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Processo n.º 231/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
No dia 23 de Janeiro de 2011 A., após ter sido detido pela PSP por ter sido detectado a conduzir veículo automóvel com uma TAS de 1,33g/l, foi colocado em liberdade e notificado para comparecer perante Magistrado do Ministério Público no dia 24 de Janeiro de 2011.
Após se ter apresentado perante Magistrado do Ministério Público, este, por despacho proferido nessa data, determinou a suspensão provisória do processo pelo período de 8 meses, nos termos dos artigos 281.º e 282.º, do Código de Processo Penal, mediante a imposição de várias injunções, tendo determinado a remessa dos autos ao Juiz de Instrução Criminal para apreciação da decisão, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 384.º, n.º 2, e 281.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
O Juiz de Instrução Criminal proferiu a seguinte decisão:
“Nos termos do art. 79º da lei orgânica compete aos Tribunais de Instrução Criminal - Tribunal de competência especializada -, proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito.
Por sua vez dispõe o art. 102º, nº 1, do mesmo diploma legal, que compete aos juízos de pequena instância criminal - Tribunais de competência específica -, preparar e julgar as causas a que corresponda a forma de processo sumário, abreviado e sumaríssimo.
Compulsada a lei nº 26/2010 de 30 de Agosto, designadamente o seu art. 4º, verifica-se que as disposições legais supra citadas não foram revogadas, tendo as mesmas, por outro lado, atento o disposto no art. 18º, nº 2 da LOFT, e 211º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, uma relação de especialidade.
Tão pouco se mostra revogado ou alterado o disposto no art. 10º e 17º do CPP (compete ao JIC exercer as funções judiciais até à remessa do processo para julgamento).
E isto porque, compulsados os autos, e atento o disposto nos arts. 381º a 384º do CPP, não podem os mesmos deixar de se considerar autos remetidos para julgamento em processo sumário. Assim se pode firmar que, como tal, só podem ser preparados pelo TPIC. É matéria de sua competência (e específica) - preparar e julgar as causa a que corresponda a forma de processo sumário como referido.
Não sendo os presentes autos de inquérito, como o não são, face ao disposto nos arts. 381º, nº 1 (são julgados em processo sumário), 382º, nº 1 e 4 (o detido é apresentado junto do tribunal competente para o julgamento), e 383º, nº 1 (para comparecerem para julgamento), nem há que confundir julgamento, fase, e julgamento, audiência, e porque não se trata de nenhum dos casos previstos no art. 390º do CPP, não pode o JIC conhecer da matéria em questão.
E se o arguido é apresentado para julgamento em processo sumário nos termos das normas legais citadas, qual é então o juiz a pronunciar-se nos termos estabelecidos pela norma do nº 1, in fine, do art. 384º do CPP,
e de que o nº 2 é conexo e subsequente-
Esta matéria reservada à função jurisdicional não pode deixar de se enquadrar no âmbito de “preparar e julgar causa a que corresponda a forma de processo sumário”. Ou seja, da exclusiva competência do juiz de julgamento do processo sumário. Sobre tal matéria já a Relação de Lisboa tomou posição, Ac’s de 19.06.07 e de 12.09.07, CJ-XXXII, T. III, pág. 139 e T. IV, pág. 133.
E na verdade, as injunções ou regras de conduta, do ponto de vista penal substantivo não deixam de ser uma sanção de índole especial penal a que não está ligada a censura ético-jurídica da pena nem a correspondente comprovação da culpa.
Nem o nº 2 do art. 384º do mesmo diploma legal faz converter os autos de processo sumário em autos sob a forma de processo comum. O próprio normativo impõe a forma de processo sumário, como também a norma do seu nº 3 o faz remeter, nos acasos aí previstos, para a forma de processo abreviado. Ou seja, tudo dentro da competência material (específica) do Tribunal de Pequena Instância Criminal especificada na lei de organização e funcionamento dos tribunais. Lei que não é revogada pela lei nova e que para si tem uma relação de especialidade.
O que se verifica no actual nº 2 do art. 384 do CPP é um lapso de escrita, facilmente determinável, até pelo demais escrito na própria alínea, como até da anterior.
A interpretação da lei não pode, nem deve, cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo a partir dos textos, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, nº 1 do art. 9º do CC.
