Imprimir acórdão
Processo n.º 626/2000 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO na comarca de Seia interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da norma constante da última parte do §
único do artigo 67º do Decreto n.º 44.623, de 10 de Outubro de 1962. Fá-lo, porque, na referida comarca, o Juiz, na sentença de 3 de Julho de 2000, que proferiu na sequência do julgamento a que foi submetido, em processo sumário, LR, acusado, além do mais, da prática de um crime de pesca em época de defeso e em zona de pesca reservada (previsto e punível pelos artigos 5º, 64º e
67º do referido Decreto n.º 44.623, de 10 de Outubro de 1962), recusou aplicação, por o julgar inconstitucional, à parte final do dito § único do mencionado artigo 67º, absolvendo o arguido da acusação.
Neste Tribunal, o PROCURADOR-GERAL ADJUNTO aqui em funções concluiu como segue a sua alegação:
1. Uma norma penal que estabeleça uma pena fixa é inconstitucional, por violação dos princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição), da proporcionalidade (artigo 18º, n.º 2, da Constituição) e da igualdade (artigo
13º da Constituição).
2. Podendo o juiz recorrer aos institutos de natureza geral existentes no Código Penal (designadamente, o da atenuação especial da pena e o de dispensa de pena), a pena prevista na parte final do parágrafo único do artigo 67º do Decreto n.º
44.623, de 10 de Outubro de 1962, apenas tendencialmente será fixa.
3. Dessa forma, e situando-se a norma no âmbito do direito penal da defesa do ambiente e de ecologia, ela não é inconstitucional, dado não violar qualquer dos princípios constitucionais mencionados na conclusão 1ª.
4. Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade da norma desaplicada.
O RECORRIDO não alegou.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. O caso dos autos: O arguido – recorda-se – foi acusado (entre o mais) da prática de um crime de pesca em época de defeso e em zona de pesca reservada (previsto e punível pelos artigos 5º, 64º e 67º do Decreto n.º 44.623, de 10 de Outubro de 1962).
Importa, então, reter o seguinte:
(a). o arguido LR, no dia 1 de Julho de 2000, foi surpreendido a pescar na Lagoa Comprida (serra da Estrela, concelho de Seia), tendo já pescado 15 trutas arco-íris e 2 bordalos, na altura em que foi encontrado;
(b). a Lagoa Comprida é zona de pesca reservada, criada como tal pela Portaria n.º 1.081/99, de 16 de Dezembro, ao abrigo do preceituado nas bases XXIX e XXXIII da Lei n.º 2.097, de 6 de Junho, e no artigo 5º do citado Decreto n.º
44.623;
(c). o arguido apenas possuía licença de pesca desportiva de âmbito nacional, e não licença de pesca desportiva válida para o concelho de Seia e licença especial diária para a zona de pesca reservada das lagoas da serra de Estrela, como exige o n.º 1 do Regulamento da Zona de Pesca Reservada das Lagoas da Serra da Estrela, anexo à citada Portaria n.º 1.081/99, de 16 de Dezembro;
(d). por força do que dispõe o n.º 3 do mencionado Regulamento, a pesca só pode ser praticada na Lagoa Comprida, em período situado entre 1 de Maio e 30 de Setembro, 'sendo estabelecidos por edital da Direcção-Geral das Florestas, dentro do referido período, os períodos de pesca para as diferentes espécies aquícolas';
(e). esse edital – prescreve o n.º 4 do mesmo Regulamento – deve definir, entre o mais, as espécies aquícolas que podem ser capturadas e os respectivos períodos de pesca;
(f). na data em que ocorreram os factos dos autos (1 de Julho de 2000), ainda não tinha sido afixado o edital a permitir a pesca na Lagoa Comprida.
