio de 1968.
Assim, o direito da autora, quanto ao exercício do direito de acção, relativo à investigação da sua paternidade, a que aludia a norma do nº 1 do art. 1854º do Código Civil, na sua versão original, mais tarde transposta para o nº 1 do art. 1817º do mesmo código, extinguiu-se, por caducidade, em 31 de Maio de 1968, sendo certo que a declaração de inconstitucionalidade do citado art. 1817º, nº 1, do C.Civil, a que atrás se aludiu, nenhuns efeitos tem sobre o caso ajuizado, certo que, não obstante o disposto no nº 1 do art. 282º da CRP, a norma que limitou, temporalmente, a possibilidade de a autora investigar a paternidade não foi a do citado nº 1 do art. 1817º, aplicada por força do art. 1873º, também do C.Civil, mas a norma constante do art. 19º do DL. nº 47344/66, de 25 de Novembro. De resto, mesmo que aplicasse ao caso o art. 1817º, nº 1, do C.Civil, os efeitos da declaração da sua inconstitucionalidade não retroagiriam a situações temporalmente anteriores ao início da vigência das normas constitucionais que fundamentaram a declaração de inconstitucionalidade (a CRP entrou em vigor no dia 25 de Abril de 1976).
Por outro lado, não subsistem outras vias susceptíveis de desencadear a investigação de paternidade não abrangidas por aquela caducidade, designadamente a estabelecida pelo nº 4 do art. 1854º do C.Civil, então em vigor, e que se manteve até ao presente, a única que cabia apreciar, tendo em conta a factualidade alegada na petição, pois que, após a alteração da decisão sobre a matéria de facto, concluiu a Relação que a autora não foi tratada pelo D. como filha, ou seja, não se provando actos do pretenso pai capazes de preencher o conceito de «tratamento» previsto no nº 4 do art. 1817 e, antes, no art. 1854º, ambos do C.Civil, e não se verificando também qualquer outra das hipóteses contempladas nos 2 e 3 do art. 1817º, o prazo para a propositura da acção esgotou-se em 31 de Maio de 1968.
(…)
Cremos que a tese defendida pela recorrente só poderia ter sucesso se não houvesse qualquer limite, nomeadamente temporal, ao exercício do direito de instaurar a acção de investigação de paternidade.
É verdade que já defendemos essa posição no Acórdão proferido no recurso nº 1124/05.3TBLGS.S1, tendo, porém, o Tribunal Constitucional, em Acórdão de 19 de Outubro de 2009, que incidiu sobre o mesmo, decidido não julgar inconstitucional a norma do art. 1842º, nº 1, al. a), do C.Civil, na medida em que limita a possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, sendo certo que outras decisões do mesmo Tribunal apontam no mesmo sentido.
Refere-se, nomeadamente, nesse aresto:
«Como tem sido entendido, o direito à identidade pessoal, tal como está consagrado no artigo 26º, nº 1, da Constituição, abrange, não apenas o direito ao nome, mas também o direito à historicidade pessoal, enquanto conhecimento da identidade dos progenitores, e poderá fundamentar, por si um direito à investigação da paternidade e da maternidade (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição revista, vol. 1, Coimbra, pág. 462). Num outro registo, a identidade pessoal, sendo o que caracteriza cada pessoa enquanto unidade individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas por uma determinada vivência pessoal, inclui também o direito à identidade genética própria e, por isso, ao conhecimento dos vínculos de filiação, no ponto em que a pessoa é condicionada na sua personalidade pelo factor genético (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, págs. 204-205).
Como se afirmou no acórdão nº 456/03, já mencionado, «Tal direito inclui no seu conteúdo essencial a possibilidade de qualquer pessoa tomar conhecimento da sua ascendência, nomeadamente, da sua filiação natural. Nessa medida, a lei consagra os mecanismos judiciais que visam efectivar o exercício de tal direito, permitindo a investigação da filiação (maternidade, paternidade), de modo a que todos os indivíduos tenham a possibilidade de identificar os seus progenitores para, entre outros fins, ser estabelecido o vínculo de filiação jurídica com base no vínculo biológico».