Não sendo assim os presentes autos de inquérito, mas processo sob a forma de processo sumário, não pode o JIC conhecer nele da suspensão provisória do processo requerida por se tratar de matéria que está fora da sua competência, referidos art. 79º e e ainda nesta caso, 102º, nº 1, ambos da lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais, e art. 17º do CPP uma vez que os autos se encontram formalmente remetidos para julgamento.
Não sendo os presentes autos de inquérito, também não se trata de nenhum dos casos do art. 390º do CPP, e até porque em caso de não concordância segue a forma de processo sumário e no caso de incumprimento seguirá a forma de processo abreviado, não pode o JIC conhecer da matéria em questão porquanto fora da área da sua competência especializada.
O próprio normativo, como se vê, impõe sempre a forma de processo de exclusiva competência específica do TPIC como já supra referido e se reafirma.
Admitir o contrário seria admitir, e pasme-se, que em fase de julgamento o próprio juiz – o nº 1 do art. 384º do CPP fala “por iniciativa do tribunal ou... requerimento do arguido” -, pudesse remeter os autos ao JIC, isto é, para fase de inquérito e sob a forma aparente de processo comum, quando os autos se encontram em fase de julgamento, violando o art. 17º do CP, e quando ainda a final o próprio legislador não o faz: é que, nos termos do disposto no nº 2, na falta de concordância, fá-lo prosseguir em julgamento na mesma forma de processo (sumário), e nos termos do nº 3 da citada disposição legal, quando no incumprimento das regras, na forma de processo abreviado. O que é, salvo o devido respeito, totalmente incongruente e sem qualquer grau de lógica.
Constituiria até um desaforamento, citado art. 18º, nº 2 e 102º da LOFT e 211º, nº 2 da CRP, e uma definição individualizada que, como tal ofende o princípio do juiz natural, art. 32º, nº 9 da CRP – o que importa essencialmente não é a competência individualizada de um determinado tribunal para o caso concreto, ... mas tão só que em razão daquela causa ou de categorias de causas a que ela pertence sejam criados «post factum» tribunais de excepção ou a definição individualizada da competência, o desaforamento ou a nomeação dos juízes por forma discricionária – Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, T. I, pág. 363.
Na verdade, o arguido, nos termos dos arts. 381º a 383º do CPP é apresentado para julgamento sob a forma de processo sumário, sendo, portanto, este o juiz natural – as normas, tanto orgânicas como processuais, têm de conter regras que permitam determinar o tribunal que há-de intervir em cada caso em atenção a critérios objectivos..., Ob. cit., pág. 362 (sublinhado nosso).
A questão sub judice cai, e está, dentro do âmbito da norma do art. 102º referido que regula a matéria específica da competência do TPIC, e que é de preparar as causas a que corresponda a forma de processo sumário.
Pelo que introduzir no meio pela lei adjectiva, diria, de forma arbitrária, a competência de um JIC para uma questão processual específica, constitui uma posterior definição individualizada à competência constitucional e organicamente definida a um tribunal de competência específica.
Não pode ser concebível, nem pode ser esse o pensamento do legislador, que o simples requerimento do arguido de suspensão provisória do processo retire a causa da competência do juiz de julgamento, continuando os autos em fase de julgamento. E continuando em fase de julgamento, referidos arts. 382º e 383º, fosse a decisão da competência do JIC.
As injunções e regras de conduta não assumindo a natureza jurídica de verdadeiras penas, são seus equivalentes funcionais - Manuel de Andrade, Consenso e Oportunidade, Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ, pág. 353.
Do ponto de vista do direito penal substantivo trata-se de uma sanção de índole especial penal.
Em suma: seria violar o disposto nos arts. 10º e 17º do CPP, 18º, nº 2, 79º e 102º da LOFT, e uma definição individualizada que, como tal, violadora do princípio do juiz natural e, assim, inconstitucional, nº 2 do art. 211º e 32º, nº 9 da CRP.
O que em consonância se decide pela inconstitucionalidade da norma do nº 2 do art. 384º do CPP na sua leitura literal para a competência deste tribunal conhecer da questão sub judice por violação dos art. 211º, nº 2 e 32º, nº 9 da CRP.”