Como ainda não tinha aberto a pesca na Lagoa Comprida, onde o arguido foi apanhado a pescar na data e condições indicadas, pois que ainda não tinha sido afixado o necessário edital, a sentença concluiu que ele se dedicava ao exercício da pesca em época de defeso e que o fazia numa zona de pesca reservada, por isso que concorria esta circunstância agravante: a de a pesca ter lugar em águas onde ela é reservada. Entendeu, assim, a sentença que, com a sua conduta, o arguido cometeu o crime de pesca em época de defeso, tipificado no artigo 64º do referido Decreto n.º
44.623, de 10 de Outubro de 1962 (alterado pelos Decretos nºs 312/70, de 6 de Julho, 315/71, de 13 de Fevereiro, Decreto Regulamentar n.º 18/86, de 20 de Maio, e Decreto Regulamentar n.º 11/89, de 27 de Abril) – diploma que foi editado para dar execução à mencionada Lei n.º 2.097, de 6 de Junho de 1959, que contém as Bases do Fomento Piscícola nas Águas Interiores –, uma vez que, nas zonas de pesca reservada, que são criadas por portaria (cf. artigo 5º do referido Decreto n.º 44.623), a pesca desportiva só é permitida nos termos dos respectivos regulamentos (cf. o parágrafo 2º do artigo 4º do mesmo Decreto n.º
44.623) – o que significa que, no caso, o arguido só podia pescar na Lagoa Comprida, depois de afixado o edital a abrir o período de pesca e possuindo as licenças atrás indicadas.
Ora – dispõe o artigo 64º do mesmo Decreto n.º 44.623 –, a pesca nas épocas de defeso constitui crime punível com pena de prisão de dez a quarenta dias e multa de 100$00 a 5.000$00.
Abre-se aqui um parêntesis para deixar nota de que – por força do que dispõe o assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/83, de 21 de Outubro (publicado no Diário da República, I série, de14 de Novembro de 1983) – o montante da multa foi, entretanto, actualizado pelos Decretos-Leis nºs 667/76, de 5 de Agosto e
131/82, de 23 de Abril.
O crime de pesca em época de defeso (previsto e punível pelo mencionado artigo
64º) – que, segundo a sentença, foi o que o arguido cometeu – é agravado, sendo-lhe, então, aplicável o máximo da pena prevista no artigo 64º, quando praticado, como no caso aconteceu, numa zona de pesca reservada: é o que preceitua o artigo 67º e seu parágrafo único do dito Decreto n.º 44.623. De facto, o artigo 67º e seu parágrafo único dispõem: Constitui circunstância agravante das infracções previstas e punidas pelos artigos 61º, 63º, 64º e 65º o facto de terem sido praticadas de noite ou em
águas onde a pesca for proibida, reservada ou objecto de concessão. Parágrafo único. Quando concorra qualquer destas agravantes, as penas previstas no artigo 61º nunca poderão ser inferiores a seis meses de prisão e a 5.000$00 de multa. Nos casos dos artigos 63º, 64º e 65º, serão aplicados os máximos das penas.
4. A norma sub iudicio: Foi, justamente, a parte final do parágrafo único do artigo 67º, acabado de transcrever – ou seja: o segmento dele que manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64º para o crime de pesca em época de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em zona de pesca reservada - que a sentença recorrida desaplicou, com fundamento em que nela se comina uma pena fixa, o que
– sublinha a mesma sentença – viola o princípio da culpa, por isso que é inconstitucional.
É, pois, a norma que consta da parte final do parágrafo único do mencionado artigo 67º que constitui objecto do presente recurso.
