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Processo n.º 125/10
Plenário
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores requereu, ao abrigo da alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição e nos termos do artigo 62.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), a apreciação e declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas nas alíneas c) e d) do artigo 13.º da Lei n.º 90/2009, de 31 de Agosto, que procedem, respectivamente, à revogação do Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A, de 21 de Outubro de 1992 (objecto da Declaração de Rectificação n.º 28/93, publicada no Diário da República, I série B, de 27 de Fevereiro de 1993) e do Decreto Regulamentar Regional n.º 9/93/A, de 6 de Abril.
Alegou, no essencial, o seguinte:
A Lei n.º 90/2009, de 31 de Agosto, define um regime especial de protecção social na invalidez, no âmbito do regime geral da segurança social do sistema previdencial, do regime não contributivo do subsistema de solidariedade e do regime de protecção social convergente.
Este regime especial de protecção abrange as pessoas em situação de invalidez originada por paramiloidose familiar, doença de Machado-Joseph (DMJ), sida (vírus da imunodeficiência humana, HIV), esclerose múltipla, doença de foro oncológico, esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença de Parkinson (DP) e doença de Alzheimer (DA).
Através das normas constantes das alíneas c) e d) do seu artigo l3.º, esta Lei revogou expressamente o Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A, de 21 de Outubro, que institui medidas de apoio aos indivíduos portadores da Doença de Machado-Joseph (MJ), e o Decreto Regulamentar Regional n.º 9/93/A, de 6 de Abril, que regulamenta essa protecção especial prevista para estes doentes. Com isso, a Lei n.º 90/2009, de 31 de Agosto, vem retirar benefícios sociais aos indivíduos portadores da mencionada doença, nomeadamente quanto à concessão e fornecimento não oneroso de material clínico.
Acontece que esta revogação padece de grave inconstitucionalidade.
Na verdade, na redacção proveniente da Revisão Constitucional de 2004, a Constituição ampliou significativamente, numa lógica de respeito pela autonomia regional e pelo princípio da subsidiariedade do Estado, o poder legislativo regional. Concretamente, procedeu-se à supressão do conceito de “interesse específico” como fundamento e limite para o exercício do poder legislativo regional, e decaiu a exigência de observância, por parte dos actos legislativos regionais, das “leis gerais da república”, que aliás desapareceram como categoria constitucional.
Neste contexto, o disposto no artigo 228.º, n.º 2, da CRP (reafirmado pelo artigo 15.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores - EPARAA) impõe que, em matéria não reservada à competência dos órgãos de soberania, as normas legais aprovadas a nível nacional, apenas se apliquem na falta de legislação regional sobre tal matéria. Tendo em conta o princípio da supletividade expressamente consagrado no referido preceito, impõe-se concluir que as normas legais nacionais, que tratem de matérias não reservadas aos órgãos de soberania, só têm aplicação nas Regiões Autónomas quando se verifique a falta de legislação regional. Quando a matéria já estiver regulada a nível regional (como no caso sucedia) não pode o Estado intervir com nova legislação. As leis e os decretos-lei só serão aplicáveis no território regional enquanto as respectivas Assembleias Legislativas não legislarem sobre a matéria. Se já o tiverem feito, a legislação nacional não pode revogar a legislação regional.
Hoje é possível extrair, como já defendia uma parte significativa da doutrina antes de 2004, uma reserva de competência legislativa a favor das Regiões Autónomas para, em matérias não reservadas aos órgãos de soberania e sobre as quais os parlamentos insulares possam estatutariamente legislar, aprovar legislação de âmbito regional.
Ao afirmar inequivocamente que compete à Assembleia Legislativa legislar no âmbito regional e ao reforçar, em termos gerais, a autonomia regional, a revisão constitucional veio também reforçar a concepção que advogava a existência de uma reserva de competência legislativa a favor da Região Autónoma. Admitir o contrário é supor que a Constituição adoptou um sistema de competências legislativas que permite um grave e confuso conflito institucional, em que os órgãos de soberania legislariam sobre uma determinada matéria para, posteriormente, a correspondente Assembleia Legislativa legislar diferentemente.
O juízo de inconstitucionalidade das normas constantes das alíneas c) e d) do artigo 13.º da Lei n.º 90/2009, de 31 de Agosto, resulta pois também do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP, quando atribui competência legislativa a cada Região Autónoma nas matérias enunciadas no respectivo Estatuto Político-Administrativo.
O EPARAA, no artigo 58.º, n.º 2, alínea j), atribui à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores a competência para legislar em matéria de “apoio aos cidadãos portadores de deficiência”. Esta norma é, assim, atributiva de competência legislativa à Região Autónoma dos Açores para editar legislação de protecção às pessoas portadoras da doença de Machado-Joseph (DMJ), que tem uma especial incidência na Região Autónoma dos Açores, como atestam alguns estudos científicos sobre a matéria (veja-se Lima, M. M. de M., Doença de Machado-Joseph nos Açores. Estudo Epidemiológico, Biodemográfico e Genético, Tese de doutoramento, Universidade dos Açores, Departamento de Biologia, Ponta Delgada, 1996).
A conjugação do disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea a), e no artigo 228.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, estabelece uma preferência das normas regionais face às normas emanadas pelos órgãos de soberania que disciplinem a mesma matéria. Tal preferência da norma regional impõe uma reserva negativa de normação por parte dos órgãos de soberania, excluindo, de todo, a competência destes para revogar “expressis verbis” [como o fazem as alíneas c) e d) do artigo 13.º da Lei n.º 90/2009, de 31 de Agosto] normas de direito regional com o mesmo objecto, âmbito e alcance.
Além disso, sem prescindir, não houve qualquer tipo de audição dos órgãos de governo da região, como impõe o artigo 229.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
No caso vertente, estamos inclusivamente perante matéria de competência legislativa da Região Autónoma dos Açores [cfr. o artigo 58.º, n.º 2, alínea j), do EPARAA].