Deste despacho recorreu o Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, nos seguintes termos:
“Com efeito a decisão recorrida, que pôs termo ao processo, recusou aplicar a norma prevista no art. 384 nº 2 C.P.P., na redacção introduzida pela Lei nº 26/2010 de 30.08, quando interpretada no seu sentido literal, ou seja, que é o Juiz de Instrução o competente para dar a concordância à suspensão provisória do processo, nos casos em que o arguido é antes apresentado para julgamento em processo sumário.
Entendendo que o juiz competente para tal acto é o Juiz do julgamento do processo sumário, posição aliás com que se concorda e a cuja argumentação aderimos e por isso se dá aqui como reproduzida para todos os efeitos legais.
Concretamente, que a menção contida no nº 2 do referido preceito ao “Juiz de Instrução” se deveu a um lapso de escrita do legislador, até porque o nº 1 do mesmo preceito se refere tão só ao “Juiz”(embora esta não seja a questão de fundo no que respeita á inconstitucionalidade suscitada pelo Mº Juiz de Instrução).
O despacho recorrido pôs termo ao processo, e ainda porque está em tempo (art. 75 nº 1 da Lei nº 28/82 de 15.11) e o Mº Público tem legitimidade, requer-se a v. Exª se digne admitir o presente recurso nos termos e para todos os efeitos legais.”
Apresentou alegações com as seguintes conclusões:
1. Pela interpretação dos preceitos de direito ordinário, o Senhor Juiz de Instrução Criminal concluiu que não era competente para proferir o despacho a que alude o artigo 384º, nºs 1e 2 do CPP.
2. Surgindo a inconstitucionalidade apenas como reforço de argumentação ou elemento adicional de interpretação, não se verifica o requisito de admissibilidade do recurso interposto pelo Ministério Público ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, não devendo, pois, conhecer-se do seu objecto.
3. Tendo a iniciativa de suspender provisoriamente o processo, partido do Ministério Público logo que o arguido se apresentou para ser julgado em processo sumário, a norma do nº 2 do artigo 384º do CPP, na redacção dada pela Lei nº 26/2010, de 30 de Agosto, enquanto determina que é o juiz de instrução o competente para concordar ou discordar daquela decisão do Ministério Público (artigo 281, nº 1, do CPP), não viola o princípio do juiz natural, consagrado no artigo 32º, nº 9, da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.
4. Termos em que, a conhecer-se do recurso, deverá o mesmo ser julgado procedente.
Da admissibilidade do recurso
O próprio Recorrente, nas alegações apresentadas no Tribunal Constitucional, questiona a admissibilidade do presente recurso, pondo em causa que tenha existido uma recusa de aplicação de norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
Da leitura da decisão recorrida constata-se que esta, na primeira parte da sua fundamentação, por recurso a argumentos extraídos do direito infra-constitucional, concluiu que a referência ao juiz de instrução criminal no artigo 384.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, só poderia ter resultado de um lapso de escrita do legislador, pelo que deveria interpretar-se tal preceito como se referindo ao juiz do julgamento.
Numa segunda parte, a decisão recorrida sustenta a ideia que, se por hipótese, se efectuasse uma leitura literal desse preceito, o mesmo, afrontaria a Constituição, para daí extrair o argumento que o legislador nunca poderia ter desejado essa solução, pelo que tal leitura não era possível.
O apontamento duma violação à Constituição não surge, pois, como fundamento da recusa de aplicação de qualquer norma, mas sim como argumento de apoio a uma determinada interpretação infra-constitucional que se perfilha, ao acusar-se de inconstitucionalidade uma hipotética interpretação que a contrariasse.
A inconstitucionalidade declarada no despacho recorrido não foi, pois, o fundamento da decisão de incompetência que lhe está subjacente, o qual residiu na leitura de que a menção ao juiz de instrução criminal constante do artigo 384.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, resultou de um lapso de escrita do legislador, pelo que não revela qualquer utilidade o conhecimento do recurso interposto.
Assim, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade na fiscalização concreta, não deve ser conhecido o recurso interposto pelo Ministério Público.
Decisão
Pelo exposto não se conhece do recurso interposto pelo Ministério Público do despacho proferido nestes autos em 2 de Fevereiro de 2011.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Julho de 2011. – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.