5. A questão de constitucionalidade:
5.1. Como este Tribunal sublinhou no acórdão n.º 83/95 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 30º, página 521), o direito penal, no Estado de Direito, tem de edificar-se sobre o homem como ser pessoal e livre – do homem que, sendo responsável pelos seus actos, é capaz de se decidir pelo Direito ou contra o Direito. Há-de ser, por isso, um direito penal ancorado na dignidade da pessoa humana, que tenha a culpa como fundamento e limite da pena, pois não é admissível pena sem culpa, nem em medida tal que exceda a da culpa. Ou seja: há-de ser um direito penal de culpa [cf. sobre isto, embora em termos não inteiramente coincidentes, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS ('Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime', in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, páginas 28 e seguintes) e JOSÉ DE SOUSA E BRITO ('A lei penal na Constituição', in Estudos sobre a Constituição, volume 2º, Lisboa, 1978, página 218)]. É um direito penal que só pode intervir para a protecção de bens jurídicos, mas de bens jurídicos com dignidade penal (é dizer: com ressonância ética), sendo que a danosidade social capaz de justificar a imposição de uma punição – como adverte EDUARDO CORREIA ('Estudos sobre a reforma do Direito Penal depois de 1974', in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 119º, página 6) – há-de ser ajuizada no plano ético-jurídico, e não num plano meramente sociológico. O direito penal, enquanto direito de protecção, cumpre, por isso, uma função de ultima ratio, pois só se justifica que intervenha, se a protecção dos bens jurídicos não puder ser assegurada com eficácia mediante o recurso a outras medidas de política social menos violentas e gravosas do que as sanções criminais [cf. também JORGE DE FIGUEIREDO DIAS ('O sistema sancionatório no Direito Penal Português', in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Eduardo Correia, I, Boletim da Faculdade de Direito, número especial, 1984, página 807) e JOSÉ DE SOUSA E BRITO (ob. e loc. cit.)]. A necessidade da pena – que, repete-se, há-de ser uma pena de culpa – limita, pois, o âmbito de intervenção do direito penal, sendo mesmo o critério decisivo dessa intervenção (cf. EDUARDO CORREIA, loc. cit.)
O legislador, que deve observar também um princípio de humanidade na previsão das penas (cf. artigo 25º, nºs 1 e 2, da Constituição), há-de ainda ter em conta que a ideia de necessidade da pena leva implicada a da sua adequação e proporcionalidade. Ou seja: na previsão das penas, deve ele procurar uma justa medida – uma adequada proporção – entre as penas e os factos a que elas se aplicam: a gravidade das penas deve ser proporcional à gravidade das infracções.
O Tribunal, quando teve que ajuizar uma norma penal à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, sublinhou sempre que o legislador goza de ampla liberdade na definição dos crimes e no estabelecimento das penas correspondentes. E sublinhou, bem assim, que, nessa matéria, ele só pode censurar, ratione constitutionis, as decisões legislativas que contenham incriminações arbitrárias ou punições excessivas: é que, no Estado de Direito, o legislador está vinculado por concepções de justiça; ora, o princípio de justiça impede-o de actuar arbitrariamente ou de forma excessiva [cf. neste sentido, entre outros, o citado acórdão n.º 83/95 e os acórdãos nºs 634/93 e 480/98
(publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 26º, página 205, e
40º, página 507) e 108/99 (publicado no Diário da República, II série, de 1 de Janeiro de 1999)].
Em síntese: como sublinha EDUARDO CORREIA (loc. cit.), 'o ponto de referência de um conceito material de crime supõe sempre que o agente seja merecedor da pena'. E esta ideia – sublinha o mesmo Autor – tem de ser conjugada com a ideia de necessidade social. E citando SAX, acrescenta: 'necessidade da pena como o caminho mais humano para proteger certos bens jurídicos. Merecedor da pena como qualidade de alguém que a deva sofrer'.
O que se disse resulta, aliás, entre outros, dos seguintes artigos da Constituição: do artigo 1º, que baseia a República na dignidade da pessoa humana; do artigo 18º, n.º 2, que condiciona a legitimidade das restrições de direitos à necessidade, adequação e proporcionalidade das mesmas; do artigo 25º, n.º 1, que sublinha a inviolabilidade da integridade pessoal; e do artigo 30º, n.º 1, que proíbe penas ou medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.
