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Proc. nº 570/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal do Trabalho do Porto, M intentou contra o Estado Português acção declarativa de condenação, emergente de contrato individual de trabalho, com processo sumário, pedindo que fosse declarado ilícito o despedimento da autora das funções de empregada de limpeza no Tribunal Cível, com a consequente reintegração no seu posto de trabalho. Alegou que iniciou a sua actividade por conta e sob as ordens e direcção do réu, no Palácio da Justiça, em 10 de Julho de 1989, e que o réu fez cessar o seu contrato de trabalho, a partir de 1 de Junho de 1995, por declaração unilateral, através de carta datada de 27 de Junho de 1995.
Tendo a acção sido julgada improcedente (sentença de 26 de Novembro de 1999, a fls. 55 e seguintes), foi pela autora interposto recurso de apelação.
Nas suas alegações, a autora invocou a violação dos princípios consagrados nos artigos 13º e 53º da Constituição da República Portuguesa.
Por sua vez, nas contra-alegações, o Ministério Público, como representante do Estado, afirmou que 'a peticionada reintegração da Recorrente na mesma situação contratual anterior à cessação do contrato em causa, que a própria considera como «situação irregular», a ser concedida, violará o princípio da igualdade de condições no acesso à Função Pública, constitucionalmente consagrado no art. 47º nº 2 da C.R.P.' (conclusão 6ª, a fls.
81).
Por acórdão de 26 de Junho de 2000 (fls. 90 a 93), o Tribunal da Relação do Porto concedeu provimento ao recurso, julgando ilícito o despedimento da autora e condenando o Estado Português a reintegrar a autora no seu posto de trabalho.
2. Deste acórdão foi interposto pelo Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, nº 1, alíneas a) e b), da Lei nº 28/82, nos seguintes termos:
'1) no mesmo [no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de fls. 90 a 93] foi, implicitamente, recusada a aplicação do regime estabelecido nas normas dos artigos 5º e 7º, do Dec. Lei nº 184/89, de 2 de Junho, e 3º, 14º e 43º, do Dec. Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro, com reporte ao artigo 294º, do Código Civil, as quais consagram o princípio da taxatividade das formas de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública que, em sede de instrumentos jurídicos regidos pelo direito privado, apenas admite a celebração de contrato de trabalho a termo certo – com exclusão, designadamente, da celebração de contratos de trabalho sem prazo. Ora, para o acórdão recorrido, aplicar aquele regime, traduzir-se-ia numa violação do princípio consagrado no artigo 53º, da Constituição (princípio da segurança no emprego, com proibição de despedimentos sem justa causa) – (fls.
92).
2) Por outro lado, foi suscitada pelo Ministério Público – em representação do réu Estado –, nas suas contra-alegações (fls. 81, nºs 6 e 7), a inconstitucionalidade da aplicação do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Dec. Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, nomeadamente, do seu artigo 13º, nº 1, alínea b) – (reintegração) –, aos contratos de trabalho celebrados pelo Estado, por violação do princípio da igualdade de condições no acesso à Função Pública, estabelecido no artigo 47º, nº 2, da Constituição. Para o acórdão impugnado – que aplicou os referidos regime e artigo – o artigo
1º, que define o âmbito de aplicação do referido Regime, não exclui os contratos de trabalho celebrados pelo Estado, e essa aplicação não viola aquele princípio, pois, entende, expressamente, que o artigo 47º, nº 2, da Constituição, não impede outras vias de acesso à função pública que não o concurso e, designadamente, que esse acesso decorra de contratos de trabalho, sem prazo, embora irregulares (fls. 93).
[...].'
O recurso foi admitido por despacho de fls. 98.
3. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público respondeu assim ao despacho de aperfeiçoamento de fls. 99 e 99 vº, proferido pela relatora ao abrigo do artigo 75º-A, nº 6, da LTC:
'1º - O recurso deve considerar-se interposto ao abrigo do disposto no artigo
70º, nº 1, alínea g) da Lei nº 28/82.
