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Processo n.º 593/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. No presente incidente de actualização de pensões por acidente de trabalho, que correu termos perante o Tribunal de Trabalho de Setúbal, por decisão de 31 de Maio de 2010, foi recusada a aplicação da norma do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 185/2007, de 10 de Maio, na parte em que aditou um n.º 5 ao artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril, e, nesse sentido, determinou-se que o Fundo de Acidentes de Trabalho, regulamentado por esse diploma, e ao caso aplicável, procedesse ao pagamento do diferencial das pensões devidas aos beneficiários, quer pela parte da remuneração não transferida para a seguradora, quer pelas pensões agravadas, devidas em consequência da actuação culposa da entidade patronal.
Para tanto, considerou-se que a norma em causa, ao alterar a redacção do artigo 1.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 142/99, restringe direitos dos trabalhadores em matéria de acidentes de trabalho, e foi emitida sem precedência de autorização legislativa e sem indicação expressa de ter sido editada em desenvolvimento dos princípios ou bases gerais da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (que aprovou a Lei dos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais), e encontra-se, por isso, inquinada de inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva relativa de competência da Assembleia da República; além de que, ao excluir a responsabilidade do Fundo pelo pagamento da parte correspondente ao agravamento das pensões resultante de actuação culposa da entidade empregadora, enferma também de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade, na medida em que faz depender o direito à justa reparação da capacidade económica da respectiva entidade patronal.
Tendo sido interposto recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, veio o Ministério Público, no seguimento do processo, apresentar as suas alegações, em que conclui do seguinte modo:
1. O presente recurso foi interposto, pelo Ministério Público, como recurso obrigatório, “nos termos do artigo 70º, n.º 1 alínea a)” da LOFTC.
2. Vem impugnada a douta sentença, do Tribunal do Trabalho de Setúbal, de 31 de Maio de 2010, proferida nos autos de “Acidente de Trabalho – Morte (Fase Contenciosa)”, Proc. n.º 920/07.1TTSTB, em que é beneficiária A., entidade responsável a Companhia de Seguros B., SA e interveniente acidental o Instituto de Seguros de Portugal – FAT.
3. É um recurso por inconstitucionalidade (decisão positiva), emergente da recusa de aplicação [“declara-se a inconstitucionalidade”] do artigo 2º do Decreto-lei 185/2007, de 10 de Maio, na parte em que introduz um novo n.º 5 ao artigo 1º do Decreto-lei 142/1999, de 30 de Abril”.
4. O art. 2º do DL n.º 185/2007, cit., na parte em que adita um novo n.º 5 ao art. 1º do DL n.º 142/1999, cit., tem carácter inovatório face ao regime deste último diploma, pois lhe adita uma nova norma disciplinando o âmbito das prestações subsidiariamente garantidas pelo FAT, por facto de “acidente de trabalho”, no sentido de as restringir às “prestações que seriam devidas caso não tivesse havido actuação culposa” da entidade responsável.
5. Interveio, assim, o Governo-legislador numa “dimensão essencial” da garantia, qual seja a da extensão das prestações (geral e agravada, na lei antiga, só a geral, na lei nova, mais restritiva) da responsabilidade do FAT.
6. Portanto, em última análise a norma, ora em exame, conformou, inovatória e restritivamente, uma “dimensão essencial” do conteúdo do “direito dos trabalhadores” à percepção de “justa reparação”, quando vítimas de “acidente de trabalho” [CRP, art. 59.º, n.º 1, al. f)].
7. Ora, como é jurisprudência reiterada deste Tribunal Constitucional, o “direito dos trabalhadores” à percepção de “justa reparação”, quando vítimas de “acidente de trabalho”, é um “direito fundamental de natureza análoga” aos “direitos, liberdades e garantias”.
8. De modo que é de aplicar a este “direito (fundamental) dos trabalhadores” o regime dos “direitos, liberdades e garantias” [CRP, arts. 17.º e 59.º, n.º 1, al. f)]. Nomeadamente o respectivo regime orgânico, em particular a reserva relativa de lei parlamentar que, tipicamente, é seu timbre [CRP97, art. 165.º, n.º 1, al. b), e 198.º, n.º 1, al. b), e n.º 3].
9. No caso, porém, o Governo emanou o diploma, onde consta a norma arguida de inconstitucionalidade, no exercício da sua competência legislativa, concorrente com a do Parlamento, portanto, sem estar credenciado com a autorização legislativa que, no caso, era exigida [CRP97, arts. 17.º, 59.º, n.º 1, al. f), 165.º, n.º 1, al. b), e 198.º, n.º 1, al. b), e n.º 3].