5.2. O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de um Estado de Direito, proíbe – já se disse – que se aplique pena sem culpa e, bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa. Trata-se de um princípio que emana da Constituição e que, na formulação de JOSÉ DE SOUSA E BRITO (loc. cit., página 199), se deduz da dignidade da pessoa humana, em que se baseia a República (artigo 1º da Constituição), e do direito de liberdade (artigo 27º, n.º 1); e, nos dizeres de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, vai buscar o seu fundamento axiológico 'ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de Direito democrático' (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, página 73).
Pois bem: um direito penal de culpa não é compatível com a existência de penas fixas: de facto, sendo a culpa não apenas princípio fundante da pena, mas também o seu limite, é em função dela (e, obviamente também, das exigências de prevenção) que, em cada caso, se há-de encontrar a medida concreta da pena, situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de comportamento. Ora, prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não pode, na determinação da pena a aplicar ao caso que lhe é submetido, atender ao grau de culpa do agente – é dizer: à intensidade do dolo ou da negligência.
A previsão pela lei de uma pena fixa também não permite que o juiz, na determinação concreta da medida da pena, leve em consideração o grau de ilicitude do facto, o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas consequências, nem tão-pouco o grau de violação dos deveres impostos ao agente, nem as circunstâncias do caso que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele. Ora, isto pode ter como consequência que o juiz se veja forçado a tratar de modo igual situações que só aparentemente são iguais, por, essencialmente, acabarem por ser muito diferentes. Ou seja: prevendo a lei uma pena fixa, o juiz não tem maneira de atender à diferença das várias situações que se lhe apresentam. Mas, o princípio da igualdade – que impõe se dê tratamento igual a situações essencialmente iguais e se trate diferentemente as que forem diferentes – também vincula o juiz.
A lei que prevê uma pena fixa pode também conduzir a que o juiz se veja forçado a aplicar uma pena excessiva para a gravidade da infracção, assim deixando de observar o princípio da proporcionalidade, que exige que a gravidade das sanções criminais seja proporcional à gravidade das infracções.
Por isso, a norma legal que preveja uma pena fixa viola o princípio da culpa, que enforma o direito penal, e o princípio da igualdade, que o juiz há-de observar na determinação da medida da pena. E pode violar também o princípio da proporcionalidade. E isto é assim, quer a pena que a norma prevê seja uma pena de prisão, quer seja uma pena de multa.
JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal Português cit., página 193), depois de dizer que decorre da Constituição que a determinação da pena exige cooperação –
'mas também, por outro lado, uma separação de tarefas e de responsabilidades tão nítida quanto possível – entre o legislador e o juiz', sublinha que 'uma responsabilização total do legislador pelas tarefas de determinação da pena conduziria à existência de penas fixas e, consequentemente, à violação do princípio da culpa e (eventualmente também) do princípio da igualdade'.
Este Tribunal, no seu acórdão n.º 202/2000 (publicado no Diário da República, II série, de 11 de Outubro de 2000), debruçou-se sobre a norma constante do artigo
31º, n.º 10, da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto – que mandava aplicar a pena fixa de interdição do direito de caçar por um período de cinco anos àquele que caçasse em zonas de regime cinegético especial em épocas de defeso ou com o emprego de meios não permitidos – e concluiu que a mesma era inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade. Escreveu-se aí: Deve, pois, reconhecer-se que a cominação, pela norma em análise, de uma pena fixa, de quantum legalmente determinado sem possibilidade de individualização de acordo com as circunstâncias do caso concreto, não se acha em conformidade com a exigência de que à desigualdade da situação concreta (do facto cometido e das suas 'circunstâncias') corresponda também uma diferenciação da sanção penal que lhe é aplicada, e que esta seja proporcional às circunstâncias relevantes de tal situação concreta. Os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade implicam, na verdade, o juízo de que a cominação de uma pena de interdição do direito de caçar invariável de cinco anos para o 'crime de caça' do artigo 31º, n.º 10, da Lei n.º 30/86 é materialmente inconstitucional.
5.3. Importa, então, saber se a norma sub iudicio prevê uma pena fixa, pois, tal sucedendo, ela é constitucionalmente ilegítima nos termos que se deixaram apontados.