2º - Fundando-se na aplicação implícita, à dirimição do caso dos autos, da norma constante do artigo 14º, nº 3 do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro, interpretada em termos de os contratos de trabalho a termo celebrados pelo Estado se converterem em contratos de trabalho sem termo, uma vez ultrapassado o limite máximo de duração total fixado na lei geral sobre contratos de trabalho a termo.
3º - A aplicação implícita de tal norma (aliás, expressamente invocada, a fls.
91), é patente face à argumentação jurídica, expendida no acórdão recorrido, segundo a qual à relação laboral privada, constituída «irregularmente» pelo Estado, é plenamente aplicável o regime previsto na lei geral sobre contrato individual de trabalho, conduzindo à consolidação daquela relação laboral, precária e irregular, e à consequente impossibilidade jurídica de lhe pôr termo, sem invocação de justa causa e do respectivo processo disciplinar.
4º - Tal interpretação normativa já foi julgada inconstitucional, por violação do artigo 47º, nº 2 da Constituição, pelo Plenário deste Tribunal, através do acórdão nº 683/99, de 21 de Dezembro de 1999, que transitou em julgado muito antes de ter sido proferida a decisão recorrida (e estando actualmente tal interpretação normativa já declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, por força do decidido no acórdão nº 368/2000).
5º - Estando, pois, preenchido o requisito da «anterioridade», constante da referida alínea g).
6º - Subsidiariamente – e apenas para o caso de se dissentir da invocada aplicação implícita da norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional – funda-se também o presente recurso na alínea a) do nº
1 daquele artigo 70º, como decorre do requerimento de interposição, já que o Tribunal «a quo» – ao determinar a reintegração da autora – recusou implicitamente aplicar ao caso dos autos as normas constantes dos artigos 5º, 7º e 9º do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, e dos artigos 3º, 14º, 18º e 43º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro, enquanto prescrevem a taxatividade das formas de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública e o carácter estritamente taxativo, residual e excepcional dos contratos de trabalho a prazo, celebrados com o Estado e outras pessoas colectivas públicas, estruturalmente inconvertíveis em relação laboral definitiva, como decorrência do princípio do acesso à função pública mediante concurso – que considerou colidente com a garantia constitucional da segurança do emprego, consagrado no artigo 53º da Constituição da República Portuguesa – e coincidindo, nesta perspectiva ou enquadramento, o caso dos autos com o que foi recentemente decidido no acórdão nº 434/2000, da 2ª Secção.'
4. Proferido despacho para a produção de alegações, o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
'1ª – A decisão recorrida, ao considerar válida e eficaz a celebração de um contrato de trabalho com a Administração Pública fora dos pressupostos previstos no artigo 14º do Decreto-Lei nº 427/89 – convertendo-o em relação laboral permanente, extravazando o prazo máximo permitido pela lei geral que institui a disciplina dos contratos a prazo –, fez aplicação ao caso dos autos da norma constante do artigo 14º, nº 3 do Decreto-Lei nº 427/89, já julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional através do acórdão nº 683/99.
2ª – Quando assim se não entenda – por se considerar que a situação dos autores não coincide, do ponto de vista jurídico, estritamente com a dirimida por aquele aresto – verifica-se – numa outra perspectiva de análise da decisão recorrida – que a mesma recusou implicitamente aplicar as normas constantes dos Decretos-Leis nºs 184/89 e 427/89 que – de forma expressa, clara e inquestionável, prescrevem que:
- vigora um princípio de estrita taxatividade das formas de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública:
- apenas é consentida a celebração de contratos a termo certo, com carácter excepcional, transitório e residual;
- está postergada a constituição de relações laborais de duração indefinida, quer por originária espitulação das partes, quer como decorrência de uma renovação em prorrogação ilegal de contratos originariamente celebrados a termo certo;
- tais regras têm carácter imperativo, obstando à válida celebração e eficácia de outros contratos de trabalho, que não os legalmente tipificados.