Além disso, a doença de Machado-Joseph tem especial incidência nos Açores, circunstância que levou a Região a legislar sobre a matéria.
As normas constantes das alíneas e) e d) do artigo 13.º da Lei n.º 90/2009, de 31 de Agosto, tratam portanto de uma matéria respeitante à Região Autónoma e, consequentemente, impunha-se o dever de audição por parte dos órgãos de soberania.
Em suma, as normas impugnadas violam o disposto nos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), 228.º, n.ºs 1 e 2, e 229.º, n.º 2, da Constituição da República.
2. Notificado para se pronunciar sobre o pedido, o Presidente da Assembleia da República veio oferecer o merecimento dos autos, enviando cópia de documentação relativa aos trabalhos preparatórios da Lei n.º 90/2009, de 31 de Agosto.
3. Discutido o memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal (artigo 63.ºda LTC), cumpre formular a decisão em conformidade com a orientação que fez vencimento (artigo 65.º da LTC).
II. Fundamentação
A. Competência legislativa dos órgãos de soberania e autonomia legislativa regional
4. O Decreto Legislativo Regional n.º 21/92-A estabeleceu medidas de apoio a indivíduos portadores da Doença de Machado Joseph recenseados nos centros de saúde da Região (artigo 1.º). Nos seus artigos 2.º e 3.º o diploma regional garante o acesso a “uma pensão de invalidez, no âmbito da segurança social” aos cidadãos acometidos dessa doença que estejam “recenseados nos centros de saúde da Região” e sofram “de uma incapacidade funcional igual ou superior a 70%, nos termos da Tabela Nacional de Incapacidades”. O diploma prevê, também, no artigo 4.º, o direito a um “subsídio de acompanhante”, que é concedido aos doentes que preencham as condições para auferirem a pensão de invalidez ou que, independentemente do grau de incapacidade, deixem de ter a possibilidade de locomoção. E, nos artigos 5.º e 6.º, o diploma atribui a todas as pessoas portadoras da DMJ o direito ao “material clínico de apoio” de que necessitem (designadamente cadeiras de rodas, canadianas, calçado ortopédico, almofadas anti-escaras, algálias, sacos para recolha de urina, fraldas) a ser distribuído “gratuitamente pelos centros de saúde”.
O Decreto Regulamentar Regional n.º 9/93/A, por seu turno, regulamenta as condições de atribuição das mencionadas pensões de invalidez, a respectiva fórmula de cálculo e os montantes mínimos e regula, igualmente, as condições de acesso ao subsídio de acompanhante que, nos termos do artigo 12.º, n.º 1, deverá ser requerido nos Centros de Prestações Pecuniárias do Instituto de Gestão de Regimes da Segurança Social, ou seja, no âmbito do sistema de segurança social.
Posteriormente, a Lei n.º 90/2009, de 31 de Agosto, veio instituir, com âmbito nacional, um regime especial de protecção das pessoas em situação de invalidez originada por paramiloidose familiar, doença de Machado-Joseph (DMJ), sida (vírus da imunodeficiência humana, HIV), esclerose múltipla, doença de foro oncológico, esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença de Parkinson (DP) ou doença de Alzheimer (DA). Este diploma legal alargou o elenco das patologias e o âmbito de protecção social concedido por legislação anterior (v. gr., Lei n.º 1/89, de 31 de Janeiro, Decreto-Lei n.º 92/2000, de 19 de Maio, Decreto-Lei n.º 216/98, de 16 de Julho, Decreto-Lei n.º 327/2000, de 22 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 173/2001, de 31 de Maio) às pessoas que sofrem de algumas doenças crónicas que “pela sua gravidade e evolução, originam, com acentuada rapidez, situações invalidantes”. E revogou expressamente diversos diplomas atinentes à matéria, entre os quais se contam os referidos diplomas regionais, nos termos da seguinte disposição que constitui o objecto do presente pedido de fiscalização sucessiva de constitucionalidade:
“Artigo 13.º
Norma revogatória
São revogados os seguintes diplomas:
[….]
[….]
Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A, de 21 de Outubro;
Decreto Regulamentar Regional n.º 9/93/A, de 6 de Abril;
[ …]
[….]
[….]
[.…].'
Temos, portanto, que os referidos diplomas regionais, um de natureza legislativa e o outro de natureza regulamentar, foram revogados em bloco, sem qualquer distinção de normas. A Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores entende que tal revogação é inconstitucional pelas razões já expostas e que cumpre apreciar.
5. Começa o Requerente por invocar a violação do princípio da supletividade, consagrado no n.º 2 do artigo 228.º da Constituição que dispõe (na redacção emergente da Lei Constitucional n.º 1/2004, de 24 de Julho - RC2004): “Na falta de legislação regional própria sobre matéria não reservada à competência dos órgãos de soberania, aplicam-se nas regiões autónomas as normas legais em vigor”. Entende que este preceito constitucional consubstancia a ideia de que as normas emitidas pelos órgãos de soberania só podem preencher espaços de vazio legislativo decorrentes da omissão das regiões autónomas na regulação de matérias da sua competência. Prevenida a regulação pelo legislador regional, ficaria vedado ao legislador estadual legislar na mesma matéria para o âmbito regional. Admitir o contrário, sustenta, seria supor que a Constituição “adoptou um sistema de competências legislativas que permite um grave e confuso conflito institucional”.
Vejamos.
No seu conteúdo imediato, o n.º 2 do artigo 228.º da Constituição estabelece a regra de aplicação supletiva da legislação estadual na falta de legislação regional. Com isso, afirmando-se a regra de vigência em todo o território nacional da legislação da República que não disponha diversamente, em consonância com o princípio de que num Estado unitário os poderes legislativos dos órgãos de soberania são territorial, temporal e pessoalmente genéricos, obvia-se a que surjam espaços de vazio legislativo no âmbito regional por inércia dos órgãos regionais no exercício da competência legislativa própria.