5.3.1. Este Tribunal, no seu acórdão n.º 83/91 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 18º, páginas 493), apreciou, justamente, a norma constante da parte final do parágrafo único do artigo 67º do Decreto n.º 44.623, de 10 de Outubro de 1962, na parte em que determina que, no caso de pesca em período de defeso, quando concorra a circunstância agravante de o facto haver sido praticado de noite, deve ser aplicado o máximo da pena. Sublinhou-se nesse aresto que 'não se nega, em tese geral, que os princípios da igualdade e da proporcionalidade possam implicar o juízo de que a cominação de penas criminais fixas quanto a certo crime por uma concreta norma jurídica seja tida por materialmente inconstitucional'. Acrescentou-se que 'não se crê igualmente que destes princípios constitucionais tenha que decorrer necessariamente, de forma directa ou indirecta, a ilegitimidade constitucional de todas as chamadas penas fixas'. Mais adiante, o aresto ponderou que, 'no domínio do direito penal económico ou do direito penal de defesa do ambiente e da ecologia, pode aceitar-se, em casos pontuais e para certos tipos de infracções, a cominação de penas fixas, ainda que o juiz possa sempre recorrer aos meios gerais de suspensão da pena ou mesmo de dispensa da pena. Nessa medida, só tendencialmente as penas serão fixas'. Transcreve, a seguir, uma passagem de um estudo de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS ('Breves Considerações Sobre o Fundamento, o Sentido e a Aplicação das Penas em Direito Penal Económico', in Direito Penal Económico, CEJ, Coimbra, 1985, página 40), em que o Autor afirma que, 'em âmbitos determinados do direito penal económico', 'de acordo com a ideia de que a este direito não compete só uma função de protecção de bens jurídicos, mas também de promoção de valores económico-sociais no seio da comunidade', a lei pode, legitimamente, proibir o juiz de impor 'uma pena inferior ao limite mínimo ditado pela culpa', mas sem que essa proibição possa ir tão longe 'que impeça a proporcionalidade entre a pena e a infracção, quando esta seja de pequena gravidade', pois, de contrário, 'estaria a ultrapassar-se o limite máximo permitido pela culpa, em homenagem a razões de pura prevenção geral negativa ou de intimidação o que seria, além do mais, duplamente inconstitucional por irremissível violação do princípio da culpa, imposto pelos artigos 1º, 13º e 25º, n.º 1, da Constituição; e inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade das sanções no direito penal económico, reconhecido sem quaisquer limitações pelo artigo 88º da nossa Lei Fundamental'.
No dito aresto, acrescentou-se, a seguir a essa transcrição, o seguinte: Nesta linha de pensamento, não se crê que possa afirmar-se [...] que a cominação desta pena fixa concreta, quando surja uma circunstância agravante específica, viole intoleravelmente os princípios da culpa ou da proporcionalidade das sanções à gravidade das infracções.
Passando à justificação desta conclusão e começando por se encarar as coisas à luz do princípio da igualdade, escreveu-se no aresto: Por um lado, não pode falar-se, no caso sub iudicio, de violação do princípio da igualdade, na medida em que a norma desaplicada considera manifestamente um grau de culpa que normalmente se verifica no comum dos casos de pesca ilegal nocturnas nos períodos de defeso, sendo certo que acentuado. Seja como for, tal norma (ou outras normas do diploma) não impede, de forma absoluta, que o juiz adeqúe a sanção à gravidade da infracção, de harmonia com os ditames da justiça distributiva. E mais adiante: No presente processo, e de forma decisiva, há-de considerar-se [...] que 'só em via de princípio', ou seja, tendencialmente, se pode ter por fixa a cominação de penas prevista nesta legislação sobre fomento da piscicultura e da defesa da pesca nos rios, já que '(...) nada obsta a que no caso, desde que tal se justifique, se proceda à atenuação especial da pena (artigos 73º e 74º do Código Penal) ou mesmo à dispensa da pena (artigo 75º do mesmo Código). [..] Quer dizer, a norma sancionatória, devidamente interpretada no contexto sistemático do Código Penal, não conduz a resultados arbitrários, nem implica necessariamente uma igualdade de tratamento perante situações diversas de agentes com acentuadas diferenças de grau de culpabilidade. Na verdade, como se viu, não pode sustentar-se que a norma proíba de forma absoluta que o juiz estabeleça uma diferenciação na aplicação de sanções quanto a arguidos em situações materialmente diferentes, dando assim acolhimento à ideia de diversificação, em detrimento de uma ideia de tratamento uniforme, encarada, em princípio, pelo legislador.