A revisão constitucional de 1997 passou também a consagrar constitucionalmente, no mesmo preceito, o direito ao desenvolvimento da personalidade. Este assegura uma tutela mais abrangente da personalidade, que inclui duas diferentes dimensões: (a) um direito à formação livre da personalidade, que envolve a liberdade de acção de acordo com o projecto de vida e capacidades pessoais próprias; (b) a protecção da integridade da pessoa em vista à garantia da esfera jurídico-pessoal no processo de desenvolvimento. Neste plano, o desenvolvimento da personalidade comporta uma liberdade de autoconformação da identidade, da integridade e da conduta do indivíduo, e nele se pode incluir, além de muitos outros elementos, um direito ao conhecimento da paternidade e da maternidade biológica (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág. 463-464).
Como vimos, a lei prevê a prescritibilidade da acção de investigação de paternidade tal como da acção de impugnação de paternidade. As razões que terão estado na definição desse regime jurídico prendem-se, como se anotou, com o inconveniente da manutenção de uma situação prolongada de insegurança e o perigo de enfraquecimento das provas com a passagem do tempo, a que acresce, no que toca especialmente à impugnação da paternidade do marido, um outro motivo relacionado com a necessidade de proteger a unidade familiar.
Como se concluiu no aresto há pouco citado, como decorrência do direito fundamental à identidade pessoal, a consagração de limites ao exercício do direito a ver reconhecida a filiação natural não poderá inutilizar esse direito. Isto é, independentemente de ser ou não constitucionalmente criticável a possibilidade de consagração de limites, nomeadamente temporais, ao exercício do direito de instaurar a acção de investigação de paternidade, não é já, seguramente, admissível a criação de um limite que, na prática, vede, em absoluto, a possibilidade de o sujeito averiguar o vínculo de filiação natural.
Esse princípio foi reafirmado pela jurisprudência constitucional, de forma mais abrangente, em relação ao prazo-regra do artigo 1817.º, nº 1, do Código Civil (aplicável à acção de investigação de paternidade por força do artigo 1873º), em termos tais que veio, mais tarde, a ser declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade dessa referida norma.
O acórdão nº 486/04, que inaugurou essa jurisprudência, não deixou, todavia, de vincar que o que estava então em causa era o concreto limite temporal previsto no artigo 1817.º, nº 1, do Código Civil (pelo qual ao investigante está vedado propor uma acção de investigação de paternidade para além do prazo de dois anos a contar da maioridade ou emancipação), e não a questão de saber se a imprescritibilidade da acção corresponde à única solução constitucionalmente conforme.
Do referido acórdão não se pode, portanto, extrair a ilação de que qualquer regime de prescritibilidade legalmente consagrado para as acções relativas ao estabelecimento do vínculo de filiação se encontra ferido de inconstitucionalidade.
Sublinhe-se que o prazo para a propositura da acção de investigação de paternidade, cominado através da inconstitucionalizada norma do artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, se contava a partir de um facto objectivo (a aquisição da maioridade ou emancipação do investigante), a ponto de ficar inviabilizado o exercício do direito de acção quando o interessado apenas tivesse tido conhecimento efectivo da situação que justifica o impulso processual já depois de transcorrido o prazo de dois anos a contar desse momento. Poderá facilmente concluir-se, nesse contexto, que é desproporcionada e violadora do direito à identidade pessoal a norma que impede a investigação de paternidade em função de um critério de prazos objectivos, quando os fundamentos para instaurar a acção surgem pela primeira vez em momento ulterior ao termos desses prazos. Tal norma consagra, nesses termos, uma efectiva negação da possibilidade de conhecimento da paternidade».
Aderindo à doutrina consagrada nesta decisão do Tribunal Constitucional e alterando, consequentemente, a posição que vínhamos defendendo, entendemos, tendo em conta a factualidade assente, que, com o fundamento na imprescritibilidade da acção de investigação de paternidade, o recurso não pode proceder».
2. Desta sentença recorreu A. para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, em requerimento que parcialmente se transcreve:
“[...] Reitera por isso o juízo de ilegalidade, inconstitucionalidade e inconvencionalidade, já versados na minuta do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Isto porque, contrariamente ao que vem exarado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, a Constituição da República Portuguesa de 1976 declara expressa e represtinativamente inconstitucionais as normas anteriores à sua entrada em vigor que lhe são contrárias.