Mas outras consequências decorrem da mesma disposição constitucional. Uma delas, de inferência indiscutível embora mediante raciocínio a contrario ou como corolário do imediatamente preceituado, é o critério da preferência aplicativa da normação regional válida, para resolução dos conflitos normativos (conflitos positivos) entre a legislação regional e a legislação estadual que regule a mesma matéria.
Assim, o preceito constitucional, do mesmo passo em que estabelece a regra da supletividade (integrativa) do direito estadual – prevenindo potenciais conflitos negativos, porque deixa de poder falar-se em espaços legislativos vazios por inércia insuperável do legislador regional, assumindo um efeito integrativo ou de completude do ordenamento jurídico – fornece também o critério para a resolução dos conflitos (positivos) ou de concurso entre a legislação regional competencialmente válida (“em matéria não reservada à competência dos órgãos de soberania”) e a legislação emanada dos órgãos de soberania (“normas legais em vigor” ).
Porém, contrariamente ao que o Requerente parece pretender, não é forçoso retirar do n.º 2 do artigo 228.º da Constituição uma regra de invalidade da legislação estadual pelo simples facto de, no momento em que é aprovada para valer também no território das regiões autónomas, haver legislação regional em vigor sobre a mesma matéria. Esta norma não proíbe a emanação, posterior à legislação regional, de legislação estadual vocacionada para aplicação a todo o território nacional em função das competências constitucionais do órgão de soberania emitente. Apenas proíbe que essa legislação posterior pretenda afastar a aplicação de legislação validamente emitida pelo legislador regional em matéria da sua competência. No âmbito da Região e no espaço de regulação coincidente com a legislação regional válida, a legislação estadual ficará em latência.
Dito de outro modo, o preceito constitucional não enuncia uma regra de preclusão ou de perempção que limite externamente as competências dos órgãos de soberania, proibindo-os de emitir legislação que abranja o território de uma região autónoma enquanto não for removida a legislação regional pré-existente, porventura pela via do julgamento de inconstitucionalidade, que é o modo de resolução de conflitos de competência legislativa entre os órgãos da República e os órgãos das regiões autónomas disponível no nosso sistema jurídico. Com efeito, não há razões para que se considere a legislação nacional inválida pelo mero facto de regular matéria sobre a qual tenha incidido já, factualmente, um decreto legislativo regional. Basta pensar na possibilidade de tal direito regional ter sido emitido no âmbito da competência reservada aos órgãos de soberania (seja por força das regras gerais dos artigos 164.º e 165.º, seja por virtude de outras disposições específicas dispersas na Constituição), ou de ter extravasado o 'âmbito regional' - seja do ponto de vista territorial, seja institucional -, tendo essa aprovação ocorrido, portanto, fora do âmbito de competência legislativa da Região Autónoma.
É certo que nesta leitura o ordenamento jurídico se torna mais complexo e com menor certeza na aplicação do que sucederia num sistema de competências rigorosamente separadas, sobretudo se de exercício preclusivo, de tal modo que se exigisse a remoção judicial prévia das normas regionais inválidas para que pudesse ser emitida legislação estadual potencialmente aplicável no território das regiões autónomas. Mas é excessivo concluir que, só por isso, o sistema de repartição de competências legislativas entre a República e as regiões autónomas se torna confuso ou intoleravelmente conflitual e, por isso, não querido pela Constituição. As dificuldades acrescidas com que o intérprete e o aplicador do direito, em especial a Administração e os tribunais, se deparam, são inerentes ao pluricentrismo que caracteriza o ordenamento jurídico, com um centro estadual (ou da República) e dois centros regionais de produção de actos legislativos.
Ora, em matéria de direitos económicos, sociais e culturais – que é o domínio que aqui importa considerar –, não está vedado aos órgãos legislativos estaduais aprovar legislação uniforme, estabelecendo, em nome dos princípios da universalidade e da igualdade, um regime jurídico idêntico para todo o país. O que não exclui necessariamente que a Região possa criar, à sua custa e desde que com isso não subverta o sentido do regime autonómico insular por referência ao princípio do Estado unitário (artigo 6.º da Constituição) e das razões em que a autonomia regional constitucionalmente se funda e dos objectivos que visa (artigo 225.º da Constituição), um regime complementar mais favorável, podendo existir uma competência legislativa concorrencial entre os órgãos de soberania e as Assembleias Legislativas das regiões autónomas (explicitando a regra da competência concorrencial em matéria de direitos económicos, sociais e culturais, veja-se Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV - Direitos Fundamentais, Coimbra 2008, pp. 449-450).
Não se trata de recuperar as “leis gerais da República”, como categoria geral, nem de convocar uma genérica “reserva legislativa da República” (sobre o uso destas categorias anteriormente à revisão de 2004, veja-se Maria Lúcia Amaral, “Questões Regionais e Jurisprudência Constitucional: Para o estudo de uma Actividade Conformadora do Tribunal Constitucional”, in Estudos de Direito Regional, ob. col., Lisboa 1997, p. 272-294). Trata-se, sim, de reconhecer que, a mais das matérias expressamente enunciadas nos artigos 164.º e 165.º da Constituição, há algumas outras matérias que são da competência exclusiva ou prioritária do Estado unitário (ou da República) por força de disposições específicas da Constituição.
É certo – e é aí que residem, afinal, as dúvidas de constitucionalidade – que o legislador nacional não se limitou a legislar para todo o território nacional, deixando a tarefa de determinação do regime concretamente aplicável na Região ao jogo do n.º 2 do artigo 228.º da Constituição, hipótese em que nenhuma dúvida de constitucionalidade por violação da autonomia legislativa regional seria pertinente. Pretendeu revogar, e com isso afastar formalmente, a aplicação da normação regional. Nesta perspectiva e não sendo inerente ao princípio da supletividade da legislação estadual uma automática proibição de o legislador nacional intervir com potencial aplicabilidade no território das regiões em matéria onde pré-exista normação regional, o julgamento acerca da validade constitucional das normas estaduais questionadas implica a apreciação incidental da validade das normas regionais por elas visadas, como adiante se verá.
