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Processo n.º 588/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A., jornalista e ora recorrente, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa de dois despachos proferidos pela 2ª Vara Criminal de Lisboa, no processo n.º 8587/06.8TDLSB, em que, no essencial, se decidiu indeferir pedido por si formulado de recolha de imagens da respectiva audiência de julgamento.
O Tribunal de 1ª instância, por despacho de 10 de Março de 2010, decidiu, contudo, não admitir o recurso, indeferindo o respectivo requerimento de interposição, por entender que a decisão de que se pretendia recorrer foi proferida no uso de um poder discricionário (artigos 88.º, n.º 2, alínea b), e 400º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal) e que a requerente carecia de legitimidade para tanto (artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do mesmo código).
A requerente, inconformada, reclamou deste despacho para o Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa mas a reclamação foi, por despacho de 15 de Junho de 2010 do Vice-Presidente deste Tribunal, indeferida, com fundamento na irrecorribilidade do despacho recorrido, por sujeito à livre resolução do tribunal (considerando-se prejudicada a apreciação da questão da legitimidade da reclamante para recorrer), sendo deste último interposto, pela reclamante, recurso de constitucionalidade, ao abrigo dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), para apreciação da «[i]nconstitucionalidade material do entendimento normativo dado à norma vertida na alínea b) (…) do n.º 1 (…) do artigo 400.º (…) do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que o disposto no artigo 88.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, prevê situação de uso de um poder discricionário por parte do juiz, e, portanto, de carácter irrecorrível», por violação do direito de informação dos jornalistas, vertidos nos artigos 37.º e 38.º da CRP, e, ainda, dos artigos 18.º, n.º 2, 20.º, 205.º, n.º 1, e 206.º da mesma Lei Fundamental.
Admitido o recurso, pelo Tribunal recorrido, prosseguiram os autos para alegação, tendo o Ministério Público, na resposta, suscitado a questão prévia da inadmissibilidade do recurso por inobservância, pela recorrente, do ónus de suscitação prévia no momento processual adequado, o da reclamação, da questão de inconstitucionalidade normativa que integra o respectivo objecto, ou de qualquer outra.
A recorrente, notificada para o efeito, pronunciou-se sobre tal questão prévia, sustentando, no essencial, que, contrariamente ao defendido pelo Ministério Público na sua resposta, suscitou a questão de inconstitucionalidade normativa, cujo mérito pretende ver apreciado, na motivação e conclusões do recurso interposto junto do Tribunal da Relação de Lisboa e, ainda, nos artigos 20º a 33º da reclamação por si deduzida contra o despacho que indeferiu tal recurso.
2. Cumpre, pois, apreciar e decidir, preliminarmente, a questão de saber se foi observado, pela recorrente, o ónus de suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade normativa que integra o objecto do recurso, sendo que disso depende a sua legitimidade para o interpor (artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC).
É inquestionável que, sendo a decisão recorrida o despacho que decidiu a reclamação apresentada pela ora recorrente contra o despacho de indeferimento do recurso interposto para o Tribunal da Relação, a observância de um tal ónus legal, que implica que a questão de inconstitucionalidade haja sido suscitada «perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida» (artigo 72.º, n.º 2, da LTC), pressupõe, no caso concreto, que a recorrente tenha suscitado a questão de inconstitucionalidade, objecto do recurso, na reclamação que dirigiu ao Presidente do Tribunal da Relação.
É, pois, irrelevante, para tal efeito, que a recorrente, tenha, como defende, questionado perante o Tribunal da Relação de Lisboa, na motivação e conclusões do recurso rejeitado, a constitucionalidade da interpretação normativa a esse nível ora sindicada.
Feita esta precisão, vejamos se a recorrente efectivamente suscitou na reclamação, mormente na parte por si destacada para o comprovar (artigos 20.º a 33.º), a questão de inconstitucionalidade normativa que integra o objecto do recurso, ou seja, a questão da «[i]nconstitucionalidade material do entendimento normativo dado à norma vertida na alínea b) (…) do n.º 1 (…) do artigo 400.º (…) do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que o disposto no artigo 88.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, prevê situação de uso de um poder discricionário por parte do juiz, e, portanto, de carácter irrecorrível».
Não constando das restantes passagens da reclamação qualquer invocação de inconstitucionalidades, transcrever-se-á, apenas, o conteúdo do respectivo articulado na parte em que a recorrente diz ter suscitado a questão de inconstitucionalidade que elegeu como objecto do recurso:
«20.º(…) [D]ispõe a alínea b) (…) do n.º 2 (…) do artigo 88.º do CPP, que aos órgãos de comunicação social não é permitida, salvo autorização expressa da autoridade judiciária, a transmissão ou registo de imagens ou de tomadas de som relativos à prática de qualquer acto processual, designadamente da audiência de discussão e julgamento.
21.ºNão se ignora, com efeito, que se trata de dispositivo destinado a precaver a serenidade da administração da justiça, com vista a se evitar eventuais especulações ou conjecturas sobre as decisões a proferir.
22.ºNo entanto, não se pode ignorar também que a ora Reclamante, sendo jornalista, e estando no exercício da sua profissão, é titular de interesses legítimos justificativos das realidades e comportamentos descritos na mencionada alínea b) (…) do n.º 2 (…) do artigo 88º (…) do CPP,
23.ºRazão pela qual, mencionado pela Reclamante o fim a que se destinava tais registos de imagens, e, bem assim, justificada a sua legitimidade e correlativos interesses na captação das mesmas, aquando dos requerimentos que apresentou nos autos, a Lei permite que o Juiz autorize, fundamentadamente, tais registos,
24.ºReconhecendo a Lei, portanto, que:
Todos os cidadãos têm direito a ser informados;
Os jornalistas, na concretização da sua actividade, têm como direito fundamental, nomeadamente, recolher imagens e sons, actividade que constitui um momento fundamental dos direitos constitucionais à liberdade de informação e direito de ser informado;
Os jornalistas têm o direito geral de acesso e assistência a actos judiciais públicos, na decorrência do exercício da sua profissão.