Com o devido respeito a Autora não se conforma com o facto de o MM.º Juiz Conselheiro Relator ter invocado a posição decisória por si assumida noutro processo (de impugnação de paternidade), cuja situação é inteiramente distinta da dos presentes autos (de investigação de paternidade). Isto porque num processo de impugnação de paternidade já existe o direito à identidade, o qual ao ser destruído pela procedência da impugnação abre caminho ao estabelecimento de outra paternidade. Porém no caso dos presentes autos de investigação de paternidade nem sequer se quer permitir à Autora que tenha direito à identidade, que ante um índice pericial de 99,999999999 de paternidade relativamente ao investigado seu Pai D., está incontornavelmente à vista de todos, inclusive dos Réus B. e mulher e do curador especial ad litem, que o não questionam sequer.
O Tribunal da Relação de Coimbra e o Supremo Tribunal de Justiça, ao desvalorizarem os elementos de facto integradores da posse de estado, tomaram uma inaceitável posição restritiva do direito da Autora à sua identidade/origens, como aliás é justamente destacado no Douto voto de vencido.
Acham-se esgotados todos os recursos ordinários.
Está preenchido o requisito de admissibilidade deste recurso porque a Autora já invocou designadamente nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra e na minuta das alegações do recurso de revista, e reitera expressamente a inconstitucionalidade do artigo 1817.º do Código Civil, quer na redacção (do DL. N.º 47.344, e da Lei n.º 21/98 de 12-05) anterior à Lei n.º 14/2009, de 01 de Abril, quer na redacção desta lei, ela também inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 1.º, 2.º, 7.º, n.º 1, 9º, al. b), 12.º, 13.º, 16.º, 17.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.ºs 1 e 4, 25.º, 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 4, e 200.º da Constituição da República Portuguesa; e as inconvencionalidades decorrentes da violação dos arts. 2.º 6.º, 7.º, 10.º 12.º 28º, 29.º, n.º 2 e 30.º da DUDH e arts 6.º n.º 1 e 17.º da CEDH e art.º 1.º do Protocolo n.º 12 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais; e art.ºs 1.º, 3.º, 7.º, 9.º, 20.º, 21.º, 41.º, 47.º, 51.º, 52.º, 53.º e 54.º da Carta de Direitos
Fundamentais da União Europeia.
Este recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei 85/89 de 7 de Setembro e pela Lei 13-A/98 de 26 de Fevereiro.
Requer a admissão e a subida deste recurso, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Com a junção aos autos e ulteriores termos pede a V.Exa deferimento».
3. Recebido o recurso, a recorrente alegou e concluiu:
«1 - O exame pericial de investigação de paternidade, através da análise de diversos marcadores genéticos, efectuado pelo Serviço de Genética e Biologia Forense da Delegação de Coimbra do INML, conclui que, relativamente a D., não permite excluí-lo como pai da A. A., filha de E. ; porque a análise estatística utilizando programas “Famílias 1.81” conduziu a uma (...) probabilidade de paternidade W=99,999999999%, que corresponde a “paternidade praticamente provada” na escala de Hummel.
2 - O Tribunal da Relação de Coimbra e o Supremo Tribunal de Justiça, muito embora tenham reconhecido tal facto de que D. é o pai biológico da autora, declaram extinto o direito da autora/recorrente a instaurar a presente acção de investigação da paternidade, por alegadamente ter caducado em 31 de Maio de 1968, nos termos previstos no artigo 19.º do DL n.º 47344/66, de 25 de Novembro.
3 - A Autora defende a aplicabilidade ao caso, do direito à identidade na modalidade de direito ao conhecimento das origens.
4- E, relativamente à Lei 14/09 de 1.4, pela restrição retroactiva aos direitos fundamentais que injustamente veio criar, a responsabilidade culposa do Estado decorrente da função legislativa face aos princípios da aplicabilidade directa do direito comunitário e inclusive do primado do direito comunitário, a que o Estado Português se acha vinculado.
5- Isto porque violou o princípio da proibição da retroactividade das leis restritivas com a consequente violação do princípio da protecção da confiança dos cidadãos e a violação da proibição constante do artigo 18.º n.º 3 da CRP., bem como a “limitação excessiva ou arbitrária de um direito fundamental, ou seja: “aquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas podem depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito.”
