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Processo n.º 117/2011
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que é recorrente A., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso com o seguinte fundamento:
[…]
Afirma o requerente, no requerimento de interposição do presente recurso, que invocou a questão de constitucionalidade relativa à dimensão normativa do artigo 412.º, n.º 4, in fine, do Código do Processo Penal questionada no requerimento de arguição de nulidade do acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 14 de Outubro de 2010, pelo que, em seu entender, estariam reunidos os pressupostos de admissibilidade do presente recurso de constitucionalidade.
Sucede, porém, que tem sido entendimento do Tribunal Constitucional que os incidentes pós-decisórios não são já meios idóneos e atempados para suscitar – em vista de ulterior recurso para este Tribunal – a questão de inconstitucionalidade relativa a matéria sobre a qual o poder jurisdicional do juiz a quo se esgotou com a decisão e num momento em que já não lhe é possível tomar posição sobre a mesma, apenas se dispensando o recorrente do ónus de invocar a inconstitucionalidade “durante o processo” nos casos excepcionais e anómalos em que este não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (v. Ac. n.º 366/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), situação excepcional e anómala essa cuja verificação in casu não foi sequer alegada, muito menos demonstrada, pelo requerente.
Assim, não se verificando nenhuma daquelas situações em que o recorrente estaria desonerado de suscitar previamente, de modo processualmente adequado, a questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida em termos de este estar obrigado a dela conhecer, tal como é exigido pelo artigo 72.º, n.º 2 da LTC, deve considerar-se, para todos os efeitos, incumprido esse ónus.
Assim, não pode o Tribunal Constitucional conhecer do presente recurso de constitucionalidade.
2. Notificado desta decisão, A. veio reclamar para a conferência, com os seguintes fundamentos:
1 – O fundamento da douta decisão reclamada para não conhecer o recurso consistiu na invocação de ser entendimento do Tribunal Constitucional que os incidentes pós-decisórios não são já meios idóneos e atempados para suscitar – em vista de ulterior recurso para o Tribunal Constitucional – a questão da inconstitucionalidade relativa a matéria sobre a qual o poder jurisdicional do juiz a quo se esgotou e num momento em que já não lhe é possível tomar uma posição sobre a mesma.
2 – Porém, resulta de uma simples leitura dos autos que, in casu, a questão da inconstitucionalidade foi suscitada antes de o poder jurisdicional do Tribunal da Relação de Évora se ter esgotado.
3 – Tanto assim é que o requerimento de arguição de nulidade no qual a questão da inconstitucionalidade foi invocada veio, efectivamente, a ser apreciado e decidido pelo Tribunal da Relação de Évora.
4 – O ónus de invocar a constitucionalidade foi, por conseguinte, exercido de forma idónea e atempada “durante o processo”.
5 – Não há, por conseguinte, que averiguar se estamos, ou não, perante um caso excepcional e anómalo em que o recorrente não tenha disposto processualmente dessa possibilidade.
6 – Nem há sequer que invocar qualquer carácter de imprevisibilidade ou excepcionalidade da interpretação feita pelo Tribunal da Relação de Évora da norma cuja inconstitucionalidade se suscitou
7 – Na realidade, é notório que no caso dos autos o recorrente não teve oportunidade de suscitar tal questão antes da prolação do Acórdão da Relação de Évora, dado que, só então, a norma – inconstitucional na interpretação que lhe foi dada – veio a ser invocada.
8 – É justamente este o entendimento que o Acórdão do Tribunal Constitucional 366/96, citado na douta decisão objecto da presente reclamação, veio a sufragar.