6. O Requerente levanta, todavia, uma segunda objecção à intervenção legislativa dos órgãos do Estado neste domínio quando haja legislação regional potencialmente aplicável: a da existência de uma “reserva de competência legislativa regional” nas matérias enunciadas nos artigos 49.º a 67.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, ou seja, nas matérias incluídas no âmbito de competência da Assembleia Legislativa Regional, nos termos e nas condições dos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da Constituição.
Neste pressuposto, começa por defender que as normas contidas no Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A e no Decreto Regulamentar Regional n.º 9/93/A foram aprovadas ao abrigo da alínea f) do n.º 2 do artigo 58.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores que atribui à respectiva Assembleia Legislativa a competência para legislar em matéria de “apoio aos cidadãos portadores de deficiência”. E poderia acrescentar que uma tal competência regional se alarga, também, a matérias relativas à “acção social” e à “política de saúde” [artigo 58.º, n.º 2, alínea g) e artigo 59.º, n.º 1, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores].
Convirá delimitar, desde já, o possível âmbito de uma hipotética reserva de competência legislativa da Região. Essa reserva nunca abrangeria todos os actos legislativos aprovados no domínio das “matérias” enumeradas no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores a respeito da competência legislativa da Região. Na verdade, conforme resulta da Constituição, há dois limites adicionais no que respeita à competência das Regiões. O poder legislativo das Regiões Autónomas é genericamente definido, nos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º1, da Constituição, através da verificação cumulativa dos três requisitos que deverá respeitar: “i) restringir-se ao âmbito regional; ii) estarem as matérias em causa enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo; e iii) e não estarem reservadas aos órgãos de soberania” (Acórdão n.º 423/08, na linha dos anteriores acórdãos n.ºs 258/07, 415/05 e 246/05).
Por outras palavras: para que possa intervir legislação regional não basta que a matéria esteja enumerada nos Estatutos. É ainda necessário que não incida no domínio reservado aos órgãos de soberania (seja por força das disposições gerais dos artigos 164.º e 165.º, seja por força de outras disposições específicas de que resulte a competência institucional do Estado). E é exigido que possa afirmar-se o “âmbito regional” da legislação, quer do ponto de vista territorial, quer do ponto de vista institucional. Pois como se esclarece no acórdão n.º 258/07, a expressão «âmbito regional» tem este duplo sentido. Repetindo as palavras desse aresto: “sem prejuízo de esta expressão ter antes de mais um sentido geográfico, traçando os limites espaciais de vigência dos decretos legislativos regionais, ela tem também forçosamente um sentido institucional, que impede os Parlamentos insulares de emanar legislação destinada a produzir efeitos relativamente a outras pessoas colectivas públicas que se encontram fora do âmbito de jurisdição natural das Regiões Autónomas”.
E não se vêm decisivos argumentos para rever, seja na sua substância, seja na sua formulação, este entendimento do Tribunal acerca dos limites do poder legislativo regional. Na verdade, admitir um critério puramente territorial do “âmbito regional” (e note-se que a Constituição não fala em “legislar para o território regional”, fala sim, através de uma expressão que revela uma intenção mais restritiva, em “legislar no âmbito regional”) seria retirar aos órgãos de soberania qualquer possibilidade de legislar para todo o país em matérias que reclamem um regime universalizado, nomeadamente, por força da unidade institucional do Estado.
É claro que sempre poderá dizer-se que a questão que seja territorialmente do âmbito regional e tenha institucionalmente relevo nacional está, só por isso, reservada aos órgãos de soberania. Mas não se vislumbra que esta construção permita chegar a resultados substancialmente diferentes daqueles a que o entendimento do Tribunal conduz (Aliás, é sintomático que a doutrina que põe reservas ao critério jurisprudencial do acórdão 258/07 acabe por concluir que o aresto contém uma boa decisão, pois em qualquer caso, sempre estaria em causa matéria reservada à Assembleia da República. Cfr. Jorge Miranda, “A jurisprudência Constitucional sobre regiões autónomas”, in XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, pp. 430-1).
7. Isto posto, impõe-se recordar o essencial do teor dos diplomas regionais que foram revogados pelas normas em presença, uma vez que, indirectamente, eles determinam o conteúdo material ou de sentido (as consequências materiais que deles derivam para a configuração do ordenamento jurídico) dos dois preceitos revogatórios aprovados a nível nacional. Com efeito, não se trata de uma revogação simples, que se esgote no efeito destrutivo – uma voluntas legis exclusivamente dirigida a fazer cessar o resultado do exercício anterior de poderes normativos pela mesma ou por outra fonte normativa –, mas de uma revogação com substituição de regimes, em que o enunciado revogatório (o efeito “destrutivo”) surge a culminar a substituição global da regulação da matéria a que simultaneamente se procedeu (o efeito “construtivo” operado pelo mesmo diploma legal que contém a revogação expressa do regime anteriormente vigente).
Efectivamente, como já se disse, o Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A estabelecia nos seus artigos 2.º a 4.º as condições de acesso a pensões de invalidez, a atribuir “no âmbito da segurança social” a indivíduos portadores da DMJ e subsídios de acompanhante (a requerer nos Centros de Segurança Social); o Decreto Regulamentar Regional n.º 9/93/A desenvolvia as mencionadas disposições desse decreto legislativo.
O mesmo Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A estabelecia, ainda, nos artigos 5.º e 6.º, o direito, atribuído a todas as pessoas portadoras de DMJ, de acesso ao 'material clínico de apoio' de que necessitem a ser distribuído “gratuitamente pelos centros de saúde”.