6 - A Douta Sentença [da 1.ª Instância] cumpre os preceitos dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 26.º e 36.º da CRP e 6.º n.º 1.º da CEDH, sempre o recurso interposto [para a 2.ª Instância] deve ser julgado não provido.
7 - É inconstitucional e inconvencional o estabelecimento de um prazo para exercício de direito à identidade, à igualdade e à não discriminação (artigos 1.º, 2.º, 9.º b); 13.º, 16.º, 18.º, 19.º, n.º 1, 20.º, n.º 1 segmento inicial, 4 e 5, 26.º e 36.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa; artigos 2.º, 6.º, 7.º, 10., 12.º, 28.º, 29.º, n.º 2 e 30.º da CDUH; artigos 1, 6.º n.º 1; 8.º, n.ºs 1 e 2, 12.º, 14.º, 17.º e 18.º da CEDH, e artigo 1.º do Protocolo n.º 12 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais) – direito este que a Autora, ora Recorrente, veio concretizar através da propositura desta acção –, pelo que se opõe à aplicação ao caso dos autos, da nova redacção do artigo 1.817.º do C. Civil, introduzida pela Lei n.º 14/2009 de 01-04- 2009, tanto assim que o Conselho da Europa sugere a revogação de todo o condicionamento das investigações de paternidade.
8 - Aliás, o direito da recorrente a investigar a sua paternidade surgiu na sua esfera jurídica na data do seu nascimento que ocorreu em 02 de Novembro de 1945 e quando o direito da recorrente surgiu na sua esfera jurídica a acção interposta podia – nos termos do então vigente artigo 37.º do Decreto N.º 2 de 25-12-1910, que substituiu o artigo 133.º do Código de Seabra – ser intentada até ao decurso de um ano posterior à morte do investigado.
9- O investigado D., pai da Autora, faleceu em 28-01-2004, pelo que o direito da Autora à propositura desta acção só caducaria a 27-01-2005.
10 - O prazo de caducidade é um prazo substantivo, integrador do próprio direito a intentar a acção, pelo que a lei nova não pode determinar quanto a direitos que a ele não estão sujeitos e de acordo com o artigo 8.º do Código de Seabra “A lei não tem efeito retroactivo. Exceptua-se a lei interpretativa, a qual é aplicada retroactivamente, salvo se dessa aplicação resulta ofensa a direitos adquiridos”.
11 - A restrição do período temporal para intentar uma acção de investigação de paternidade efectuada pelo actual Código Civil e pela Lei 14/2009 de 01 de Abril, nos termos do artigo 12.º do Código Civil actual, e das disposições constitucionais e convencionais adiante transcritas – é inaplicável ao caso dos presentes autos. Com efeito, não restam dúvidas quaisquer de que a legislação aplicável ao caso em apreço não é a legislação presentemente em vigor.
12 - Assim, o Tribunal da Relação de Coimbra e o Supremo Tribunal de Justiça aplicaram indevidamente a legislação actualmente em vigor, ou por erro de interpretação, o artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 47334, o qual, ao invés de afectar os direitos adquiridos pela Autora, até acrescentou prazo para outras situações, mas que não a da Autora.
13 - No entanto, a decisão tomada no STJ não foi unânime, uma vez que dela consta um voto de vencido no qual o respectivo Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Signatário exarou o seguinte:
“Entendo na esteira do acórdão deste STJ de 8/6/2010, em que fui relator, que o direito fundamental de ascendia biológica por banda do investigante é um direito pessoalíssimo e imprescritível.
Configurando o prazo de caducidade a tal respeito estabelecido qualquer que ele seja, uma restrição desproporcionada do direito à identidade pessoal ou à historicidade pessoal e violador da Constituição da República Portuguesa - cfr., ainda, artigo 290.º, n.º 2 deste mesmo diploma fundamental.
Por isso, não obstante o respeito devido à decisão proferida no T.C. em 19/10/2009 – respeitante ao prazo de impugnação de paternidade que aqui não está em causa – julgaria não ter caducado o direito da autora”.
14 - No processo de recurso de revista n.º 495/04.3TBOBR.C1.S1, da 1.ª Secção do STJ, em que é autora F., irmã consanguínea da ora recorrente, por Douto Acórdão de 21-09-2010, foi a mesma reconhecida como filha biológica do investigado D. e julgou-se que o direito a investigar a paternidade é imprescritível, sendo injustificada qualquer limitação temporal a esse direito.