10. Com o que usurpou competência legislativa reservada ao Parlamento, salvo autorização ao Governo, infringindo, assim, disposições orgânicas da Constituição, donde a norma constante do art. 2º do DL n.º 185/2007, cit., na parte em que introduz um novo n.º 5 ao art. 1º do DL n.º 142/1999, cit., enfermar de inconstitucionalidade orgânica, o que a torna inválida (CRP, art. 3.º, n.º 3, 17.º, 59.º, n.º 1, al. f), e 165.º, n.º 1, al. b) e 198.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, e 277.º, n.º 1).
Não houve contra-alegações.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
2. A Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, que aprovou a Lei dos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (entretanto revogada pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho), estabelece a criação de um fundo, dotado de autonomia financeira e administrativa, no âmbito dos acidentes de trabalho, destinado a prevenir que os pensionistas de acidentes de trabalho deixem de receber as pensões que lhe são devidas, prevendo para isso que o fundo garanta «o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho sempre que, por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, não possam ser pagas pela entidade responsável» (artigo 39.º).
No desenvolvimento do regime jurídico estabelecido por esse diploma, e com invocação do disposto nas alíneas a) e c) do artigo 198.º da Constituição, o Governo, através do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril, veio regulamentar o referido fundo, designado como Fundo de Acidentes de Trabalho, conferindo-lhe, entre outras, competências para garantir o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho sempre que verifique alguma das situações mencionadas no citado artigo 39.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97 (artigo 1º, n.º 1, alínea a)).
Entretanto, foi publicado o Decreto-Lei n.º 185/2007, de 10 de Maio, que alterou a redacção de diversas disposições do referido Decreto-Lei n.º 142/99 e lhe aditou os artigos 5.º-A e 5.º-B. Como se depreende da respectiva nota preambular, esse diploma teve em vista, «proceder a alguns ajustamentos no respectivo regime jurídico, de forma a clarificar aspectos que se têm vindo a colocar, quer no relacionamento com as empresas de seguros, quer com os tribunais». E nesse sentido, explicita-se que, do ponto de vista do âmbito da intervenção do Fundo, se pretende «limitar as suas responsabilidades às previstas no artigo 296.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, visando excluir a responsabilidade do Fundo pelo pagamento de indemnizações por danos não patrimoniais imputados à entidade empregadora, em termos equivalentes à responsabilidade das seguradoras, mas também excluir da responsabilidade do FAT o pagamento da parte correspondente ao agravamento das pensões resultante de actuação culposa por parte da entidade empregadora, sem prejuízo do n.º 3 do artigo 303.º daquele Código».
Assim se compreende que tenha vindo a ser conferida uma nova redacção ao artigo 1.º do referido Decreto-Lei n.º 142/99, com o aditamento de um n.º 5, que passou a consignar o seguinte:
Verificando-se alguma das situações referidas no n.º 1 do artigo 295.º, e sem prejuízo do n.º 3 do artigo 303.º, todos da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, o FAT responde apenas pelas prestações que seriam devidas caso não tivesse havido actuação culposa.
Resta acrescentar que o referido diploma foi emitido pelo Governo nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 198º da Constituição e tem como objecto, como expressamente resulta do seu artigo 1.º, alterar «o regime jurídico do Fundo de Acidentes de Trabalho, criado pelo Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril».
Neste contexto jurídico, o tribunal recorrido decidiu não aplicar a norma do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 185/2007, na parte em que aditou um n.º 5 ao artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 142/99, desde logo com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, argumentando no essencial o seguinte: ao limitar a responsabilidade do Fundo às prestações que seriam devidas caso não tivesse havido actuação culposa da entidade empregadora, o legislador está restringir os direitos dos trabalhadores em matéria de justa reparação de acidentes de trabalho, na medida em que impede que estes possam ser ressarcidos pela totalidade da indemnização que fosse devida em caso de responsabilidade agravada; o Governo não dispunha de autorização parlamentar para emitir legislação nessa matéria, nem invocou expressamente a Lei dos Acidentes de Trabalho como parâmetro para intervir no desenvolvimento do regime jurídico estatuído por esse diploma, como lhe era imposto pelo artigo 198º, n.º 1, alínea c), e n.º 3, da Constituição; e invadiu assim a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, coberta pelo artigo 165º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
Apreciando este primeiro fundamento de inconstitucionalidade, não pode deixar de reconhecer-se que o direito à justa reparação pelos acidentes de trabalho, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, que pode ter, em certas circunstâncias, um conteúdo análogo a um direito, liberdade e garantia, é, em geral, um direito positivo que habilita o legislador a adoptar políticas legislativas orientadas no sentido da protecção dos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho. Não é, todavia, certo que o conteúdo principal desse direito, determinado ou determinável ao nível das opções constitucionais, inclua a intervenção garantística do Fundo de Acidentes de Trabalho a que se refere o Decreto-Lei n.º 142/99.