A Lei n.º 90/2009 veio revogar em bloco todas as disposições de ambos os diplomas. Quanto às pensões de invalidez e ao subsídio de acompanhante, prestados no âmbito do sistema de segurança social e requeridos nos centros de segurança social, a Lei substituiu-os por medidas semelhantes a nível nacional. Quanto à prestação gratuita de material clínico nos centros de saúde, que não se situa já no domínio estrito da segurança social mas antes numa zona de confluência entre o sistema de segurança social e o sistema de saúde, não foi aprovada qualquer medida equivalente a nível nacional. Houve uma pura e simples revogação do benefício.
Os actos revogatórios contidos nas alíneas c) e d) do artigo 13.º da Lei n.º 90/2009 referem-se, pois, a dois tipos diversos de medidas. Comecemos pela revogação das pensões de invalidez (infra n.º 8) e, depois, ocupar-nos-emos da concessão de material clínico de apoio (infra n.º 9).
8. Como já se deixou dito, há matérias em que a competência é reservada aos órgãos de soberania, embora não estejam enunciadas na lista dos artigos 164.º e 165.º da Constituição. É o que sucede, por exemplo, com a organização, coordenação e financiamento do sistema de segurança social que incumbe ao Estado por força do artigo 63.º, n.º 2, da Constituição. A organização unitária do sistema pelo Estado é um meio institucional de garantia dos princípios da universalidade e da igualdade (artigos 12.º e 13.º da Constituição). Por meio de um sistema unificado, as condições de acesso às prestações da segurança social e as fórmulas de cálculo das mesmas tornam-se iguais para todas as pessoas, independentemente da sua localização geográfica. Por isso, se compreende que a segurança social tenha um orçamento próprio, de nível nacional, que se integra no Orçamento de Estado [artigo 105.º, n.º1, alínea b), da Constituição].
Não é concebível que uma Região Autónoma possa, nesta matéria, criar, no respectivo âmbito geográfico, um sistema de benefícios sociais próprios custeados pelo sistema geral de segurança social, com aumento da despesa global num orçamento unitário e com todas as consequências que isso implica, em termos de igualdade e justiça distributiva, no seio de um mesmo universo de beneficiários. Por força dos princípios da universalidade e da igualdade as condições de acesso a tais prestações e a fórmula de cálculo das mesmas têm de ser idênticas para todas as pessoas em idênticas condições. No âmbito do sistema geral de segurança social, isto é verdade nomeadamente para o subsistema previdencial (que institui prestações substitutivas dos rendimentos provenientes do trabalho) e para o subsistema de solidariedade (que visa dar protecção às pessoas que necessitem e não possam beneficiar do sistema previdencial por força do carácter contributivo deste), os quais se concretizam em prestações pecuniárias de cariz periódico (vejam-se os artigos 41.º e 50.º da Lei de Bases da Segurança Social - Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro).
E assim se compreende que o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores apenas preveja que a Região Autónoma legisle em matéria de “complementos de pensões” [artigo 58.º, n.º 2, alínea b)], devendo naturalmente estes complementos ser por ela suportados. Caso, por absurdo, assim não se entendesse, estaria a dar-se à Região Autónoma a possibilidade de esta, sem quaisquer limites, aprovar todo um sistema próprio de pensões e outros benefícios, mais favorável do que aquele que é válido para a generalidade dos portugueses e custeado pelo orçamento comum da segurança social, em manifesta violação dos princípios da universalidade e da igualdade formal, que institucionalmente se sintetizam na unidade do sistema.
Nesta matéria, só os órgãos de soberania podem legislar. E, nesse âmbito, ao menos quando simultaneamente procedam a uma nova regulação da matéria e não apenas à revogação da legislação regional - isto é, quando intervenham para exercer e não para defender a sua competência, hipótese que não importa agora considerar –, não se vislumbra que ofenda o poder legislativo autonómico que a legislação nacional declare expressamente revogadas medidas legislativas que anteriormente tenham sido aprovadas pelos órgãos legislativos regionais. Aliás, uma tal pronúncia legislativa do legislador nacional, creditável a um propósito de clarificação do regime legal vigente em homenagem à segurança e certeza jurídicas, apesar de formal e literalmente consistir numa revogação, não tem, na substância das coisas, efeito material revogatório, uma vez que a normação regional sobre que recai não poderia aspirar a regular validamente a matéria por exorbitar do âmbito regional (Cfr., no sentido de que, no direito constitucional italiano, a lei estadual, em matéria de competência do Estado, tem força revogatória, expressa ou implícita, da legislação regional, sem necessidade de prévia colocação de uma questão de legitimidade constitucional, Elio Gizzi, Manuale di Diritto Regionale, 6.ª ed., Milano, 1991, pág. 345).
Deste modo, concluiu-se que, na parte em que se limitam a revogar as regras regionais relativas à pensão de invalidez e ao subsídio de acompanhante a serem atribuídos pelo sistema nacional de segurança social, não há violação da autonomia legislativa regional, tal como aparece genericamente consagrada nos artigos 228.º, n.º 1 e 227.º, n.º 2, nem do princípio da supletividade, tal como está consagrado no artigo 228.º, n.º 2 da Constituição, pela alínea d) do artigo 13.º da Lei n.º 9/2009, nem pela alínea c) do mesmo artigo, na parte em que revoga os artigos 2.º a 4.º do Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A.
9. Diversamente se apresenta a questão quanto às normas regionais que concedem material clínico de apoio, visando a satisfação directa e imediata de necessidades das pessoas portadoras de Doença de Machado-Joseph, através dos centros de saúde da Região. Com estas normas – os artigos 5.º e 6.º do Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A – o legislador regional institui providências num domínio de “acção social” que se situa numa zona de confluência entre os sistemas de segurança social e de saúde.