15 - É sempre desproporcionada qualquer restrição ao direito à identidade pessoal que tem a ver com a investigação do respectivo progenitor, e
16 - É intolerável que atinja a aqui autora, A., quando é certo que a sua irmã, F., já se acha reconhecida como filha biológica do mesmo investigado pai, pelo acórdão referido na 14.º conclusão.
17 - As normas invocadas e aplicadas pela Relação e pelo STJ deverão ser julgadas inconstitucionais por violação das acima referidas normas convencionais e constitucionais, ordenando-se a respectiva reformulação de acordo com o juízo de inconstitucionalidade que vai requerido, por assim ser de Lei e de acordo com o Estado de Direito Democrático consagrado na Constituição da República Portuguesa».
4. Os recorridos apresentaram contra-alegação. Encerrada essa fase, o relator proferiu o seguinte despacho:
1. A. recorre para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido em 1 de Julho de 2010 no Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC (Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro). Invoca a «inconstitucionalidade do artigo 1817.º do Código Civil, quer na redacção (do DL. N.º 47.344, e da Lei n.º 21/98 de 12-05) anterior à Lei n.º 14/2009, de 01 de Abril, quer na redacção desta lei, ela também inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 1.º, 2.º, 7.º, n.º 1, 9º, al. b), 12.º, 13.º, 16.º, 17.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.ºs 1 e 4, 25.º, 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 4, e 200.º da Constituição da República Portuguesa; e as inconvencionalidades decorrentes da violação dos arts. 2.º 6.º, 7.º, 10.º 12.º 28º, 29.º, n.º 2 e 30.º da DUDH e arts 6.º n.º 1 e 17.º da CEDH e art.º 1.º do Protocolo n.º 12 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais; e art.ºs 1.º, 3.º, 7.º, 9.º, 20.º, 21.º, 41.º, 47.º, 51.º, 52.º, 53.º e 54.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia».
2. Acontece que no âmbito do recurso previsto na aludida b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, cabe ao Tribunal sindicar normas jurídicas inconstitucionais aplicadas na decisão recorrida.
Por essa razão, o Tribunal não pode apreciar – no âmbito deste recurso – a matéria respeitante à violação dos artigos 2.º 6.º, 7.º, 10.º 12.º 28º, 29.º, n.º 2 e 30.º da DUDH e artigos 6.º n.º 1 e 17.º da CEDH e artigo 1.º do Protocolo n.º 12 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais; e artigos 1.º, 3.º, 7.º, 9.º, 20.º, 21.º, 41.º, 47.º, 51.º, 52.º, 53.º e 54.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.
3. Além disso, a norma jurídica aplicada na decisão do STJ da qual decorre a decisão recorrida é, conforme diz o aresto, retirada do artigo 19.º do diploma preambular do Código Civil de 1966, o Decreto-Lei n.º 47.344 de 1966 de 25 de Novembro, e não as normas que a recorrente identifica como objecto do seu recurso.
4. Sendo, assim, possível que o Tribunal não possa conhecer do recurso interposto, a recorrente deverá ser ouvida a esta matéria. [...]
Em resposta, a recorrente invoca:
[...] 1. No n.º 3 do referido Douto Despacho, refere o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator o seguinte: «a norma jurídica aplicada na decisão do STJ da qual decorre a decisão recorrida é, conforme diz o aresto, retirada do artigo 19.º do diploma preambular do Código Civil de 1966, o Decreto-Lei n.º 47.344 de 1966 de 25 de Novembro, e não as normas que a recorrente identifica como objecto do seu recurso».
Contudo,
2. Salvo o devido respeito, o STJ não aplicou unicamente, como ratio decidendi, a norma transitória contida no artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 47.344, de 25 de Novembro de 1966, mas também o artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil.
3. E, por outro lado, a recorrente não se limitou a identificar como norma infringente dos preceitos constitucionais invocados a do mencionado artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, tendo individualizado, igualmente, a do referido artigo 19.º do diploma preambular desse Código.
