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Processo n.º 301/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., mãe de dois menores consigo residentes, requereu junto do Tribunal de Família e Menores de Braga, a 19 de Junho de 2009, que a pensão de alimentos devida pelo pai dos menores, no montante mensal de 100 euros e que o mesmo não vinha pagando, fosse suportada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores [FGDAM], do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, por se encontrarem verificados os requisitos exigidos pelo artigo 3.° do Decreto-Lei n° 164/99, de 13 de Maio, que veio regulamentar a Lei n° 75/98, de 19 de Novembro.
Após instrução do pedido, e tendo havido parecer favorável do Ministério Público, proferiu o Tribunal de Família e Menores de Braga decisão condenando o FGDAM a pagar mensalmente a A. a pensão de alimentos relativa aos seus filhos menores, nos temos seguintes:
Condena-se o FGADM a pagar mensalmente a A. a pensão de alimentos relativa aos filhos menores B., nascido a ../../1992, e C., nascido a ../…/1999, no montante mensal de 100 euros por cada um deles, a que o devedor D. está legalmente obrigado.
(…)
O C.D.S.S. deverá observar o nº 5 do art. 4º D.L. 164/99, de 13/5, começando os pagamentos no mês seguinte à notificação do tribunal, ainda que sejam devidos os retroactivos desde o pedido (Junho de 2009) – decidindo-se assim não seguir a uniformização de jurisprudência por se entender que o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 12/2009 não estará em conformidade com a Constituição da República Portuguesa, nos termos acima expostos.
Desta decisão interpôs recurso para o Tribunal Constitucional o Ministério Público, por entender que nela se continha uma recusa de aplicação da norma constante do n° 5 do artigo 4.° do Decreto-Lei n° 164/99, de 13 de Janeiro, “na interpretação
fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n° 12/2009”.
Admitido o recurso no Tribunal Constitucional, nele apresentou alegações o recorrente, sustentando que estavam no caso perfeitos os pressupostos formais de conhecimento do objecto do recurso e pugnando, a final, pela confirmação do juízo de inconstitucionalidade feito pela instância, por entender que a norma em questão, com a interpretação que fora recusada, violaria os artigos 1.º, 8.°, 13.°, 24.°, 63.° e 67.° da Constituição.
Os recorridos não contra-alegaram.
II – Fundamentação
2. Sobre questão em tudo idêntica à constante dos autos já se pronunciou por diversas vezes o Tribunal, no sentido do não recebimento do recurso interposto pelo Ministério Público. Na verdade, disse-se na Decisão Sumária n° 121/10 (seguida, nomeadamente, pelas Decisões Sumárias n°s 167/10, 182/10, 183/10, 184/10, 185/10, 186/10, 187/10, 190/10, 191/10, 221/10, 222/10, 224/10, 232/10):
A norma do n.º 5 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 164/99 estabelece o seguinte: «O centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal».
Resulta do teor da sentença recorrida, especialmente da parte final do seu segmento decisório, que o tribunal não efectuou uma recusa de aplicação da norma do artigo 4.°, n.° 5, do Decreto-Lei n.° 164/99, de 13 de Maio, com fundamento em inconstitucionalidade.
Pelo contrário, essa norma foi aplicada como ratio decidendi do caso, tendo sido ao abrigo da mesma que o tribunal recorrido determinou que o CDSS iniciasse o pagamento das prestações de alimentos em causa.
Simplesmente, a decisão recorrida não aplicou tal norma, na parte respeitante ao momento em que se devem iniciar os pagamentos, com a interpretação que foi fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2009 aí citado, mas sim com a interpretação que o tribunal recorrido entendeu ser a correcta. Entendimento, esse, fundado, em boa medida, em razões, desenvolvidamente expostas, situadas no plano do direito infraconstitucional.
Resulta, na verdade, da fundamentação da sentença recorrida que esta não acolhe a interpretação constante do Acórdão n.º 12/2009 apenas por entender que a mesma é inconstitucional. Não o faz, antes disso, porque entende que a interpretação que está de acordo com as regras aplicáveis não é essa, mas sim a que, a final, entendeu seguir. De facto, quando na sentença se elencam quatro motivos de discordância da interpretação seguida no acórdão de uniformização, as primeiras razões invocadas prendem-se com a interpretação da norma no plano do direito ordinário (que não cabe a este Tribunal Constitucional sindicar); e só por último se acrescenta um motivo de inconstitucionalidade.
Ora, a escolha, entre duas interpretações, de uma delas, com o concomitante afastamento da outra interpretação, não é uma verdadeira recusa de aplicação de norma. E não o é mesmo quando a interpretação afastada o foi (também) por invocadas razões de inconstitucionalidade.
O facto de a interpretação que foi afastada pelo tribunal recorrido ser aquela que foi fixada em acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça não altera os dados da questão. Só assim seria se tal interpretação se impusesse como obrigatória para o tribunal recorrido. Só então é que o mesmo estaria habilitado a exercitar o poder-dever que o artigo 204.º da Constituição lhe confere, como último recurso para evitar a eficácia, no que diz respeito ao caso em juízo, dessa interpretação reputada inconstitucional.
Mas não tem essa eficácia a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça, apesar do valor “reforçado”, que implica que a decisão judicial que a contrarie é sempre susceptível de recurso - cfr. actual artigo 678.º, n.º 2, alínea c), do CPC (cfr. neste sentido, entre outros, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, 2003, Coimbra, 12-13, embora a propósito do regime anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto).
Não obstante a diversidade de matérias, a questão aqui em juízo apresenta uma estrutura problemática análoga à presente no Acórdão n.º 652/09, relatado pelo ora relator. Explicitou-se, neste Acórdão, uma orientação que aqui se reitera:
[U]m tribunal de instância pode provocar a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, e mediante o recurso obrigatório do Ministério Público, de uma interpretação que ele próprio faça – interpretação que seria a inevitável ratio decidendi da questão em juízo, não fora a decisão de inconstitucionalidade que sobre ela recai. O que não pode é, através de uma artificiosa recusa de aplicação, que consta da decisão, mas não é apoiada pela fundamentação, pôr o Tribunal Constitucional a decidir a constitucionalidade de uma interpretação que não é a sua, mas a de um outro tribunal.
Por ser este entendimento inteiramente transponível para a questão dos autos, entende-se que, também neles, se não proferiu decisão que recuse a aplicação de uma norma, da qual caiba recurso para o Tribunal Constitucional.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam em não conhecer do objecto do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 7 de Julho de 2011. – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.