A Região Autónoma tem o poder de aprovar legislação em matéria de apoio a pessoas com deficiência e, mais genericamente, em matéria de acção social [artigo 58.º, n.º 2, alínea f) e g)] e pode, também, aprovar medidas em matéria de política de saúde (artigo 58.º, n.º 1, do Estatuto) de modo a garantir que não fica vedado aos cidadãos da região o direito de igual acesso aos serviços de saúde e desde que respeite os requisitos gerais do seu poder legislativo: manter-se dentro do “âmbito regional” e não interferir com a “reserva de competência dos órgãos de soberania”.
Foi neste âmbito de confluência entre a segurança social e o sistema de saúde que a Região Autónoma dos Açores aprovou, por exemplo, ainda recentemente, a Rede de Cuidados Integrados da Região Autónoma dos Açores (Decreto Legislativo Regional n.º 16/2008/A) que completa, no âmbito regional, a Rede Nacional de Cuidados Integrados (sobre esta última, ver, Apelles Conceição, Segurança Social, 8ª ed. Coimbra 2008, p. 445-447).
Esta matéria não está compreendida na área de competência reservada aos órgãos de soberania. Na verdade, trata-se claramente de matéria que não interfere com a saúde na sua dimensão negativa e, portanto, com direitos, liberdades e garantias ou direitos de natureza análoga, mas apenas com prestações sociais de cariz económico-social que visam compensar as situações de dependência funcional, salvaguardando na medida do possível uma melhor qualidade de vida aos seus beneficiários. Demonstrado que seja que tais prestações se contêm financeira e institucionalmente no âmbito regional, a legislação regional será plenamente válida.
A questão não é, porém, a de saber se a Região pode legislar na matéria, mas a de saber se o Estado pode afastar essa legislação. Ao revogar as normas que estabelecem os apoios clínicos, o Estado não está a interferir negativamente na liberdade geral de acesso a tais apoios, mas na prestação “gratuita” desses apoios clínicos. Está, portanto, a revogar um específico apoio gratuito que é concedido através dos Centros de Saúde da Região, pelo que importa saber quem custeia esses “apoios clínicos”. Na verdade, esta questão é decisiva para saber se a norma que estabelece a gratuitidade dos apoios na região incide sobre regime que lhe respeita exclusivamente, sendo os seus efeitos financeiros suportados por uma dotação do orçamento da região ou outra qualquer das formas possíveis de financiamento dos apoios de acção social (sobre esse financiamento, veja-se o artigo 90.º da Lei de Bases da Segurança Social e Casalta Nabais, “O Financiamento da Segurança Social em Portugal”, in Estudos em Memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, Coimbra, 2007, p. 648 e segs.), ou se, pelo contrário, diz também respeito ao Estado, sendo custeada pelo orçamento geral da segurança social (que, nos termos do artigo 105.º, n.º1, alínea b) da Constituição e do artigo 93.º, n.º 1, da Lei de Bases da Segurança Social, integra o Orçamento de Estado e cujas despesas, com os respectivos beneficiários, se regem pelos princípios da universalidade, da equidade e da igualdade).
Analisemos a questão. As normas em causa estabelecem que determinado material clínico é fornecido aos portadores de DMJ pelos Centros de Saúde da Região (artigos 5.º, n.º 2 e 6.º do Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A). Ora, esses centros de saúde estão - nos termos do artigo 7.º do Estatuto do Serviço Regional de Saúde (actualmente republicado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 1/2010/A) - integrados no Sistema Regional de Saúde, o qual nos termos do artigo 28.º, n.º 1, do mesmo Estatuto é financiado pela Região Autónoma e por outras entidades que não o sistema geral de segurança social. Este último artigo é expressão da autonomia financeira da Região Autónoma nos termos em que o artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da Constituição, a consagra.
Assim, ao revogar uma norma que instituiu uma prestação de cariz estritamente económico-social sem interferência no funcionamento do sistema nacional de segurança social, que não contende com matérias reservadas aos órgãos de soberania, que se limita a estabelecer um benefício social adicional como forma de concretização dos direitos à saúde e à qualidade de vida das pessoas portadoras da Doença de Machado-Joseph, e que, além disso, é exclusivamente financiado por verbas orçamentais de âmbito regional, o legislador nacional desrespeitou a autonomia legislativa regional [artigo 227.º, n.º 1, alíneas a) e j), da Constituição).
Com efeito, mesmo para quem não admita a existência de uma reserva de competência legislativa regional (ver, no sentido de uma tal reserva, Rui Medeiros, «Anotação ao artigo 228.º», in Constituição da República Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda/Rui Medeiros, Tomo III, Coimbra 2007, p. 370-371 e, já antes da revisão de 2004, José Maria Calheiros/Rui Medeiros, “As Regiões Autónomas”, in Estudos de Direito Regional, cit., pp. 885-890; contra Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed, Coimbra 2003, p. 814), constitui certamente uma violação da autonomia regional a revogação pura e simples de um diploma aprovado em matérias que não estão reservadas aos órgãos de soberania e que estão enunciadas nos Estatutos Político-Administrativos, contendo esse diploma medidas de âmbito exclusivamente regional, até do ponto de vista orçamental (apenas relevando da redistribuição interna de recursos ao nível regional). A autonomia legislativa regional não consente a abolição sem mais, pelo Estado, das providências legislativas em cuja aprovação ela se tenha concretizado.
Ora, foi o que no caso sucedeu: o legislador nacional actuou no domínio de matérias não constitucionalmente reservadas aos órgãos de soberania, que estão previstas no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e cujo âmbito é, territorial e institucionalmente, de cariz estritamente regional. Na verdade, como se viu, as despesas que a norma implica recaem exclusivamente sobre o orçamento regional. Assim, a norma revogatória tem, nesta parte, uma incidência exclusivamente regional; é meramente revogatória de um decreto legislativo regional não tendo sequer em vista a sua substituição por uma regulamentação semelhante válida para a generalidade dos cidadãos do país.