9 – Com efeito, a propósito da verificação do requisito da suscitação da questão de inconstitucionalidade “durante o processo”, decide-se pela forma seguinte no referido aresto:
“Simplesmente, a questão de inconstitucionalidade respeita às normas processuais que serviram, elas próprias, para a solução da arguição de nulidade, tendo o recorrente suscitado a questão da sua inconstitucionalidade logo no requerimento em que deduziu a nulidade, pelo que o Tribunal recorrido, não só teve oportunidade de se pronunciar sobre tal questão, como podia ainda fazê-lo por que o seu poder jurisdicional quanto à verificação da arguida nulidade (omissão de pronúncia) ainda não se esgotara. De resto, sendo as normas arguidas de inconstitucionais relevantes para a configuração da nulidade da decisão, o recorrente não tinha antes do momento em que suscitou a sua inconstitucionalidade outra possibilidade de o fazer. Tem, assim, de se entender que, em casos como o dos autos, a questão ainda foi suscitada durante o processo, com o sentido que a esta expressão é dado pela jurisprudência deste Tribunal”. – negrito nosso
10 – Foi precisamente o que se passou nos presentes autos, em que o recorrente invocou a inconstitucionalidade da norma processual – 412°, n.° 4 do Código do Processo Penal – com base na qual foi perpetrada a nulidade invocada (falta de pronúncia sobre questões que devesse apreciar) e com base na qual veio a ser proferida a decisão sobre a própria arguição de nulidade, ainda que esta se tenha limitado a corroborar o mesmo entendimento que havia sufragado no Acórdão inicial.
11 – O recorrente, ora reclamante, cumpriu, por conseguinte, todos os requisitos processuais para que o recurso fosse admitido.
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional respondeu à reclamação nos seguintes termos:
[…]
14°
Por outro lado, crê-se que assiste alguma razão ao ora reclamante, quando este invoca que “a questão de constitucionalidade foi suscitada antes de o poder jurisdicional do Tribunal da Relação de Évora se ter esgotado” (cfr. fls. 574, 577 dos autos).
Ou quando acrescenta, logo a seguir (cfr. fls. 574-576, 577 frente e verso e 578 dos autos):
“3 – Tanto assim é que o requerimento de arguição de nulidade no qual a questão da inconstitucionalidade foi invocada veio, efectivamente, a ser apreciado e decidido pelo Tribunal da Relação de Évora.” (cfr. supra igualmente n° 7 do presente parecer).
Ou quando invoca ainda, um pouco mais adiante (ibidem):
“7 – Na realidade, é notório que no caso dos autos o recorrente não teve oportunidade de suscitar tal questão antes da prolação do Acórdão da Relação de Évora, dado que, só então, a norma – inconstitucional na interpretação que lhe foi dada – veio a ser invocada.” [...]
10 – Foi precisamente o que se passou nos presentes autos, em que o recorrente invocou a inconstitucionalidade da norma processual – 412°, n° 4 do Código do Processo Penal – com base na qual foi perpretada a nulidade invocada (falta de pronúncia sobre questões que devesse conhecer) e com base na qual veio a ser proferida a decisão sobre a própria arguição de nulidade, ainda que esta se tenha limitado a corroborar o mesmo entendimento que havia sufragado no Acórdão inicial.”
15º
Não se afigura, com efeito, expectável que, antes da prolação do Acórdão, de 14 de Outubro de 2010, do Tribunal da Relação de Évora, o arguido pudesse ter percepcionado, ou previsto, a interpretação que o referido tribunal superior faria do art. 412°, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.
Nessa medida, crê-se que a presente reclamação para a conferência merece provimento, devendo, assim, o processo seguir os seus ulteriores termos.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
4. O reclamante alega que, ao contrário do que é sustentado na decisão sumária proferida nos autos, a questão de constitucionalidade foi suscitada antes de o poder jurisdicional do Tribunal da Relação de Évora se ter esgotado, o que, em seu entender, seria demonstrado, desde logo, pelo facto de o requerimento de arguição de nulidade do acórdão, no qual a questão de constitucionalidade foi invocada, ter sido, efectivamente apreciado e decidido pelo Tribunal da Relação de Évora.
Assim sendo, entende o reclamante que deu cumprimento ao ónus de suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo.
Verificando-se esse pressuposto processual, não haveria, segundo o reclamante, que invocar qualquer carácter de imprevisibilidade ou excepcionalidade da interpretação feita pelo Tribunal da Relação de Évora.