A seguir, apreciando a norma à luz do princípio da proporcionalidade, ponderou o acórdão: Por outro lado, o estabelecimento de uma pena tendencialmente fixa nestes casos não pode considerar-se que viole o princípio da proporcionalidade, o qual postula, no Direito Penal, que a gravidade das sanções deve ser proporcional à gravidade das infracções. A melhor interpretação da norma desaplicada não acarreta um resultado que possa qualificar-se como manifesta violação do princípio da proporcionalidade, visto que o juiz dispõe sempre, como se viu, da possibilidade de recorrer a institutos de natureza geral como o de atenuação especial da pena e o da dispensa de pena, evitando que se atinjam, em concreto, resultados intoleráveis ou gravemente chocantes, 'em homenagem a razões de pura prevenção geral negativa ou de intimidação', para se utilizarem as expressões de Figueiredo Dias, no passo atrás transcrito. Acresce que a pena cominada para o comum dos casos se afigura como razoavelmente proporcionada ao conjunto de comportamentos recondutíveis a este específico tipo criminal, no comum dos casos da vida, não tendo este Tribunal razões para censurar a opção do legislador neste caso concreto. Reafirma-se, assim, que tal pena tendencialmente fixa não ofende o princípio da proporcionalidade da sanção à gravidade da infracção, isto dando por adquirido que a eliminação do antigo artigo 88º da Constituição na segunda revisão constitucional, em 1989, não traduziu uma diferente valoração do legislador constitucional sobre os princípios básicos do Direito Penal, em especial do Direito Penal Económico [...].
Por fim, olhando a norma então sub iudicio sob a perspectiva do princípio da culpa, o aresto acrescentou: Por último, também para aqueles que sustentam que está constitucionalmente consagrado o princípio da culpa em matéria penal, tão-pouco se pode dizer que a cominação de penas fixas, com o sentido de tendencial fixidez atrás exposto, possa conduzir a uma 'irremissível violação do princípio da culpa', de novo se utilizando a expressão de Figueiredo Dias, atrás transcrita. É que, já se viu, continua a reconhecer-se ao juiz uma apreciável intervenção na adequação da sanção ao agente, em função dos resultados apurados no julgamento, admitindo-se que seja determinada uma atenuação especial da pena ou, até, a dispensa de pena. O juiz não está limitado a condenar ou a absolver o arguido. No caso de ter de condenar, não tem necessariamente de lhe aplicar uma sanção rigidamente fixa, como mero efeito da lei. [...] Se é verdade que, em linha de princípio, se deve preferir um sistema de mobilidade das penas cominadas para cada tipo criminal, entre um mínimo e um máximo fixados na lei, de forma a que o juiz possa graduar a pena à gravidade da infracção e à culpabilidade do agente, não se pode dizer que o estabelecimento de uma pena tendencialmente fixa prive de todo em todo o juiz de levar em conta a individualidade concreta do agente e as específicas circunstâncias de cada caso, como atrás se viu Também aqui se pode dizer que não
é violado o princípio da culpa, dando como suposto que o mesmo tem consagração constitucional. Tudo isto para concluir que não se mostram, assim, violados pela norma em análise os princípios constitucionais de igualdade e de proporcionalidade das sanções criminais.