Nem se diga que o vazio legislativo criado visa a uniformidade do regime a nível nacional, numa lógica de exclusão universal dos apoios às pessoas desfavorecidas pela doença. Neste domínio a autonomia legislativa tem de prevalecer. Se a Região Autónoma, com recursos próprios, pretende discriminar positivamente as pessoas que padecem de determinada doença tentando compensar, com apoio clínico, as suas desvantagens, é livre de o fazer. Neste campo estritamente económico-social e fora das matérias constitucionalmente reservadas aos órgãos de soberania, a autonomia legislativa regional prevalece sobre a igualdade formal. Não é legítima a pretensão de o legislador nacional retirar benefícios sociais que são aprovados pelas regiões nos estritos limites do seu poder legislativo e, além disso, são custeados pelas próprias regiões.
Em suma, ocorre violação da autonomia legislativa regional sempre que, cumulativamente, se verifiquem as seguintes condições: i) o legislador nacional aprova normas revogatórias de legislação regional, ii) essa legislação regional respeita todos os requisitos constitucionalmente previstos no artigo 227.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, iii) e é aprovada no estrito âmbito da autonomia financeira regional [artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da Constituição].
Deste modo, tem de concluir-se pela inconstitucionalidade da norma da alínea c) do artigo 13.º da Lei n.º 90/2009, de 31 de Agosto, na parte em que revoga os artigos 1.º, 5.º e 6.º do Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A, por violação da autonomia legislativa regional, nos termos em que ela resulta da conjugação das alíneas a) e j) do n.º 1 do artigo 227.º e do n.º 2 do artigo 228.º da Constituição.
B. Dever de audição dos órgãos de governo da Região Autónoma
10. Concluímos que a Assembleia da República era competente para a aprovação de uma norma revogatória em matéria de pensões e subsídios custeados pelo sistema geral da segurança social (artigos 2.º a 4.º do Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A e todos os artigos do Decreto Regulamentar Regional n.º 9/93/A). Mas que já não podia aprovar uma norma revogatória de disposições, como aquelas dos artigos 5.º e 6.º do Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A, que concedem apoio em materiais clínicos gratuitos custeados pelo sistema regional de saúde.
Fica, porém, de pé a questão de saber se, no que respeita às matérias relativas a pensões e subsídios da segurança social que eram objecto dos diplomas regionais revogados – a parte das normas revogatórias relativamente às quais não procede a acusação de violação da autonomia legislativa regional –, a Assembleia da República deveria ter procedido à audição da Região.
11. De acordo com o disposto no artigo 229.º, n.º 2, da Constituição, os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente a questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas, os órgãos de governo regional.
O Tribunal tem seguido como critério válido nesta matéria aquele que consta do Parecer n.º 20/77 da Comissão Constitucional (Pareceres da Comissão Constitucional, 2.º Vol., INCM, 1977, pp. 159 e segs.):
“(…) são questões da competência dos órgãos de soberania, mas respeitantes às regiões autónomas, aquelas que, excedendo a competência dos órgãos de governo regional, respeitem a interesses predominantemente regionais ou, pelo menos, mereçam, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para esses territórios”.
(…) Será, por exemplo, a circunstância de o órgão de soberania, na disciplina que se propõe editar para determinada questão, circunscrever tal disciplina ao âmbito regional. Ou ainda a circunstância de o órgão de soberania, na regulamentação de determinada questão, se propor adoptar uma solução especial no que toca às Regiões Autónomas, por referência à regulamentação geral que nessa matéria prevê para o restante território nacional.
Esse entendimento foi acolhido posteriormente em numerosos arestos, cuja enumeração pode ver-se no acórdão n.º 551/07, que mantém incólume o mesmo critério.
Vejamos se deveria ter havido audição no que respeita à revogação dos diplomas regionais na parte em que visam fixar as condições e a fórmula de cálculo da pensão de invalidez das pessoas portadoras da doença de Machado-Joseph e as condições e a forma de cálculo dos subsídios de acompanhante (o Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A, nos seus artigos 2.º a 4.º, e Decreto Regulamentar Regional n.º 9/93/A).
Como vimos, segundo o critério utilizado pelo Tribunal, haverá direito de audição em matérias que: “respeitem a interesses predominantemente regionais ou, pelo menos, mereçam, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para esses territórios”.
Ainda que se entenda, como deve entender-se, que a matéria da atribuição e da fixação do valor das pensões de invalidez e subsídio de acompanhante está reservada à Assembleia da República, por força do preceito estatuído no artigo 63.º, n.º 2 da Constituição, há uma especificidade na Região Autónoma dos Açores quando se contemplam portadores da Doença de Machado-Joseph que decorre do facto de esta patologia ter aí uma particular incidência populacional. Apesar de já ter sido identificada em várias zonas do mundo, em Portugal a doença apresenta uma maior prevalência no arquipélago dos Açores. Aliás, a circunstância de os primeiros casos clínicos terem sido detectados em indivíduos açorianos (ou descendentes de açorianos), aliado a esta tão grande prevalência, fez com que durante anos a doença fosse conhecida como a “doença dos Açorianos”.
Consistindo numa doença neurodegenerativa em que os pacientes afectados evoluem para um elevado grau de incapacidade, susceptível de diminuir consideravelmente a respectiva capacidade aquisitiva em fases relativamente precoces da vida activa e do desenvolvimento da família e de fazer entrar quem a sofre num processo gradual de degradação económica e, concomitantemente, numa crescente necessidade de cuidados de suporte para as funções elementares da vida diária, a particular incidência da doença no território da Região é de molde a fazer que os problemas económicos e sociais decorrentes assumam aí um relevo diferenciado, que justifica a consideração da questão da definição de medidas previdenciais e de segurança social nesse domínio como predominantemente regional para efeito de direito de audição.
Acresce que a circunstância de, precisamente motivada por essa particularmente elevada taxa de prevalência da doença e pelas consequências económicas e sociais associadas, a Região ter anteriormente adoptado as medidas legislativas que os órgãos de soberania se dispunham a revogar, é por si só suficiente para impor que a adopção de tal acção revogatória tivesse sido precedida de audição dos órgãos de governo próprio da Região.