Aceitando o princípio de que também os preceitos relativos aos direitos sociais têm um mínimo de conteúdo determinável por interpretação em referência à Constituição, importa em todo o caso distinguir entre os direitos a prestações relativamente aos quais as normas constitucionais fornecem os elementos e critérios necessários e suficientes à sua aplicação, e que poderão considerar-se como de execução vinculada da Constituição, e aqueles outros cuja concretização depende de uma maior ou menor margem de conformação do legislador ordinário e, por isso, de uma intervenção legislativa autónoma que defina o respectivo conteúdo (cfr. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4ª edição, Coimbra, págs. 176-178).
E é de entender, neste quadro de análise, que o regime de direitos, liberdades e garantias, designadamente no que respeita à reserva de competência da Assembleia da República, é aplicável aos direitos susceptíveis de concretização ao nível constitucional, mas não já àqueles que, para além de um mínimo exigível, se tornam líquidos e certos no plano da legislação ordinária (Idem, pág. 176).
No caso vertente, o direito à justa reparação por acidentes de trabalho é perspectivado, não como um direito à segurança social destinado a proteger os cidadãos em situações de falta ou insuficiência de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho, mas como um direito dos trabalhadores no âmbito da legislação do trabalho, baseado num regime de responsabilidade civil do empregador tendo em vista a recuperação do sinistrado, segundo o princípio da restauração natural, ou a fixação de uma compensação pecuniária em caso de morte ou incapacidade para o trabalho, e que pressupõe, como garantia de pagamento, a obrigatoriedade de transferência da responsabilidade do empregador para uma instituição seguradora.
Visando essencialmente a criação de um regime indemnizatório de direito privado que se centra na relação entre o sinistrado, a entidade empregadora e a seguradora, o direito consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, não impõe, no seu núcleo essencial, uma directa intervenção estadual através da atribuição de prestações materiais que destinem a suprir quaisquer eventualidades de insuficiência económica da entidade patronal, ou da própria seguradora, ou outras situações de impossibilidade objectiva de satisfação do crédito.
E, nesse sentido, não é possível afirmar que a criação do Fundo de Acidentes de Trabalho, a que se refere o Decreto-Lei n.º 142/99, constituísse uma medida legislativa directamente imposta pelo preceito constitucional, e que, como tal, se encontre abrangida pelo regime de direitos, liberdades e garantias.
Revertendo ao caso concreto, importa começar por notar que a Lei dos Acidentes de Trabalho (Lei n.º 100/97) foi aprovada pela Assembleia da República ao abrigo da competência deferida pela alínea c) do artigo 161º da Constituição (anteriormente prevista no artigo 164.º, alínea d)), e foi, assim, emitida no âmbito da competência genérica do Parlamento, tendo vindo a prever, no seu artigo 39.º, um regime de garantia do pagamento de pensões e indemnizações por acidente de trabalho, quando se verificassem situações de impossibilidade de obter o ressarcimento através da entidade directamente responsável, através de um «fundo, dotado de autonomia administrativa e financeira, a criar por lei, no âmbito dos acidentes de trabalho».
O Governo veio justamente concretizar o regime jurídico definido no citado artigo 39º, através do Decreto-Lei n.º 142/99, não deixando de declarar, no respectivo preâmbulo, que intervinha «no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e nos termos das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição».
A alusão à alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º logo indicia, que, do ponto de vista do autor da norma, o diploma, embora tenha sido editado no âmbito do desenvolvimento de uma lei da Assembleia da República, se reporta a matérias não expressamente reservadas ao Parlamento, e que, como tal, poderiam considerar-se compreendidas na esfera concorrencial de competência do Governo. Não estando em causa, por outro lado, qualquer aspecto atinente à reserva de competência da Assembleia da República, como se deixou entrever, nada impunha que o diploma fosse produzido mediante decreto-lei autorizado - cfr. proémio do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição (quanto ao sentido útil a atribuir à interpretação conjugada das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 198.º, cfr. Carlos Blanco Morais, Curso de Direito Constitucional, Tomo I, Coimbra, 2008, pág. 306).