25.ºE porque os direitos à boa e serena aplicação da justiça e os direitos de personalidade dos Arguidos e Assistentes, têm, todos eles, e necessariamente, que ser compatibilizados e conformados, caso a caso, com o exercício efectivo do direito à liberdade de informação, através da aplicação prática dos princípios constitucionais da necessidade, exigibilidade, proporcionalidade, legalidade e proibição do excesso,
26.ºO disposto na alínea b) (…) do n.º 2 (…) do artigo 88.º do CPP, quanto à autorização para a recolha de imagens da audiência, não trata de um poder discricionário do Juiz, mas sim de um poder vinculado,
27.º«Podendo e devendo o Juiz limitar, no caso concreto, a restrição imposta pelo referido dispositivo legal à liberdade de informação, de acordo com o imprescindível para assegurar e defender os interesses que a lei processual penal identifica, designadamente, nos artigos 86.º, n.º 7, 87.º, n.º 3, e partes finais das alíneas b) e c) (…) do n.º 2 (…) do artigo 88.º, todos do CPP.
28.º
Deve, assim, sacrificar-se, no mínimo, os direitos dos jornalistas, de modo a não se afectar conteúdos essenciais do direito de informação.
29.ºO contrário será, pois, admitir-se uma restrição apriorística, aleatória e arbitrária dos direitos dos jornalistas, ao não se permitir o recurso do despacho que indefere a recolha de imagens da audiência, como parece ser aqui o caso,
30.ºConsubstanciando uma negação do direito de recurso ao jornalista que formulara tal pretensão no processo,
31.ºTudo em violação dos direitos consagrados nos artigos 37.º e 38.º, ambos da Constituição da República Portuguesa, e dos princípios constitucionais da necessidade e de proibição de excesso.
32.ºErrou, portanto, a Exma. Sr.ª Dr.ª Juiz Presidente do Colectivo, ao não admitir o Recurso interposto pela ora Reclamante, dos despachos que lhe negaram o direito à recolha de imagens da audiência de julgamento dos autos,
33.ºPorquanto, em conclusão:
A) A autorização prevista na alínea b) (…) do n.º 2 (…) do artigo 88º (…) do CPP (…) é um acto vinculado e não dependente de livre resolução do Tribunal, atenta a natureza dos direitos constitucionais em confronto;
B) A ora reclamante tem legitimidade para recorrer do indeferimento da pretensão que exerceu no processo, por (…) tal indeferimento (…) afectar direitos de que é titular.».
Ora, decorre das transcritas passagens que o que a reclamante, ora recorrente, sindicou perante o Presidente do Tribunal da Relação, na perspectiva da sua conformidade com a Constituição, foi, no essencial, a própria decisão judicial de rejeição do recurso, por consubstanciar «uma negação do direito de recurso ao jornalista que formulara tal pretensão no processo, tudo em violação dos direitos consagrados nos artigos 37.º e 38.º, ambos da Constituição da República Portuguesa, e dos princípios constitucionais da necessidade e de proibição de excesso», apodando a não admissão do recurso do despacho que indeferiu a recolha de imagens como uma «restrição apriorística, aleatória e arbitrária dos direitos dos jornalistas», vedada pela Constituição, que impõe antes a formulação de juízos de concordância prática, no respeito pelos invocados princípios da necessidade, proporcionalidade e proibição de excesso, em situações de confronto ou colisão entre direitos fundamentais (como é o caso, estando em causa, por um lado, «os direitos à boa e serena aplicação da justiça e os direitos de personalidade dos Arguidos e Assistentes», e, por outro, o «direito à liberdade de informação»).
Mas em nenhum momento invocou, como fundamento da reclamação, o que agora invoca como fundamento do recurso de constitucionalidade, delimitando, em tal peça processual, com a clareza e rigor com que o fez no requerimento de interposição de um tal recurso, o objecto da invocação da inconstitucionalidade por referência, ainda que não necessariamente nos mesmos termos verbais, à essencial ideia normativa cuja constitucionalidade pretende, com o presente recurso, ver apreciada (norma vertida na alínea b) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que o disposto no artigo 88º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, prevê situação de uso de um poder discricionário por parte do juiz, e, portanto, de carácter irrecorrível)».
Por isso, na apreciação da questão de inconstitucionalidade suscitada, situou-se o Tribunal recorrido no mesmo plano de análise, reportando-se à decisão reclamada e não ao seu fundamento normativo, para concluir que «não se mostram violados os artgs. 37.º e 38.º da Constituição da República Portuguesa, dado que não se mostra denegado o direito à liberdade de expressão e à informação, antes, se deu prevalência a outros valores e princípios já salientados – serenidade, ponderação e não distracção dos actores judiciários com factores externos ao julgamento, tendo em vista uma melhor realização da justiça».
Assim, não tendo a recorrente suscitado perante o Tribunal recorrido, como lhe competia, a questão de inconstitucionalidade normativa que constitui objecto do recurso, não é possível, por ilegitimidade decorrente da preterição do ónus de suscitação prévia previsto nas disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC, apreciá-lo de mérito, como fundadamente concluiu, na sua resposta, o Ministério Público.
3. Pelo exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 unidades de conta.
Lisboa, 24 de Março de 2011.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.