Na sequência desse seu entendimento, afirma ainda o reclamante que é notório que no caso dos autos não teve oportunidade de suscitar tal questão antes da prolação do Acórdão da Relação de Évora, dado que, só então, a norma, com a interpretação que lhe foi dada, foi aplicada. Para o efeito, o reclamante cita o Acórdão n.º 366/96.
Não tem razão o reclamante.
5. Desde logo, não tem razão o reclamante ao considerar que cumpriu o ónus de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, da questão de constitucionalidade.
Não cumpriu tal ónus, porque, conforme se disse na decisão sumária reclamada, tem sido entendimento do Tribunal Constitucional que os incidentes pós-decisórios não são já meios idóneos e atempados para suscitar – em vista de ulterior recurso para este Tribunal – a questão de inconstitucionalidade relativa a matéria sobre a qual o poder jurisdicional do juiz a quo se esgotou.
E não tem razão o reclamante ao sustentar que no caso dos autos o poder jurisdicional do juiz a quo não se havia ainda esgotado, algo que, aliás, no seu entender, seria demonstrado, desde logo, pelo facto de o requerimento de arguição de nulidade do acórdão, no qual a questão de constitucionalidade foi invocada, ter sido, efectivamente apreciado e decidido pelo Tribunal da Relação de Évora.
Desde logo, no que respeita a este último aspecto, não é verdade que o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, que indeferiu a arguição de nulidade apresentada, tenha efectivamente apreciado e decidido o que quer que seja relacionado com o objecto do acórdão cuja nulidade havia sido arguida. Antes pelo contrário, nele afirma-se expressamente que o modo de reagir contra a decisão anterior seria o recurso, se a lei o permitisse, e não a reclamação, razão pela qual a arguição de nulidade foi indeferida. Tal significa que aí se entendeu justamente que o poder jurisdicional do tribunal se havia esgotado quanto à matéria objecto de decisão no seu acórdão anterior.
A isso acresce que não tem qualquer sentido pretender o contrário com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional.
No acórdão n.º 366/96, citado na reclamação, estava-se perante uma situação em que a questão de constitucionalidade respeitava às normas processuais que serviram de base para a solução da arguição de nulidade, i. é, que diziam respeito a matéria relativa ao próprio incidente pós-decisório, com total autonomia em relação à matéria controvertida no processo principal.
Ora, a norma questionada nos presentes autos não se reporta a matéria relativa ao próprio incidente pós-decisório, não tendo por isso qualquer autonomia em relação à matéria controvertida objecto de decisão no acórdão principal.
Tal significa que, conforme se decidiu na decisão sumária reclamada, a suscitação da questão de constitucionalidade relativa a norma aplicada pelo acórdão principal em sede de incidente pós-decisório se não pode considerar como satisfazendo o ónus de suscitar previamente, de modo processualmente adequado, a questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida em termos de este estar obrigado a dela conhecer, tal como é exigido pelo artigo 72.º, n.º 2 da LTC.
E não pode justamente por relativamente a essa questão o poder jurisdicional do tribunal a quo se ter já esgotado, não estando o tribunal em condições de conhecer da questão de constitucionalidade nesses termos suscitada. Foi isso mesmo que decidiu o tribunal a quo no caso dos autos, ao não ter tomado conhecimento dessa questão e por isso indeferindo a arguição de nulidade.
6. Estando assente que o recorrente não cumpriu o ónus de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, da questão de constitucionalidade que integra o objecto do presente recurso, questão diferente é a de saber se, ainda assim, se pode considerar que, no caso dos autos, o recorrente estaria dispensado desse ónus, dada a natureza surpreendente e imprevisível da decisão.
Simplesmente, como se retira da decisão sumária reclamada, tal possibilidade fica desde logo prejudicada pela circunstância de o recorrente não ter oportunamente – logo no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade – alegado, muito menos demonstrado, verificar-se in casu um daqueles casos excepcionais e anómalos em que, não tendo este disposto processualmente da possibilidade de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, o recorrente pudesse considerar-se dispensado desse ónus.
