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Processo n.º 871/10
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 65/2011, que ora se transcreve:
“I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e B., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão proferido, pela 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em 07 de Outubro de 2010 (fls. 1037 a 1098), para que seja apreciada a “inconstitucionalidade da norma resultante do douto acórdão recorrido, ao considerar que o direito ao bom nome e reputação constitui um limite à liberdade de expressão e de informação que, no caso dos autos, limitaria o direito do Recte a informar os Munícipes quanto às conclusões de um inquérito aos Serviços da Câmara Municipal” (fls. 1104).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 1113 e 1113-verso), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum ou alguns desses pressupostos não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Ora, o recorrente não cumpriu nem com o disposto no n.º 1, nem com o disposto no n.º 2 do artigo 75º-A da LTC, na medida em que não indicou qual o concreto preceito legal do qual pode extrair-se determinada norma ou interpretação normativa, nem tão pouco indicou quais as normas ou princípios constitucionais que considera violados. Note-se que a mera referência à “norma resultante do douto acórdão recorrido” não constitui delimitação bastante do objecto do presente recurso, visto que não cabe a este Tribunal determinar qual a concreta norma ou interpretação normativa aplicada pela decisão recorrida.
É certo que tais omissões poderiam ser suprimidas mediante convite ao aperfeiçoamento, formulado ao abrigo do n.º 6 do artigo 75º-A da LTC. Se a tramitação nos autos o permitisse, não se absteria a Relatora de o fazer. Contudo, compulsados os autos, verifica-se que, mesmo que o recorrente viesse a suprir essas omissões, sempre subsistiria outro fundamento que obstaria ao conhecimento do objecto do presente recurso – a falta de suscitação processual adequada de qualquer questão de constitucionalidade normativa (artigo 72º, n.º 2, da LTC).
Conforme se demonstrará, o recorrente nunca suscitou, perante o tribunal recorrido, qualquer questão de fiscalização da constitucionalidade de uma precisa e determinada norma jurídica, pelo que o eventual convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso sempre corresponderia a um acto processual inútil, na medida em que o Tribunal Constitucional permaneceria impedido de conhecer do objecto do recurso interposto.
4. Quem recorre com base na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, vê recair sobre si o ónus de prévia e adequada suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa, de modo a que o tribunal recorrido possa decidi-la (artigo 72º, n.º 2, da LTC). Ora, apesar de o recorrente afirmar tê-lo feito quer nas motivações (fls. 963 a 970), quer nas respectivas conclusões de recurso (§§ 12 a 24, a fls. 1025 e 1026), não pode corroborar-se esse entendimento.
Por um lado, nas motivações de recurso, o recorrente limita-se a discutir, no plano infra-constitucional, se o exercício da liberdade de expressão e do direito de informação, tal como previsto no artigo 37º da Constituição da República Portuguesa (CRP), constitui uma causa de justificação do ilícito típico criminal por si praticado.
Por outro lado, das conclusões de recurso extrai-se o reforço desta linha de argumentação, tendo o recorrente procurado demonstrar que a sua conduta não implica a respectiva responsabilização penal pela prática de um crime de difamação.
Senão vejamos:
“12 - A sentença recorrida peca por defeito na sua análise doutrinária dos direitos em confronto, o que se diz com todo o respeito, ancorando-se apenas nos conceitos de honra e consideração, e descurando outras realidades com tutela constitucional, como sejam o direito à informação, o dever de informar e a liberdade de expressão.
13 - O Recte. deu a entrevista em causa no seu legítimo uso do direito consagrado no art. 37° da CRP não cometendo qualquer ilícito.
14 - A referida entrevista surge na sequência de um inquérito ao funcionamento de serviços da Câmara de Coruche.
15 - Nesse inquérito apurou-se que o Assistente era oficialmente Técnico Profissional de Biblioteca na Biblioteca Municipal de Coruche, que o pagamento dos serviços ‘gratificados’ prestados pelos Bombeiros Voluntários era ilegal, e que os rendimentos auferidos pelo Assistente, para além dos que lhe eram devidos pela sua categoria profissional, eram “semi-ilegais” (sic), não sendo também emitidos quaisquer recibos pelos Bombeiros, referentes às quantias recebidas, tendo o Assistente consciência da ilegalidade que rodeava esta situação.
16 - Toda esta factualidade foi discutida nos órgãos municipais e gozou de divulgação pública, não se conhecendo que o Assistente alguma vez tenha actuado em defesa da sua honra ofendida, não reagindo também quando deixou de receber gratificações por parte da Câmara, aceitando assim a reposição da legalidade, nem quando, por decisão do Presidente da Câmara, cessou funções como Comandante de Bombeiros.
17 - No seguimento desta destituição, o Recte. prestou esclarecimentos, em entrevista exclusivamente orientada pelo jornalista, respondendo às questões que lhe foram colocadas sobre os resultados do inquérito, com particular incidência nas irregularidades detectadas nos Bombeiros, tidas como mais pertinentes e interessantes do ponto de vista jornalístico por parte do entrevistador.