Com efeito, ”
4. A fls. 10 e, depois, a fls. 12 e segs., do douto Acórdão do STJ de que vem o presente recurso, restrito à questão da inconstitucionalidade de normas, proferido no Processo n.º 375/O42TBOBR.C1.S1, pode ler-se (no que a essa questão interessa):
«Em face do tratamento dado às questões suscitadas no recurso de apelação, bem se pode, sem mais, face aos fundamentos utilizados no acórdão da Relação, porque com eles se concorda, tal como com as soluções encontradas, para ele remeter nos termos e ao abrigo do disposto no art. 713.º, nº 5, do CPC.
Todavia, em reforço das soluções consagradas no acórdão impugnado, e sem pretender acrescentar algo de novo, apenas se dirá que, relativamente à primeira questão (...).»
(...) «Cremos que a tese defendida pela recorrente só poderia ter sucesso se não houvesse qualquer limite, nomeadamente temporal, ao exercício do direito de instaurar a acção de investigação de paternidade.»
«É verdade que já defendemos essa posição no Acórdão proferido no recurso nº 1124/05.3TBLGS.S1, tendo, porém, o Tribunal Constitucional, em Acórdão de 19 de Outubro de 2009, que incidiu sobre o mesmo, decidido não julgar inconstitucional a norma do art. 1842.º n. 1, al. a), do C. Civil, na medida em que limita a possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, sendo certo que outras decisões do mesmo Tribunal apontam no mesmo sentido.»
5. Suspende-se aqui a transcrição para dizer que, como é evidente, a norma do Código Civil a que o Douto Acórdão do STJ queria aludir quando sustentou que «a tese defendida pela recorrente só poderia ter sucesso se não houvesse qualquer limite, nomeadamente temporal, ao exercício do direito de instaurar a acção de investigação de paternidade» não podia ser a do artigo 1842.º, n.º 1 al. a) — que, como bem se diz aí, estabelece o prazo de impugnação da paternidade presumida por parte do marido da mãe [Destaques da ora recorrente] e nada tem, a ver com o caso sub iudice (como preclaramente salientou o Senhor Juiz Conselheiro que votou vencido) –, mas a do artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil (aplicável à investigação da paternidade ex vi do artigo 1873.º do Código Civil).
6. São bem diferentes, como é sabido, as duas situações e os meios processuais aplicáveis: investiga-se a paternidade para que esta venha a ser judicialmente reconhecida (quando não se ache estabelecida, nomeadamente quando se trate de filho não nascido, nem concebido, na constância do matrimónio da mãe); impugna-se a paternidade presumida do marido da mãe (ao tempo da concepção, do nascimento ou da concepção e do nascimento) para afastar essa paternidade (na impugnação normal, por ser «manifestamente improvável» — artigo 1839.º, n.º 2, do Código Civil), com o consequente cancelamento do respectivo registo (que poderá, então sim, abrir caminho para o estabelecimento da paternidade do suposto pai biológico, mediante perfilhação ou acção de investigação).
7. A despeito dessa invocação não muito feliz, o que se pretendeu no douto Acórdão do STJ foi aderir à posição reafirmada no mencionado acórdão do «tribunal ao qual compete administrar a justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional» (artigo 221.º da Constituição da República Portuguesa) relativamente à «prescritibilidade da acção de investigação de paternidade», consagrada no artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil (aplicável por força da remissão operada pelo artigo 1873.º do Código Civil).
8. Que assim foi resulta de a transcrição efectuada a fls. 13 (em particular, na parte final) e 14 do douto Acórdão do STJ se referir, precisamente, ao artigo 1817.º do Código Civil (na redacção anterior à que lhe foi dada pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril), a respeito do qual se salienta, nomeadamente,
ser « desproporcionada e violadora do direito à identidade pessoal ou à historicidade pessoal, a norma que impede a investigação de paternidade em função de um critério de prazos objectivos, quando os fundamentos para instaurar a acção surgem pela primeira vez em momento ulterior ao termo desses prazos» e que «tal norma consagra, nesses termos, uma efectiva negação da possibilidade de conhecimento da paternidade.
9. E de, a anteceder a decisão, se afirmar no douto Acórdão do STJ:
«Aderindo à doutrina consagrada nesta decisão do Tribunal Constitucional e alterando, consequentemente, a posição que vínhamos defendendo, entendemos, tendo em conta a factualidade assente, que, com o fundamento na imprescritibilidade da acção de investigação de paternidade, o recurso não pode proceder».