3ª – Tal recusa implícita de aplicação fundou-se, por outro lado, num juízo de inconstitucionalidade – a alegada colisão com o estipulado no artigo
53º da Constituição da República Portuguesa – do regime legal que implica a imperativa proibição de celebração (ou renovação) de contratos que não sejam a termo certo, dentro dos parâmetros previstos no artigo 18º do Decreto-Lei nº
427/89.
4ª – Tal «bloco normativo» não padece, porém, da invocada inconstitucionalidade, já que o regime nele consignado é plenamente compatível com o princípio constitucional da igualdade e visa, em última análise, efectivar o princípio constitucional da regra do concurso como forma de acesso à função pública.
5ª – Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando-se a consequente reforma da decisão recorrida.'
A recorrida M não contra-alegou.
5. Por considerar que não estão verificados os pressupostos processuais do recurso interposto, a relatora determinou a notificação às partes do seguinte parecer, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil:
'Tal como delimitado pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, na resposta ao despacho de aperfeiçoamento de fls.
99 e 99 vº, o presente recurso funda-se, primariamente, no artigo 70º, nº 1, alínea g), da Lei do Tribunal Constitucional e tem por objecto a norma constante do nº 3 do artigo 14º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro, interpretada no sentido de «os contratos de trabalho a termo celebrados pelo Estado se converterem em contratos de trabalho sem termo, uma vez ultrapassado o limite máximo de duração fixado na lei geral sobre contratos de trabalho a termo» – norma já antes julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional e que, na sua perspectiva, teria sido aplicada implicitamente na decisão recorrida.
No acórdão nº 683/99, tirado em Plenário (publicado no Diário da República, II Série, nº 28, de 3 de Fevereiro de 2000, p. 2351 ss), este Tribunal, por maioria, julgou inconstitucional, por violação do artigo 47º, nº
2, da Constituição, a norma em causa, interpretada no sentido acima referido.
O Tribunal Constitucional decidiu então que:
«[...] não só a Constituição da República não impõe – nem pela garantia da segurança do emprego, nem por força do princípio da igualdade – a aplicação aos contratos de trabalho a termo certo celebrados pelo Estado de um regime de conversão ope legis em contratos de trabalho por tempo indeterminado, como tal conversão e a correspondente forma de acesso à função pública se revelariam violadoras da regra da igualdade nesse acesso e do princípio do concurso, consagrados no artigo 47º, nº 2, da Constituição».
Posteriormente, no acórdão nº 368/00 (publicado no Diário da República, I Série-A, nº 277, de 30 de Novembro de 2000, p. 6886 ss), o Tribunal Constitucional, também por maioria, declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma constante do nº 3 do artigo 14º do Decreto-Lei nº
427/89, de 7 de Dezembro, «na interpretação segundo a qual os contratos de trabalho a termo celebrados pelo Estado se convertem em contratos de trabalho sem termo, uma vez ultrapassado o limite máximo de duração fixado na lei geral sobre contratos de trabalho a termo, por violação do disposto no nº 2 do artigo
47º da Constituição».
Não se verificam todavia no presente processo os pressupostos do recurso previsto na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Com efeito, decorre da matéria de facto provada nos autos – nos termos da sentença do Tribunal do Trabalho do Porto, que o Tribunal da Relação do Porto considerou «não merece[r] qualquer censura» – e da qualificação feita pelas instâncias que «o contrato dos autos foi celebrado verbalmente, sem prazo, e com início em 10 de Julho de 1989» e que, nos termos desse contrato, a recorrida M «desempenha[va] tarefas que satisfaziam necessidades permanentes do serviço».
Não cabe obviamente ao Tribunal Constitucional sindicar estas apreciações feitas pelas instâncias.