Assim sendo, o Governo agiu, como tudo indica, no uso dos seus poderes de complementação legal, intervindo numa lógica de repartição de tarefas no exercício da actividade legiferante sobre uma dada matéria, por força da remissão feita pelo dito artigo 39º da Lei n.º 100/97.
É patente, neste circunstancialismo, que o Governo não só pode alterar o diploma de desenvolvimento, como pode revogá-lo e substitui-lo por outro. E para introduzir qualquer nova redacção nas disposições do decreto-lei complementar não carece nem de qualquer prévia autorização legislativa (que só seria necessária se o diploma originário fosse produzido no uso de autorização), nem de invocar expressamente que intervém no exercício de uma competência complementar.
Poderá colocar-se, em todo o caso, a questão de saber – aspecto também invocado pelo tribunal recorrido – se o Decreto-Lei n.º 185/2007 devia cumprir a formalidade prevista no n.º 3 do artigo 198.º da Constituição, mencionando expressamente a Lei dos Acidentes do Trabalho como lei de bases ao abrigo da qual era produzida.
O ponto é que o dever de invocação expressa da lei habilitante previsto naquele preceito constitucional só opera quando o Governo actua no âmbito de uma competência legislativa derivada para desenvolvimento das leis de bases, hipótese em que o decreto-lei está subordinado à lei da Assembleia da República. No entanto, no caso, não só a Lei de Acidentes de Trabalho não se auto-qualifica formalmente como lei de bases, como também a intervenção legislativa do Governo pode justificar-se, não por constituir um desenvolvimento dessa Lei, mas por se reportar a matéria cuja regulamentação foi expressamente remetida, através do artigo 39.º, para o legislador ordinário.
E o certo é que o legislador foi claro ao enunciar, no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 185/2007, que este diploma tinha por objecto apenas alterar o regime jurídico do Fundo de Acidentes de Trabalho criado pelo Decreto-Lei n.º 142/99, pelo que, justamente, quis intervir ainda no âmbito do complementação do regime jurídico instituído pelo referido artigo 39º da Lei dos Acidentes de Trabalho e em cumprimento da remissão efectuada por esse preceito.
Poderia, por fim, questionar-se – embora esse aspecto não tenha servido de fundamento à decisão – se a limitação da responsabilidade do Fundo às «prestações que seriam devidas caso não tivesse havido actuação culposa», implicando a exclusão do pagamento da parte correspondente ao agravamento das pensões por facto imputável à entidade empregadora - que veio agora a ser estabelecida pela nova redacção dada ao artigo 1.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 142/99 -, não poderia representar uma restrição a direitos que já haviam sido legalmente concretizados, com a extensão que o legislador ordinário já antes lhe tinha conferido (sobre este aspecto, em geral, Gomes Canotilho /Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª edição, Coimbra, pág. 771)).
Para além das dificuldades que a abordagem da questão poderia desde logo suscitar, em tese geral, o certo é que não pode sequer afirmar-se, no caso concreto, que a nova redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 185/2007 tenha representado uma redução de direitos já anteriormente concretizados. De facto, o legislador teve essencialmente em vista, como já se fez notar, enunciar de forma mais rigorosa o âmbito de intervenção do Fundo, com vista a uma melhor definição de alguns aspectos particulares, e para clarificar questões que se tinham vindo a colocar no relacionamento com as empresas de seguros e com os tribunais. O diploma pretendeu, portanto, efectuar uma explicitação do âmbito da responsabilidade do Fundo, assumindo, na prática, um carácter interpretativo relativamente à redacção do artigo 1.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 142/99.
E, na verdade, este preceito, ao atribuir ao Fundo a competência para «garantir o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho», sempre poderia ser interpretado restritivamente de forma a excluir aquelas prestações que são apenas da responsabilidade do empregador por lhe serem directamente imputáveis a título de culpa. E, deste modo, não poderia configurar-se, por força da nova redacção, uma restrição a direitos já legalmente concretizados.
O Decreto-Lei n.º 185/2007 não enferma, por conseguinte, de inconstitucionalidade orgânica.