O Tribunal retomou a doutrina deste acórdão n.º 83/91, aplicando-a no caso sobre que incidiu o acórdão n.º 441/93 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 25º, página 643). Estava aí em causa uma contraordenação
[prevista e punível pelo artigo 14º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º
357/87, de 17 de Novembro], consistente na construção de um muro em blocos de cimento e na pavimentação de um terreno, dentro dos limites da Área de Paisagem Protegida do Litoral de Esposende, sem previamente se ter obtido a necessária autorização do director daquela Área. Escreveu-se então: E na eventualidade de se vir a alcançar com tal operação redutora uma coima de montante não variável, dir-se-á, na linha de fundamentação desenvolvida no acórdão n.º 83/91, Diário da República, II série, de 30 de Agosto de 1991, para o qual agora se remete, que dos princípios constitucionais da justiça, da igualdade e proporcionalidade 'não decorre necessariamente, de forma directa ou indirecta, a ilegitimidade constitucional de todas as chamadas penas fixas', não existindo assim um obstáculo constitucional a uma sanção contraordenacional dessa natureza.
Posteriormente, o Tribunal, em Plenário, no acórdão n.º 175/97 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 36º páginas 103), confrontado com uma situação em que o limite mínimo de uma coima passou a ser igual ao seu limite máximo (ou seja, em que a coima passou a ser de montante fixo), recordou a doutrina dos acórdãos nºs 83/91 e 441/93, e citou a passagem que acabou de transcrever-se. Fê-lo, no entanto, não já para se louvar nessa doutrina, mas tão-somente para deixar em aberto a questão de saber se é (ou não) constitucionalmente admissível a fixação pela lei de coimas de montante fixo. Escreveu-se aí, a esse propósito, o seguinte: Só que, mesmo sem se questionar uma tal jurisprudência – questão que aqui se deixa em aberto –, a verdade é que, in casu, a possibilidade de aplicação de uma sanção não variável implicaria uma frontal contradição com a vontade expressa do legislador no artigo 30º da Lei n.º 30/89, onde se estabelecem os critérios para a graduação e determinação, em concreto, dos montantes das coimas.
Pode dizer-se, em síntese, que o citado acórdão n.º 83/91 concluiu que a norma, que está sub iudicio nestes autos, não viola o princípio da igualdade, nem o da proporcionalidade, nem o da culpa – e, por isso, não é inconstitucional –, porque, não proibindo o juiz de lançar mão do instituto da atenuação especial da pena ou, sendo caso disso, mesmo do da isenção de pena, o que, ao cabo e ao resto, a norma em causa comina é uma pena tendencialmente fixa. Não uma pena rigidamente fixa. Ora – pondera o aresto –, só este último tipo de pena fixa a Constituição proíbe. Ou seja, ela só proíbe que a lei preveja penas que, no caso de se provar que 'o arguido agiu ilícita e culposamente, isto é, que é imputável e que não se verifica nenhuma causa de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade', o juiz tenha que aplicar rigidamente, sem poder fazer outra coisa senão absolver ou condenar o arguido, pois, 'devendo condená-lo, terá de lhe aplicar a pena prevista na lei, sem possibilidade de qualquer graduação'. A Constituição – sublinha o acórdão – não proíbe as penas só tendencialmente fixas, ou seja, aquelas que o juiz, em princípio, não pode graduar, mas em que pode 'recorrer a institutos de carácter geral, como os da atenuação especial da pena ou da dispensa da pena, para adequar a sanção à personalidade do agente e
às circunstâncias apuradas quanto à infracção'.
5.3.2. Pois bem: flui do que se disse atrás (supra, 5.1 e 5.2.) que a proibição constitucional de penas fixas acarreta a ilegitimidade de todas as penas fixas: mesmo daquelas a que o acórdão n.º 83/91 chama penas só tendencialmente fixas.