Com efeito, o legislador pretende actuar sobre um quadro legislativo criado pelo órgão legislativo regional, substituindo-o por uma solução de âmbito nacional. Exercer competências que incidam sobre actos de órgãos do governo próprio de uma região autónoma não pode deixar de ser concebido como questão respeitante a essa mesma região porque contende com o modo como foram actuados os respectivos poderes autonómicos, independentemente da questão da competência para a emissão do acto revogado.
Nestes termos, deveria a revogação dos artigos 2.º a 4.º do Decreto Legislativo Regional n.º 21/92-A ter sido precedido de audição dos órgãos de governo próprio da região, pelo que nesta parte a alínea c) do artigo 13.º da Lei n.º 90/2009, é inconstitucional, por violação do n.º 2 do artigo 229.º da Constituição.
12. O que acaba de ser dito relativamente à violação do dever de audição é transponível quanto à infracção ao mesmo parâmetro pela alínea d) do mesmo artigo 13.º da Lei n.º 90/2009 que revoga o Decreto Regulamentar Regional n.º 9/93-A, na medida em que este diploma regional regulamentava e, neste sentido, completava ou tornava efectiva a protecção especial prevista no Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A a favor dos portadores da “doença de Machado-Joseph” recenseados nos centros de saúde da Região.
13. Já quanto à matéria da revogação dos artigos 5.º e 6.º do Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A (apoios clínicos) a questão da violação do direito de audição fica prejudicada ou perde utilidade face à conclusão a que se chegou da sua inconstitucionalidade pelo fundamento anteriormente apreciado.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da alínea c) do artigo 13.º da Lei n.º 90/2009, de 31 de Agosto, na parte em que procede à revogação dos artigos 1.º, 5.º e 6.º do Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A, de 21 de Outubro, por violação conjugada das alíneas a) e j) do n.º 1 do artigo 227.º e do n.º 2 do artigo 228.º da Constituição;
b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do nº 2 do artigo 229.º da Constituição:
b1) da alínea c) do artigo 13.º da Lei n.º 90/2009, de 31 de Agosto, na parte em que revoga os artigos 2.º a 4.º do Decreto Legislativo Regional n.º 21/92/A;
b2) da alínea d) do mesmo artigo 13.º da Lei n.º 90/2009, de 31 de Agosto, que revoga o Decreto Regulamentar Regional n.º 9/93/A, de 6 de Abril.
Lisboa, 21 de Junho de 2011. – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes – Joaquim de Sousa Ribeiro – Carlos Pamplona de Oliveira – com declaração – Catarina Sarmento e Castro – Ana Maria Guerra Martins – José Borges Soeiro (Vencido, parcialmente, no que se refere ao segmento B1 da decisão, de acordo com a declaração de voto que junto) – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
O vício que afecta a conformidade constitucional das normas editadas pela Assembleia da República é o da violação do dever de audição dos órgãos de governo da Região. Obtida esta conclusão, seria – a meu ver – desnecessário prosseguir a análise do pedido, designadamente quanto à invocada violação da reserva de competência legislativa regional, em termos a que, aliás, não adiro.
E a verdade é que, pretendendo a Constituição que a actividade legislativa dos órgãos de soberania decorra de acordo com as exigências do princípio da cooperação com os órgãos regionais, o Tribunal deveria poupar a sua pronúncia quanto aos limites concretos da competência legislativa da Assembleia da República no âmbito desta matéria, tendo em conta a perempção que tal pronúncia necessariamente provoca no leque das opções que, eventualmente com o acordo da Região, à Assembleia da República caberá, a partir de agora, voltar a materializar.- Carlos Pamplona de Oliveira.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Fiquei vencido, relativamente ao segmento b)1 da decisão, porquanto de harmonia com a jurisprudência reiterada deste Tribunal, haverá direito de audição em matérias que “respeitem a interesses predominantemente regionais ou, pelo menos, mereçam, no plano nacional a um tratamento especifico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para estes territórios”.
Encontrando-se a matéria da atribuição e da fixação do valor das pensões de invalidez e subsídio de acompanhamento reservado à Assembleia da Republica, “ex vi” do artigo 63.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa e, embora haja uma especificidade da doença de Machado-Joseph, na Região Autónoma dos Açores, pelo facto de ela ter particular incidência epidemiológica, tal situação não releva, no que se refere às pensões, já que os diplomas regionais ora em causa (Decreto Legislativo Regional n.° 21/92/A, nos seus artigos 2.º a 4.º, e Decreto Regulamentar Regional n.° 9/93/A) não incidem sobre a doença ou os cuidados a disponibilizar aos doentes, mas antes sobre uma questão manifestamente pecuniária que consiste em fixar as condições e as fórmulas de cálculo das pensões atribuídas às pessoas portadoras da doença, matérias a merecer um tratamento uniforme.
Com efeito, tendo em vista os indivíduos que padecem de tal doença, têm de ser olhadas universalmente, e têm de ser tratadas segundo um sistema unitário, independentemente do número de pessoas afectadas na região, permite concluir que os efeitos da doença nas pessoas individuais não depende da zona do pais, aplicando-se antes ao todo nacional.
Assim, afigura-se-nos que, nesta sede, não haja um interesse predominantemente regional ou que, por si só, mereça na região tratamento específico.
De igual forma, não se pode invocar que o legislador teve em vista delimitar a disciplina das pensões de invalidez no âmbito regional ou que se propôs adoptar uma solução especial no que se refere às Regiões Autónomas, já que legislou, em termos uniformes, para todo o território nacional.
Nestes termos, nada impunha que obrigasse os órgãos de soberania à audição dos órgãos de governo da região, pelo que dissenti, que, neste contexto, se tivesse decidido pela violação do artigo 229.° n.° 2, da Constituição da República Portuguesa. – José Borges Soeiro.