10. Conclui-se, pois, que a «prescritibilidade» da acção de investigação de paternidade, consagrada no artigo 1817.º, nº 1, do Código Civil, constituiu (também) razão de decidir no douto Acórdão do STJ, que, assim, fez aplicação de uma norma jurídica cuja inconstitucionalidade fora devidamente suscitada no processo pela ora recorrente.
11. Porém no preclaro voto de vencido, salientou-se e muito bem, que:
“o direito fundamental de conhecimento da ascendência biológica, por banda da investigante, é um direito pessoalíssimo e imprescritível.
Afigurando-se o prazo de caducidade a tal respeito estabelecido, qualquer que ele seja, uma restrição desproporcionada do direito à identidade pessoal violadora da Constituição da República Portuguesa – cfr. ainda, art. 290.º, n.º 2 deste mesmo diploma fundamental.
Por isso, não obstante o respeito devido à decisão proferida no T.C. em 19/10/2009 no respeitante ao prazo de impugnação de paternidade que aqui não está em causa – julgaria não ter caducado o direito da autora».
12. É certo que o Douto Acórdão do STJ, mediante remissão para o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 10), aplicou também (e em primeira linha) a norma do art. 19.º do Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966.
Todavia,
13. A ora recorrente não deixou de identificar essa norma como infringente dos preceitos constitucionais invocados e dos direitos neles consagrados (nomeadamente, do direito à identidade pessoal – artigo 26.º, n.º 1, da CRP).
14. Em especial, tal como já fizera nas alegações do recurso de revista para o STJ, a ora recorrente sustentou, inter alia:
14.1. A fls. 10 das suas alegações no recurso interposto para o Tribunal Constitucional, que
«[a] identidade pessoal tem uma dimensão absoluta e individual, tratando-se do direito à identidade, direito inalienável e absoluto, garantido pelos artigos 1.º, 2.º, 12.º, 13.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º n.º 1, 20.º, n.º 1 segmento inicial, 4 e 5, 25.º, n.º 1, 36.º, n.º 4 e 290.º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa» e que «[a]ssim, sempre será de defender a imprescritibilidade do direito de investigação da paternidade, pelo que será sempre inconstitucional toda e qualquer norma que estabeleça qualquer prazo de caducidade para a propositura da acção de investigação de paternidade»;
14.2. A fls. 11 das ditas alegações, que «[o] direito de conhecer as suas origens biológicas, que se insere no conteúdo do direito à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º da CRP, afasta e deverá sempre afastar os efeitos preclusivos da caducidade do direito de investigar e ver estabelecida, ou confirmada, afiliação biológica assente (…)»;
143. A fls. 22, das mencionadas alegações, que, nos termos do disposto no artigo 290.º, n.º 2, da CRP, «[o] direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário à Constituição e aos princípios nela consignados»;
14.4. A fls. 24 e 41 das mesmas alegações, que «[o] Tribunal da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça aplicaram indevidamente a legislação inconstitucional actualmente em vigor, ou por erro de interpretação, o artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 47344 (...)»;
14.5. E a fls. 38 das aludidas alegações, que «[o] Tribunal da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça (....) declararam extinto o direito da autora/recorrente a instaurar a presente acção de investigação da paternidade, por alegadamente ter caducado em 31 de Maio de 1968, nos termos previstos no artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de Novembro».
15. Ao afirmar que a aplicação do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966, se deve a um erro de interpretação» – o que, como é evidente, não compete ao Tribunal Constitucional apreciar –, a ora recorrente apenas quer significar que, no seu entendimento, esse não devia ter sido fundamento da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra e pelo Supremo Tribunal de Justiça.
16. Mas, tendo sido essa norma aplicada pelo Tribunal da Relação de Coimbra e pelo Supremo Tribunal de Justiça, como parâmetro de decisão, então ela foi «indevidamente aplicada» – esses Tribunais «aplicaram indevidamente (...) o artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 47344» –, em virtude de tal norma determinar a caducidade da acção de investigação da paternidade e de (como se diz a fls. 10) ser «inconstitucional toda e qualquer norma que esta estabeleça qualquer prazo de caducidade para a propositura da acção de investigação de paternidade».