Decorre, na verdade, dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade a necessidade de a lei prever penas variáveis: é que, só desse modo o legislador abre ao juiz a possibilidade de graduar a pena, fixando-a entre o mínimo e o máximo que a lei prevê, de acordo com todas as circunstâncias atendíveis (grau de culpa, necessidades de prevenção e demais circunstâncias), por forma a punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são, em si mesmas, diferentes, e de modo também a evitar o risco de aplicar penas desproporcionadas às infracções cometidas, tendo em consideração todo o quadro que envolveu a prática de cada uma delas. Ou seja: só prevendo o legislador penas variáveis, pode o juiz adequar a pena à culpa do agente, às exigências de prevenção e, bem assim, às demais circunstâncias que ele deve considerar para encontrar, em concreto, a pena ajustada a cada caso. Esse resultado não o pode, com efeito, o juiz atingir, lançando mão do instituto da atenuação especial da pena ou, sendo o caso, do da dispensa de pena, a que faz apelo o acórdão n.º 83/91 para ver consagrada, na norma sub iudicio, uma pena que, tão-só tendencialmente, é uma pena fixa, e não uma pena rigidamente fixa: é que, desde logo, a atenuação especial da pena pressupõe que a pena (de prisão ou de multa) aplicável ao caso seja variável (cf. o artigo 73º do Código Penal); e, depois, supõe a ocorrência de um quadro de circunstâncias com valor fortemente atenuativo ('quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou necessidade da pena', diz o n.º 1 do artigo 72º do mesmo Código). E, quanto à dispensa de pena, também só pode recorrer-se a ela, quando, estando em causa uma infracção de pequena gravidade
(recte, uma infracção punível com prisão não superior a seis meses, ou só com multa não superior a cento e vinte dias), o juiz verificar que são 'diminutas'
'a ilicitude do facto e a culpa do agente'; que o 'dano' já foi 'reparado'; e que 'à dispensa de pena' se não opõem 'razões de prevenção' (cf. o artigo 74º do mesmo Código).
Estes mecanismos são, de facto inaptos para – como se escreveu no citado acórdão n.º 202/2000, a propósito da atenuação especial da pena – 'dar conta da necessária adequação da pena em concreto às circunstâncias a considerar – à culpa do agente e às necessidades de prevenção'.
Recorrendo, de novo, aos dizeres do acórdão n.º 202/2000: Não pode aceitar-se o argumento de que, interpretando a norma em causa como prevendo uma pena apenas 'tendencialmente fixa' ela não viola o princípio da igualdade e da proporcionalidade, do qual decorre que a gravidade das penas (e das medidas de segurança) há-de ser proporcional à gravidade das infracções, encaradas sob o ponto de vista, respectivamente, da culpa e das necessidades de prevenção geral (e, para aquelas medidas, da prevenção especial, perante a perigosidade do agente).
E, mais adiante, ponderou ainda o mesmo acórdão n.º 202/2000: A admissão de que o recurso a estas possibilidades, previstas na lei geral – de atenuação especial da pena e de dispensa de pena –, bastaria para permitir a graduação, no caso concreto, de uma pena prevista na lei como de duração fixa, assim a tornando proporcional às circunstâncias deste, se coerentemente seguida, conduziria, aliás, à conclusão da desnecessidade de previsão de quaisquer molduras penais abstractas, satisfazendo-se as exigências constitucionais da igualdade e da proporcionalidade através daqueles institutos gerais.
5.4. Conclusão: A norma constante da parte final do § único do artigo 67º do Decreto n.º 44.623, de10 de Outubro de 1962, aqui sub iudicio – ou seja: o segmento dele que manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64º para o crime de pesca em época de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em zona de pesca reservada – é, pois, inconstitucional: ela viola os princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). julgar inconstitucional – por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade – a norma constante da parte final do
§ único do artigo 67º do Decreto n.º 44.623, de10 de Outubro de 1962 (ou seja: o segmento dele que manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64º para o crime de pesca em época de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em zona de pesca reservada);
(b). em consequência, confirmar a sentença recorrida quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 13 de Março de 2001 Messias Bento Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa ( revendo a posição assumida em anteriores acórdãos, como o citado nº 83/91) Luís Nunes de Almeida