18 - O Recte. agiu de acordo com o seu direito constitucionalmente consagrado à liberdade de expressão, pendendo também sobre si um dever de informação aos munícipes, pois estes tinham claramente interesse em conhecer os resultados de um inquérito conduzido pela sua autarquia aos seus serviços municipais, não se podendo afirmar que o Recte. tenha praticado, com a sua conduta, qualquer crime.
19 - Os direitos ao bom nome e à honra têm a mesma consagração constitucional que a liberdade de expressão e o direito de informar devendo analisar-se, em caso de conflito, onde termina a esfera de um e começa o exercício de outro, sendo fundamental na presente acção descortinar se o Recte. exerceu de forma excessiva os seus direitos, incorrendo na prática de um crime de difamação.
20 - É entendimento da melhor doutrina, aqui trazida à colação na pessoa do Professor Figueiredo Dias, que um entendimento excessivamente amplo do conceito de honra, e do direito à sua defesa, contende inaceitavelmente com o direito de informar e com a liberdade de expressão, podendo o receio de incriminação funcionar como uma forma de auto-censura.
21 - Para não esvaziar de conteúdo os dois referidos direitos, propõe este Autor introduzir limitações à protecção do bom nome e da honra, sugerindo como requisitos para uma admissível lesão da honra o exercício do direito fundamental de informação, a actuação dentro da sua “função pública”, e a “verdade das imputações”.
22 - Ora, é por demais evidente que todos estes requisitos se encontram preenchidos no caso sub judice, pois as suas declarações foram proferidas pelo Assistente, no seu exercício do direito de informar, sujeito a um dever de informação perante os seus munícipes, e limitando-se a divulgar o conteúdo de um inquérito oficial.
23 - Para mais, o Tribunal deu como provado que o Recte. não agiu com o “propósito de atingir, ofender ou denegrir, pessoal ou profissionalmente o assistente”, sendo “tido como pessoa honesta, íntegra, rigorosa e empenhada em assegurar o cumprimento das regras vigentes”.
24 - Face ao exposto, só se poderia concluir que não ocorreu qualquer crime de difamação, incorrendo a sentença recorrida, por entender contrariamente, em inconstitucionalidade por redução inaceitável do conteúdo do direito de informar, violando a norma constante do art. 37º da CRP.” (fls. 1025 e 1026)
Por último, sublinhe-se que o recorrente, além de nunca invocar a inconstitucionalidade de uma precisa e determinada norma jurídica, limitando-se a invocar o seu direito fundamental de informação, ainda imputa uma alegada inconstitucionalidade à própria decisão jurisdicional (cfr. § 24, já transcrito). Recorde-se que, no actual sistema português de fiscalização, o Tribunal Constitucional apenas dispõe de poderes para sindicar a constitucionalidade de “normas jurídicas”, conforme decorre do n.º 1 do artigo 277º da CRP, não gozando de poderes que lhe permitam sindicar a constitucionalidade das decisões jurisdicionais, em si mesmas.
Em conclusão, a falta de suscitação processualmente adequada da inconstitucionalidade de uma específica norma ou interpretação normativa implica a recusa de conhecimento do objecto do presente recurso, em estrito cumprimento do n.º 2 do artigo 72º da LTC.”
2. Inconformado com tal decisão, o recorrente limitou-se a apresentar reclamação, “considerando haver fundamentos para a admissão do recurso” (fls. 1129).
3. Devidamente notificado, o Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação ora em apreço, nos seguintes termos:
“1º
Pela Decisão Sumária n.º 65/2011, não se conheceu do objecto do recurso, porque durante o processo o recorrente não tinha suscitado uma questão de inconstitucionalidade normativa.
2º
Na verdade, como claramente vem demonstrado na Decisão Sumária, na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Évora, o recorrente não só não invoca a inconstitucionalidade de uma determinada norma jurídica - limitando-se a invocar o seu direito fundamental de informação -, como também imputa uma suposta inconstitucionalidade à própria decisão, na altura recorrida.
3.º
Na reclamação, o recorrente limita-se a reclamar para a conferência, não adiantando, assim, quaisquer argumentos que possam abalar os fundamentos da decisão reclamada.
4.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Apesar de deduzir reclamação da decisão sumária proferida nos autos, o recorrente não fundamenta, nem sequer implicitamente, a sua discordância, limitando-se a afirmar que considera que o recurso deveria ter sido admitido e, portanto, ter seguido para alegações.
Perante a ausência de fundamentos que sustentem a reforma da decisão reclamada, impõe-se apenas confirmá-la, em virtude da manifesta falta de suscitação processualmente adequada de qualquer questão normativa, perante o tribunal recorrido.
III – Decisão
Nestes termos, pelos fundamentos supra expostos e ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 77º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 24 de Março de 2011.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.