Assim, tratando-se de um contrato de trabalho sem prazo, conclui-se que não foi aplicada no caso dos autos a norma constante do nº 3 do artigo 14º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro, no sentido já antes julgado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional, já que o julgamento de inconstitucionalidade feito por este Tribunal pressupõe necessariamente a existência de contratos de trabalho a termo celebrados pelo Estado convertidos em contratos de trabalho sem termo, uma vez ultrapassado o limite máximo de duração fixado na lei geral sobre contratos de trabalho a termo. A especificidade do tipo de situações que estiveram na origem do juízo de inconstitucionalidade constante dos mencionados acórdãos nºs 683/99 e 368/00 não permite, aliás, a aplicação da doutrina adoptada pelo Tribunal a outros tipos de casos em que não estejam presentes os elementos característicos daquelas situações.
Não se trata sequer de aplicação implícita da citada norma, como pretende o Ministério Público, porquanto o tribunal a quo fundamentou a sua conclusão quanto à manutenção da natureza da relação laboral em causa (contrato sem termo) na não regularização, pelo Estado, da situação irregular decorrente de tal contrato, nos termos previstos nos artigos 37º e 38º do Decreto-Lei nº
427/89 (cfr. infra).
Entende-se assim que este Tribunal não pode conhecer do recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Subsidiariamente, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional considera o presente recurso interposto ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, com fundamento na «recusa implícita de aplicação de todo o ‘bloco normativo’ integrado pelas normas dos Decretos-Leis nºs 184/89 e 427/89, especificadas no requerimento de interposição do presente recurso [artigos 5º e 7º do Decreto-Lei nº 184/89 e artigos 3º, 14º e 43º do Decreto-Lei nº 427/89], que expressamente postergam a possibilidade de a relação de emprego na Administração Pública se fundar numa relação laboral de duração indeterminada ou indefinida».
Ora, em primeiro lugar, e concretamente no que diz respeito à norma do artigo 14º do Decreto-Lei nº 427/89, não se vê como seria possível considerar
– como considera o Ministério Público – que a decisão recorrida tenha simultaneamente aplicado tal norma, com um sentido já antes julgado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional (cfr. supra), e recusado a sua aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade.
Além disso, e decisivamente, resulta com clareza do teor do acórdão recorrido – o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26 de Junho de 2000 – que o tribunal a quo não recusou a aplicação do «bloco normativo» referido pelo Ministério Público, com fundamento na sua inconstitucionalidade. Pelo contrário, o Tribunal da Relação do Porto, fazendo apelo, designadamente, ao artigo 7º do Decreto-Lei nº 184/89 e ao artigo 14º do Decreto-Lei nº 427/89, considerou que do contrato de trabalho discutido no processo resultava uma «situação irregular», por não terem sido respeitadas no caso as modalidades de contratação fixadas na lei. Simplesmente, tendo em conta as normas contidas nos artigos 37º e 38º do mencionado Decreto-Lei nº 427/89 (com a redacção decorrente do Decreto-Lei nº 407/91, de 17 de Outubro), que estabeleciam um regime de transição do pessoal em situação irregular e fixavam um processo e um prazo para a regularização da situação desse pessoal, e tendo também em conta que o Estado não procedeu, no caso, a tal regularização, o Tribunal da Relação do Porto concluiu que a situação irregular se manteve, sem que para isso a ora recorrida
«haja contribuído por qualquer forma».
Nessas circunstâncias, e considerando que o Estado não podia pôr termo ao contrato de trabalho nos termos em que o fez, «sem precedência de processo disciplinar, nem invocação de justa causa», o tribunal condenou o Estado a reintegrar a trabalhadora no seu posto de trabalho.
Não implica a decisão em causa, nem exprime a respectiva fundamentação, qualquer juízo de inconstitucionalidade quanto ao «bloco normativo» referido pelo Ministério Público.
O Tribunal da Relação do Porto fundamentou a sua decisão nas normas constantes do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, tendo em conta que o artigo 1º deste Decreto-Lei «estabelece que tal regime é aplicável aos contratos não excluídos pelo DL nº 49.408, de 14.11.69, sendo que este diploma legal não estipula qualquer exclusão relativamente aos contratos de trabalho celebrados pelo Estado» (cfr. texto do acórdão de 26 de Junho de 2000, a fls. 91 e 93). Mas essas normas aplicadas na decisão recorrida não fazem parte do objecto do presente recurso.