E não se diga – como afirma o reclamante na reclamação – que é notório que no caso dos autos o recorrente não teve oportunidade de suscitar tal questão antes da prolação do Acórdão da Relação de Évora, dado que, só então, a norma, com a interpretação que lhe foi dada, foi aplicada. É que, como o Tribunal Constitucional disse no seu Acórdão n.º 213/2004 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “[é], no entanto, de exigir que o invocado elemento surpresa decorra de regras de interpretação e aplicação lógicas e, por isso, se impõe que sobre aquele que alega essa circunstância recaia o ónus de explicitar os factores, objectivos, que possam conduzir o tribunal a aceitar uma tal conclusão. É assim insuficiente afirmar, de modo conclusivo, que a aplicação da norma foi inesperada ou surpreendente, se não se aponta com o necessário rigor quer a formulação da interpretação normativa usada, quer a razão pela qual, em atenção à fase processual verificada, foi impossível ao interessado suscitar atempadamente a questão. Na verdade, a jurisprudência do Tribunal tem vincado que «só em casos excepcionais e anómalos» em que o recorrente não dispôs processualmente da possibilidade da suscitação atempada da questão é que será «admissível» a arguição em momento subsequente (Acórdãos 62/85, 90/85 e 160/94 in AcTC, 5º vol., p. 497 e 663 e DR, II, de 28MAI94) o que faz recair sobre o recorrente o dito ónus de expor, com a devida concretização, as circunstâncias pelas quais lhe foi impossível suscitar a questão de forma adequada”.
Mesmo na hipótese de se admitir que a reclamação para a conferência seria ainda o momento processual adequado para o recorrente cumprir esse ónus – questão que o Tribunal Constitucional não tem aqui que decidir – a verdade é que o recorrente, ora reclamante, não oferece qualquer justificação que sustente a natureza surpreendente, imprevisível e inesperada da interpretação feita pela decisão recorrida.
Aliás, o reclamante o que diz é que não haveria sequer que invocar qualquer carácter de imprevisibilidade ou excepcionalidade da interpretação feita pelo Tribunal da Relação de Évora da norma cuja inconstitucionalidade suscitou, porquanto é notório que no caso dos autos o recorrente não teve oportunidade para suscitar tal questão antes da prolação do acórdão.
Simplesmente, resulta da jurisprudência do Tribunal Constitucional que, mesmo admitindo que em casos excepcionais e anómalos o recorrente possa estar dispensado do ónus de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, da questão de constitucionalidade, tal não significa que o mesmo esteja dispensado do ónus de alegação e justificação da razão pela qual, em atenção à fase processual verificada, foi impossível ao interessado suscitar atempadamente a questão, considerando-se insuficiente afirmar, de modo conclusivo, que a aplicação da norma foi inesperada ou surpreendente.
Ora, se assim é, então é manifestamente infundado o argumento de que não haveria sequer que invocar qualquer carácter de imprevisibilidade ou excepcionalidade da interpretação feita pelo Tribunal da Relação de Évora. Antes pelo contrário, tal invocação seria condição necessária – ainda que insuficiente – para que o Tribunal Constitucional pudesse apreciar a questão de saber se se estaria ou não perante um daqueles casos anómalos e excepcionais em que o recorrente estaria dispensado do ónus de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, da questão de constitucionalidade.
No entender do reclamante, essa desnecessidade decorreria da circunstância de o recorrente ter cumprido o ónus de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, da questão de constitucionalidade.
Simplesmente, uma vez que, pelas razões que assinalámos (v., supra, n. 5), se não pode considerar cumprido o ónus de suscitação prévia, caso pretendesse que, apesar disso, o Tribunal Constitucional conhecesse do recurso interposto, o recorrente teria que alegar e demonstrar estarmos perante uma situação excepcional e anómala em que não tivesse disposto processualmente da possibilidade de suscitação prévia da questão de constitucionalidade. Tal alegação e prova não foi feita.
Assim, confirma-se a decisão sumária reclamada de não conhecimento do recurso.
III – Decisão
7. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 27 de Abril de 2011.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.