3. Num segundo momento, a decisão recorrida considera que a referida norma do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 185/2007 é ainda materialmente inconstitucional, por violação do direito dos trabalhadores à justa reparação por acidente de trabalho, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), e por violação do princípio da igualdade, a que se refere o artigo 13.º, n.º 1, da Constituição, no ponto em que faz depender o direito do sinistrado da maior ou menor capacidade económica das entidades empregadoras responsáveis pelo acidente, entendendo que se estabelece, por esta forma, um tratamento diferenciado entre trabalhadores não baseado em critérios razoáveis.
Começando por abordar esta última questão, cabe recordar os termos em que o Tribunal Constitucional tem vindo a caracterizar a possível violação do princípio da igualdade.
Com esse propósito, interessará reter, por exemplo, o que se afirmou no acórdão n.º 750/95, que se reiterou em diversas outras ocasiões:
O princípio da igualdade reconduz-se […] a uma proibição de arbítrio sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais.
A proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controle.
Mas existe, sem dúvida, violação do princípio da igualdade enquanto proibição de arbítrio, quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por ausência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada.
Por outro lado, as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade, não devendo basear-se em qualquer razão constitucionalmente imprópria (-)
Nesta ordem de considerações tem-se entendido que a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pertencendo-lhe, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente.
E, assim, aos tribunais, na apreciação daquele princípio, não compete verdadeiramente «substituírem-se» ao legislador, ponderando a situação como se estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução «razoável», «justa» e «oportuna» (do que seria a solução ideal do caso); compete-lhes, sim «afastar aquelas soluções legais de todo o ponto insusceptíveis de se credenciarem racionalmente» (acórdão da Comissão Constitucional, n.º 458, Apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de 1983, pág. 120, também citado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 750/95, que vimos acompanhando).
À luz das considerações precedentes pode dizer-se que a caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico (nestes precisos termos o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 370/2007).
Ora, tendo presente a jurisprudência constitucional, que essencialmente reconduz o princípio da igualdade a uma proibição de arbítrio ou, noutra perspectiva, a uma exigência de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico das medidas legislativas, há que reconhecer que o critério da limitação da responsabilidade do Fundo às pensões e indemnizações devidas nos termos gerais, com exclusão da parte correspondente ao agravamento das prestações resultante da actuação culposa da entidade patronal, não se mostra ser arbitrário ou desprovido de fundamento material suficiente.
Com efeito, o Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT) veio substituir o anterior Fundo de Garantia e Actualização de Pensões, previsto na base XLV da Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965, e que se destinava a assegurar o pagamento das prestações por incapacidade permanente ou morte em caso de acidente de trabalho, da responsabilidade de entidades insolventes.
O FAT assume novas competências que lhe foram cometidas pela Lei n.º 100/97, e apresenta, face ao anterior fundo, um leque de garantias mais alargado, contemplando, para além das actualizações de pensões de acidentes de trabalho e dos subsídios de Natal, o pagamento dos prémios de seguro de acidentes de trabalho de empresas que, estando em processo de recuperação, se encontrem impossibilitadas de o fazer, competindo-lhe, ainda, ressegurar e retroceder os riscos recusados de acidentes de trabalho. Para além de que, para prevenir que os pensionistas de acidentes de trabalho deixem de receber as pensões que lhe são devidas, prevê-se a garantia do pagamento das prestações, não apenas em caso de incapacidade económica da empresa, como constava da anterior Lei dos Acidentes de Trabalho, mas também por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação do responsável (artigo 1º do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril).
Considerando especialmente a competência em matéria de pagamento de prestações, que agora está em foco, o que interessa sobretudo reter é que a responsabilidade do Fundo é uma responsabilidade garantística ou subsidiária, que visa suprir a eventualidade de o sinistrado não poder obter o ressarcimento dos danos resultantes do acidente de trabalho por virtude de uma situação objectiva de impossibilidade material que lhe não seja imputável.
E não pode esquecer-se que o Fundo é financiado directamente pelas entidades seguradoras, através do pagamento de uma percentagem do valor correspondente ao capital de remição das pensões em pagamento, e indirectamente pelas entidades empregadoras seguradas, através da cobrança de uma percentagem dos prémios de seguros relativos a acidentes de trabalho, e funciona, deste modo, em articulação com a própria actividade seguradora (artigo 3º do Decreto-Lei n.º 142/99). O Fundo exerce, por conseguinte, uma função social, que é, de algum modo, complementar daquela que é realizada através do regime de obrigatoriedade do seguro de responsabilidade pela reparação de acidentes de trabalho, que recai sobre as entidades empregadoras. Sendo certo que, também no que se refere às situações de agravamento de responsabilidade por actuação culposa do empregador, as instituições seguradoras, quando sejam chamadas a cobrir o risco, são apenas responsáveis subsidiariamente pelas prestações normais, e não pelas prestações agravadas, pelas quais apenas responde o empregador (artigo 37.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 100/97, que corresponde ao depois estabelecido no artigo 303.º, n.ºs 1 e 3, do Código do Trabalho).