17. Ou seja, a norma do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 47344 foi «indevidamente aplicada», exactamente, por ser contrária à Constituição e, como tal, inconstitucional.
18. E é assim nos termos do disposto no artigo 290.º, n.º 2, da CRP, uma vez que essa norma está contida numa lei ordinária anterior à Constituição de 1976 e, apesar da sua natureza transitória, foi aplicada pelo Tribunal da Relação de Coimbra e pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Assim, porque a individualização das normas que infringem a Constituição se acha feita com suficiente clareza, deve considerar-se cumprido o ónus de as indicar, que recai sobre a recorrente, também no que respeita à norma do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966, nada obstando, por isso, a que o Tribunal Constitucional conheça do presente recurso. [...]
II. Fundamentação
5. Não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar as opções contidas nas decisões dos tribunais quanto à escolha do direito aplicável. Assim, apesar de a recorrente considerar que seriam aplicáveis, em função do tempo, outras normas que não aquela que foi efectivamente aplicada, há que sublinhar que o Tribunal não pode pronunciar-se sobre a escolha da norma adoptada pelos tribunais, pois apenas lhe cabe averiguar se as normas, em concreto e efectivamente aplicadas, violam a Constituição.
Da parte acima transcrita do requerimento de interposição do recurso resulta, a qualquer luz, que a recorrente visa impugnar «a inconstitucionalidade do artigo 1817.º do Código Civil, quer na redacção (do DL. N.º 47.344, e da Lei n.º 21/98 de 12-05) anterior à Lei n.º 14/2009, de 01 de Abril, quer na redacção desta lei, ela também inconstitucional». São estas as duas normas às quais a recorrente imputa inconstitucionalidade. Ora, a norma efectivamente aplicada como ratio decidendi, quer na Relação de Coimbra, quer no Supremo Tribunal de Justiça foi a norma transitória constante do artigo 19.º do Decreto-lei n.º 47344/66, de 25 de Novembro, que veio dispor, quanto às acções de investigação da filiação o seguinte:
«o facto de se ter esgotado o período a que se refere o n.º 1 do artigo 1854.º não impede que as acções de investigação da maternidade ou paternidade ilegítima sejam propostas até 31 de Maio de 1968, desde que não tenha caducado antes, em face da legislação anterior, o direito de as propor».
O n.º 1 do artigo 1854.º, na primeira versão do Código Civil de 1967, tinha a seguinte redacção:
«A acção de investigação de maternidade ou paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua emancipação ou maioridade».
Todavia, o tribunal a quo não aplicou esta última norma, mas, directamente, a norma constante do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de Novembro, que determinava que o direito de investigação da filiação da autora havia caducado em 31 de Maio de 1968, conforme, aliás, acaba por reconhecer a recorrente na conclusão 12ª da sua alegação, ao afirmar:
12. É certo que o Douto Acórdão do STJ, mediante remissão para o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 10), aplicou também (e em primeira linha) a norma do art. 19.º do Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966.[...]
E a verdade é que ambos os tribunais sublinham ser essa a ratio decidendi da decisão de caducidade do direito de acção, afastando, expressamente, a aplicabilidade ao caso concreto do artigo 1817.º do Código Civil. Assim, afirma o Supremo Tribunal de Justiça:
«a norma que limitou, temporalmente, a possibilidade de a autora investigar a paternidade não foi a do citado nº 1 do art. 1817º, aplicada por força do art. 1873º, também do C.Civil, mas a norma constante do art. 19º do DL. nº 47.344, de 25 de Novembro de 1966»
A norma objecto do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC deve ser aquela que foi aplicada como ratio decidendi na decisão recorrida o que significa que, no aludido recurso, apenas é sindicável a norma mobilizada como razão de decidir e não qualquer outra. No presente caso, é manifesto que a disposição submetida ao juízo do Tribunal não foi efectivamente aplicada na decisão recorrida. Deve, assim, concluir-se que a recorrente definiu como objecto do seu recurso duas normas que o tribunal recorrido manifestamente não aplicou.
6. Termos em que se decide não conhecer do objecto do presente recurso. Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 12 (doze) unidades de conta.
Lisboa, 3 de Maio de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Rui Manuel Moura Ramos.