Em conclusão, não tendo sido recusada a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade, entende-se que não pode este Tribunal conhecer do recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
6. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, dissentindo do parecer, reiterou o teor das alegações oportunamente apresentadas, nestes termos:
'a) A decisão impugnada não se conforma com o sentido e o alcance do juízo (e subsequente declaração) de inconstitucionalidade constante dos acórdãos nºs
683/99 e 368/00, que claramente assentam no pressuposto da incompatibilidade com o princípio afirmado pelo artigo 47º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa da existência de uma relação laboral de emprego público de duração indefinida – constituindo solução manifestamente desrazoável a arbitrária a que se traduzisse em admitir a celebração «originária» de contratos de trabalho sem prazo e em proscrever a «conversão» em contratos permanentes dos que houvessem sido celebrados a prazo e irregularmente mantidos pelos serviços. b) De qualquer modo – e para o caso de assim de não entender (por eventualmente se considerar que tal espírito dos referidos acórdãos não transparece integralmente do respectivo teor literal – onde se refere efectivamente a conversão em permanentes dos contratos «a termo» irregularmente mantidos) – fundou-se o recurso subsidiariamente na alínea a) do artigo 70º da Lei nº 28/82. c) Ora, continuamos a entender que a decisão recorrida traduz recusa implícita de aplicação do «bloco normativo» indicado no requerimento de interposição do recurso – radicando tal recusa precisamente no facto de se admitir, em homenagem ao princípio da proibição dos despedimentos sem justa causa, contido no artigo
53º da Constituição da República Portuguesa, a validade e eficácia de uma relação laboral «permanente» na Administração Pública, a qual resulta, como se demonstrou, expressamente postergada pelo regime que se infere do mesmo «bloco normativo». d) Nesse sentido, pode invocar-se o precedente resultante do decidido por este Tribunal Constitucional nos acórdãos nºs 687/99 e 434/00, em que – confrontando-se com situação perfeitamente análoga, do ponto de vista jurídico-constitucional, à hipótese dos autos – se considerou ter ocorrido recusa implícita de aplicação de uma parcela dos preceitos legais (ou «artigos de lei») que suportam precisamente a «norma» que integra o objecto deste recurso. e) Note-se, finalmente, que, relativamente à norma do artigo 14º do Decreto-Lei nº 427/89, indicada como «base» de ambos os recursos interpostos, é perfeitamente viável – atenta a sua generalidade e a amplíssima dimensão das previsões e estatuições nela contidas – surpreender simultaneamente uma aplicação de certo sentido ou interpretação já julgado inconstitucional (o apreciado no acórdão nº 427/89) e uma recusa implícita de aplicação dos demais sentidos que do preceito se podem extrair. f) Não se pode considerar que a incidental referência ao regime legal constante do Decreto-Lei nº 64-A/89 possa constituir um autónomo fundamento decisório
«alternativo» em relação à recusa implícita de aplicação do «bloco normativo» atrás especificado: é que – como é manifesto – o recurso às normas gerais sobre contratos de trabalho a prazo pressupõe, de um ponto de vista lógico-jurídico, a desconsideração (e desaplicação) do regime constante dos Decretos-Leis nºs
427/89 e 184/89 que postergam precisamente a aplicação irrestrita no âmbito da relação de emprego público de tal regime «geral».'
7. A resposta do recorrente não abalou as razões invocadas pela relatora quanto à não verificação no caso dos autos dos pressupostos processuais do recurso interposto.
7.1. Está em causa no processo um contrato de trabalho sem prazo, não sendo por isso possível considerar ter sido aplicada a norma constante do nº 3 do artigo 14º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro, no sentido já antes julgado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
Na verdade, o julgamento de inconstitucionalidade feito por este Tribunal nos acórdãos nºs 683/99 e 368/00 pressupõe necessariamente a existência de contratos de trabalho celebrados pelo Estado com termo certo e convertidos em contratos de trabalho sem termo, uma vez ultrapassado o limite máximo de duração fixado na lei geral sobre contratos de trabalho a termo.