Nestes termos, a limitação da responsabilidade do Fundo, por força da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 185/2007, às «prestações que seriam devidas caso não tivesse havido actuação culposa», acaba por constituir uma solução jurídica equivalente à que já estava prevista na Lei n.º 100/97 para a cobertura de riscos, pelas entidades seguradoras, no âmbito do sistema de seguro. E é de algum modo justificada por conveniência de operacionalização do risco social que se encontra associado às contingências externas ao próprio regime legal do direito à reparação de acidentes de trabalho.
Não é possível dizer que o trabalhador que não logrou obter a reparação dos danos resultantes de acidente de trabalho em consequência da incapacidade económica da empresa ou da ausência ou impossibilidade de identificação do responsável, se encontre em situação inteiramente idêntica à daquele outro que, em condições de normalidade, pôde efectivar o seu direito de indemnização.
É de considerar, por outro lado, que a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho é uma responsabilidade civil objectiva, que está associada a um princípio de risco empresarial ou até de socialização do risco, e que só é afastada, nos termos gerais, quando houver culpa do empregador, caso em que se aplicam as regras da responsabilidade aquiliana e se não fixam quaisquer limites à indemnização (neste sentido, acórdão do STJ de 11 de Maio de 2005, Processo n.º 1041/05; Romano Martinez, Direito do Trabalho, II vol., 2º tomo, 3ª edição, Lisboa, págs. 183 e segs.). Deste modo, o agravamento da responsabilidade em caso de culpa do empregador, implicando a reintegração da totalidade dos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais - e não apenas o direito às prestações previstas no artigo 296.º do Código do Trabalho, com possibilidade de limitações percentuais -, corresponde a um efeito ressarcitório que assenta numa responsabilidade civil subjectiva imputável ao empregador.
Ora, neste contexto, não parece que o critério adoptado pelo legislador seja desajustado ou desprovido de um fundamento material razoável, quando limita a garantia do pagamento de prestações, a cargo do Fundo, aos prejuízos indemnizáveis segundo o regime-regra, isto é, segundo o regime de responsabilidade civil objectiva. De facto, estamos aqui perante uma responsabilidade meramente subsidiária, pelo que, no plano de política legislativa, tem cabimento excluir da garantia os montantes indemnizatórios que apenas tenham sido fixados em função do grau de culpa do empregador como directamente responsável pela produção do acidente.
Não há motivo, por conseguinte, para considerar verificada uma situação de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade.
4. Todas as precedentes considerações justificam também que se não entenda como violado o direito dos trabalhadores à justa reparação por acidentes de trabalho, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.
De facto, o Decreto-Lei n.º 142/99 veio dar concretização prática a esse direito, ao criar o Fundo de Acidentes de Trabalho para garantir o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho, e ao alargar o âmbito de protecção dos trabalhadores a diversas outras eventualidades.
Neste plano, a intervenção subsidiária do Fundo reveste o carácter de um direito prestacional, de natureza positiva, a cargo do Estado, pelo que não tem, em princípio, um conteúdo que possa ser determinado a nível constitucional, dependendo o seu âmbito de concretização desde logo das opções do legislador, que age neste domínio de acordo com aquilo que lhe for historicamente possível.
Por outro lado, embora se possa notar, por força da nova redacção dada ao artigo 1.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 142/99, um enfraquecimento do nível prático de efectividade da garantia de pagamento, mediante o estabelecimento de um limite antes inexistente (o Fundo responde pelas prestações que sejam devidas caso não tivesse havido actuação culposa), não parece que essa alteração redutora – que, como vimos, se mostra justificada à luz do princípio da igualdade – seja de molde a atingir o núcleo essencial do princípio da justa reparação.
III – Decisão
Termos em que se decide conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida para ser reformada em conformidade com o juízo de não constitucionalidade agora formulado.
Sem custas.
Lisboa, 24 de Março de 2011.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.