Ora, como se refere no parecer da relatora, a especificidade do tipo de situações que estiveram na origem do juízo de inconstitucionalidade constante dos mencionados acórdãos não permite a aplicação da doutrina adoptada pelo Tribunal a outros tipos de casos em que não estejam presentes os elementos característicos daquelas situações.
Não se trata sequer de aplicação implícita da citada norma, como pretende o Ministério Público, porquanto o tribunal a quo fundamentou a sua conclusão quanto à manutenção da natureza da relação laboral em causa (contrato sem termo) na não regularização, pelo Estado, da situação irregular decorrente de tal contrato, nos termos previstos nos artigos 37º e 38º do Decreto-Lei nº
427/89.
Nem pode também invocar-se o precedente resultante do decidido pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos nºs 687/99 e 434/00, dado que nesses acórdãos o Tribunal deu como assente que, no caso então em discussão, 'entre o A. e a R. foram celebrados oralmente dois contratos a termo'.
Conclui-se portanto que este Tribunal não pode conhecer do recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
7.2. Por outro lado, resulta com clareza do teor do acórdão recorrido – o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26 de Junho de 2000 – que o tribunal a quo não recusou a aplicação do 'bloco normativo' referido pelo Ministério Público (o «bloco normativo» integrado pelas normas dos Decretos-Leis nºs 184/89 e 427/89, especificadas no requerimento de interposição do presente recurso, isto é, os artigos 5º e 7º do Decreto-Lei nº 184/89 e os artigos 3º, 14º e 43º do Decreto-Lei nº 427/89), com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Com efeito, o Tribunal da Relação do Porto, fazendo apelo, designadamente, ao artigo 7º do Decreto-Lei nº 184/89 e ao artigo 14º do Decreto-Lei nº 427/89, considerou que do contrato de trabalho discutido no processo resultava uma 'situação irregular', por não terem sido respeitadas no caso as modalidades de contratação fixadas na lei. Porém, tendo em conta as normas contidas nos artigos 37º e 38º do mencionado Decreto-Lei nº 427/89 (com a redacção decorrente do Decreto-Lei nº 407/91, de 17 de Outubro) – que estabeleciam um regime de transição do pessoal em situação irregular e fixavam um processo e um prazo para a regularização da situação desse pessoal –, e tendo também em conta que o Estado não procedeu, no caso, a tal regularização, o Tribunal da Relação do Porto concluiu que a situação irregular se manteve, sem que para isso a ora recorrida 'haja contribuído por qualquer forma'. Nessa conformidade, e entendendo que o Estado não podia pôr termo ao contrato de trabalho nos termos em que o fez, 'sem precedência de processo disciplinar, nem invocação de justa causa', o tribunal condenou o Estado a reintegrar a trabalhadora no seu posto de trabalho.
Como se afirma no parecer da relatora, a decisão recorrida não contém qualquer juízo de inconstitucionalidade quanto ao 'bloco normativo' referido pelo Ministério Público.
O Tribunal da Relação do Porto fundamentou a sua decisão nas normas constantes do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, atendendo a que o artigo 1º deste Decreto-Lei 'estabelece que tal regime é aplicável aos contratos não excluídos pelo DL nº 49.408, de 14.11.69, sendo que este diploma legal não estipula qualquer exclusão relativamente aos contratos de trabalho celebrados pelo Estado' (cfr. texto do acórdão de 26 de Junho de 2000, a fls. 91 e 93). Mas essas normas aplicadas na decisão recorrida não fazem parte do objecto do presente recurso.
Não tendo sido recusada a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade, conclui-se que não pode este Tribunal conhecer do recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do recurso.
Lisboa, 14 de Março de 2001 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida