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Processo n.º 353/10
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. Por sentença proferida em 13 de Dezembro de 2009 no Tribunal do Trabalho do Porto, foi decidido julgar inconstitucional e não aplicar a norma constante do artigo 41.º da Lei n.º 107/2009 de 14 de Setembro, que aprova o regime das contra-ordenações laborais e de segurança social, na parte em que exige o prévio acordo da autoridade administrativa para a retirada da acusação pelo Ministério Público.
Diz-se na decisão:
«O Ministério Público veio retirar a acusação, nos termos e com os fundamentos de fls. 161 a 166, que aqui se dão por reproduzidos, invocando a inconstitucionalidade do artigo 41º da Lei 107/2009 de 14/9, na parte em que faz depender do acordo da autoridade administrativa a retirada da acusação.
Notificada a arguida de acordo com tal normativo, a mesma veio dar o seu acordo à retirada da acusação.
Nos termos daquele artigo 41°, a todo o tempo e até à decisão final, pode o Ministério Público, com o acordo do arguido e da autoridade administrativa, retirar a acusação.
Porém, prescreve o artigo 219°/1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, que compete ao Ministério Público o exercício da acção penal, gozando o mesmo da autonomia prevista na lei, caracterizada pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade, encontrando-se unicamente sujeito a directivas, ordens e instruções previstas no seu Estatuto (cfr. artigos 1º e 2° do respectivo Estatuto).
Consequentemente, em processo de contra-ordenação, compete ao Ministério Público deduzir a acusação, conforme dispõe o artigo 37° da mencionada Lei 107/2009, mediante a apresentação dos autos ao juiz, competindo-lhe ainda promover a prova dos factos relevantes para a decisão de harmonia com o artigo 47º do mesmo diploma legal.
Nestes termos, a autoridade administrativa que proferiu a decisão condenatória impugnada não é parte no processo de contra-ordenação.
Por outro lado, nos termos previstos no artigo 65°A do DL 433/82 de 27 de Outubro (regime geral das contra-ordenações), aqui aplicável subsidiariamente por força do artigo 60º daquela Lei 107/2009, a retirada da acusação pelo Ministério Público depende apenas do acordo do arguido, aí se prescrevendo que deverá ser ouvida a autoridade administrativa apenas quando tal seja indispensável a uma adequada decisão.
Deste modo, no regime geral das contra-ordenações verifica-se que o Ministério Público poderá retirar a acusação, sem ouvir a autoridade administrativa, nomeadamente quando considere estar em causa uma questão de direito e não uma questão técnica relacionada com a contra-ordenação imputada.
No caso das contra-ordenações laborais e de segurança social, a citada Lei 107/2009 veio introduzir como pressuposto da retirada da acusação o acordo da autoridade administrativa.
Contudo, como refere o Digno Magistrado do Ministério Público na sua douta promoção, a exigência em concreto do acordo da autoridade administrativa (e não sendo este dado), salvo o devido respeito por opinião contrária, reconduzir-se-ia a obrigar o Ministério Público a sustentar uma acusação que no seu próprio entender, se afigura infundada, a promover a prova de factos que no seu entender são insusceptíveis de integrar a prática de uma contra-ordenação, sujeitando-o pois a directivas a que legal e constitucionalmente não se encontra sujeito, constituindo assim violação da sua autonomia estatutária e constitucional.
Em conformidade, concluímos que aquele artigo 41°, na parte em que impõe o acordo da autoridade administrativa à retirada da acusação, viola o princípio da autonomia do Ministério Público consagrado no citado artigo 219° da Constituição da República Portuguesa.
Acresce, por outro lado, que pelas razões acima referidas, tal norma cria uma situação de desigualdade entre os arguidos em processo de contra-ordenação laboral e de segurança social, e os arguidos em outros processos de contra-ordenação não especificados e sujeitos ao respectivo Regime Geral.
Pelo exposto, recusando-se a aplicação daquele artigo 41° da Lei 107/2009 de 14/9, na parte em que exige o acordo da autoridade administrativa, por inconstitucional, atenta a retirada da acusação pelo Ministério Público e o acordo da arguida, decide-se determinar o arquivamento dos autos».
2. É desta decisão que o Ministério Público interpõe recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição da República Portuguesa, do n.º 1 do artigo 75º-A e da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), pedindo a fiscalização da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 41.º da Lei n.º 107/2009 de 14 de Setembro, na parte que exige o acordo da autoridade administrativa para a retirada da acusação por parte do Ministério Público.
Convidado pelo relator, nos termos do artigo 75.º-A, n.º 5 da Lei do Tribunal Constitucional, a esclarecer qual o exacto sentido da norma desaplicada que constitui o objecto do recurso, o recorrente veio dizer o seguinte:
1º O Ministério Público pelo requerimento de fls.182, interpôs recurso obrigatório para este Tribunal Constitucional, porque o M.º Juiz do Tribunal do Trabalho do Porto, por despacho proferido no dia 13 de Dezembro de 2009, recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade material, do artigo 41.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, na parte em que impõe o acordo da autoridade administrativa à retirada de acusação pelo Ministério Público.
2º A recusa da aplicação daquele artigo 41º, da Lei que estabelece o regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social, assenta na violação do princípio da autonomia do Ministério Público e da igualdade consagrados, respectivamente, nos artigos 219º e 13º da C.R.P.
3º Considera o despacho recorrido que, por um lado, prescrevendo o artigo 219º, nºs 1 e 2, da C.R.P., que compete ao Ministério Público o exercício da acção penal e gozando o mesmo da autonomia prevista na lei, caracterizada pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade, o acordo da autoridade administrativa, como pressuposto da retirada da acusação pelo Ministério Público, no âmbito da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa de aplicação de coima por contra-ordenação laboral, afronta a Lei Fundamental.
4º Por outro lado, aduz ainda o despacho recorrido que o mesmo artigo 41º da Lei nº 17/2009, de 14/9, cria uma situação de desigualdade entre os arguidos em processo de contra-ordenação laboral e de segurança social, e os arguidos em outros processos de contra-ordenação, sujeitos ao Regime Geral das Contra-Ordenações (DL nº 433/82, de 27/10), dado que, no âmbito deste último, a retirada da acusação pelo Ministério Público depende apenas do acordo do arguido, exigindo-se apenas a audição da autoridade administrativa, quando tal seja indispensável a uma adequada decisão.
5º Assim, constituirá objecto do presente recurso a questão de a norma do artigo 41º da Lei nº 17/2009, de 14/9, na parte em que impõe o acordo da autoridade administrativa à retirada da acusação pelo Ministério Público, na fase de impugnação judicial, ser inconstitucional, por violar os princípios da autonomia do Ministério Público e da igualdade, consagrados nos artigos 219º e 13º da Lei Fundamental.
Admitido o recurso, o Ministério Público recorrente alegou e concluiu:
1º A norma constante do artigo 41º da Lei nº 107/2009, de 13/09, na parte em que impõe o acordo da autoridade administrativa para a retirada da acusação pelo Ministério Público, em processo de impugnação judicial da decisão de aplicação de coima por contra-ordenação laboral, viola o princípio da autonomia do Ministério Público, consagrado no artigo 219º da Constituição da República Portuguesa.
2º Com efeito, reconhecendo a Lei nº 107/2009, de 14/09, a titularidade do Ministério Público, na fase de impugnação judicial, no exercício da acção contra-ordenacional, não pode esse reconhecimento desligar-se da autonomia que a Lei Fundamental reconhece a esta magistratura, cuja actuação, nesta matéria, se pauta pela sujeição apenas ao princípio da legalidade objectiva.
3º A vinculação a critérios de estrita objectividade implica que o Ministério Público formule o juízo concreto e casuístico acerca do exercício da acção contra-ordenacional, liberto de condicionalismos, muito embora, essa sua acção deva ser sindicável, como efectivamente acontece por via do controlo judicial, uma vez que os autos devem sempre ser presentes ao juiz (artigo 37º da Lei nº 107/2009).
4º Pelo que, deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida.
Não houve contra-alegações por parte da recorrida, a sociedade denominada A., SA.
II Fundamentação
3. O objecto do presente recurso é, na parte que nela se exige o acordo da autoridade administrativa, a norma do artigo 41.º da Lei n.º 107/2009 de 14 de Setembro, que aprova o regime aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social, e que apresenta a seguinte redacção:
Artigo 41.º
Retirada da Acusação
A todo o tempo, e até à sentença em primeira instância ou até ser proferido o despacho previsto no n.º 2 do artigo 39.º, pode o Ministério Público, com o acordo do arguido e da autoridade administrativa, retirar a acusação.
É dupla a desconformidade constitucional que a sentença recorrida imputa à norma na parte impugnada: em primeiro lugar, a violação do artigo 219º n.ºs 1 e 2 da Constituição, preceito que entrega ao Ministério Público a competência para o exercício da acção penal e lhe atribui autonomia, «nos termos da lei»; em segundo lugar, a violação do princípio da igualdade, por a norma criar uma situação de desigualdade entre os arguidos em processo de contra-ordenação laboral e de segurança social e os arguidos noutros processos de contra-ordenação, sujeitos ao Regime Geral das Contra-Ordenações (Decreto-Lei nº 433/82 de 27 de Outubro), no âmbito do qual a retirada da acusação pelo Ministério Público depende apenas do acordo do arguido.
4. Este último fundamento é, no entanto, claramente improcedente e pode ser já afastado. Em primeiro lugar, é de acentuar que, para efeito da violação do parâmetro constitucional invocado (artigo 13º da Constituição), não são sequer comparáveis as duas situações, a dos arguidos em processo de contra-ordenação laboral e a dos arguidos noutros processos de contra-ordenação disciplinados pelo regime geral previsto no Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro. Na verdade, a figura do arguido em processo de contra-ordenação não constitui uma categoria dogmática que exija um tratamento uniforme, e não lhe corresponde uma individualidade própria que se imponha à ordem jurídica e que esta deva, por isso, respeitar. Em segundo lugar, a existência de regimes distintos, por si só, não determina a violação do princípio da igualdade. De acordo com jurisprudência assente do Tribunal, o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, não proíbe em absoluto toda e qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as distinções materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Conforme assevera o Acórdão n.º 188/90 (Diário da República, 2ª série, de 12 de Setembro de 1990), «Na sua dimensão material ou substancial, o princípio constitucional da igualdade vincula em primeira linha o legislador ordinário» mas «não impede o órgão legislativo de definir as circunstâncias e os factores tidos como relevantes e justificadores de uma desigualdade de regime jurídico num caso concreto, dentro da sua liberdade de conformação legislativa», concluindo:
O princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot).
O artigo 13.º da Constituição não impede, em suma, que, em matéria de ilícito contra-ordenacional, o legislador ordinário possa estabelecer regimes especiais destinados a regular aspectos específicos do interesse público, e muito menos visará impor igualdade nos aspectos organizatórios das pessoas colectivas públicas. O regime geral das contra-ordenações e coimas terá sido originariamente pensado para as pequenas infracções, facilmente investigáveis, com implicações sociais limitadas; sectores específicos da actividade económica, por exemplo, podem requerer uma adaptação do regime geral, tendo em atenção a especial relevância dos interesses em que se movem, como acontece no caso em presença. Não há, pois, que falar na violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º n.º 1 da Constituição.
5. Passemos, por isso, ao outro motivo que a sentença invocou ao descortinar a inconstitucionalidade da norma. Diz o aresto que o artigo 41.º da Lei n.º 107/2009 viola o artigo 219º n.ºs 1 e 2 da Constituição por prever o acordo da autoridade administrativa como pressuposto da retirada da acusação pelo Ministério Público no âmbito da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa de aplicação de coima por contra-ordenação laboral. O preceito constitucional, integrado no capítulo dedicado ao Ministério Público, diz:
Artigo 219.º
(Funções e Estatuto)
1. Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
2. O Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei.
3......
4......
5......
Tem-se entendido que a Constituição acolhe um determinado modelo de Ministério Público. Conforme explicam Gomes Canotilho e Vital Moreira, “tendo em conta a sua evolução histórica (primeira, representante do rei junto da autoridade judiciária, depois, órgão dos tribunais dependente do Governo, e, por último, magistrados independentes e autónomos) é seguro afirmar que o paradigma do Ministério Público acolhido pela Constituição de 1976 é o de um órgão da justiça independente e autónomo (cfr. n.º2), subtraído à dependência do poder executivo e erguido à categoria de magistratura, com garantias próprias aproximadas das dos juízes (cfr. n.º3)”. (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, Coimbra Editora, 2010, p. 601). No mesmo sentido, Jorge Miranda e Rui Medeiros referem que “à medida que o Ministério Público mais e mais se distanciou de um órgão administrativo, tornou-se mais e mais qualificável como um órgão “de justiça”, de “administração de justiça” (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, Coimbra Editora, 2006, p. 207).
O Tribunal tem assumido uma posição idêntica conforme dá conta, por exemplo, o Acórdão n.º 291/2002 (os acórdãos citados sem indicação do local de publicação podem ser consultados em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/). O Tribunal também fez notar que a autonomia conferida à actuação deste órgão do Estado corresponde a uma opção político-legislativa consagrada, inicialmente, na lei ordinária, e, sendo decorrente das funções que lhe estão atribuídas, apresenta plena justificação no exercício da acção penal (Acórdão n.º 254/92).
É certo, porém, que a autonomia conferida ao Ministério Público não visa transformar esse órgão numa entidade independente dentro da organização do Estado, quiçá resistente ao controlo que a organização política de um Estado de direito deve obrigatoriamente impor a todos os órgãos públicos. Essa autonomia cifra-se na atribuição de autogoverno, com sujeição a critérios de legalidade estrita, razão pela qual, tratando-se de um órgão hierarquizado, as instruções e orientações transmitidas aos seus magistrados provêm unicamente da cadeia hierárquica e não de outras entidades, como juízes e Governo.
Além disso, a Constituição atribui ao Ministério Público um vasto leque de competências, a exercer em domínios diferenciados. Apesar deste poliformismo de atribuições, é no exercício da acção penal que se tem densificado o seu estatuto: “as atribuições do Ministério Público reportam-se, na actualidade, por áreas muito diferenciadas, algumas bem distanciadas do direito processual penal, onde nasceu e se vem cultivando todo o esforço teórico relativo ao conceito e aos limites da hierarquia” (Cunha Rodrigues, “Sobre o Modelo de Hierarquia na Organização do Ministério Público”, Revista do Ministério Público, n.º 62, ano 16, 1995, p. 23). E a verdade é que representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar implica uma actuação orientada por critérios que não são necessariamente sobreponíveis aos que presidem ao exercício da acção penal orientado pelo princípio da legalidade. Importa, por isso, reter que a fonte do conjunto de poderes-deveres do Ministério Público resulta da natureza das diversas funções que lhe estão distribuídas, e que a sua concretização prática apresenta facetas distintas conforme a área em que se exerce.
6. A autonomia do Ministério Público encontra a sua justificação na função específica de promoção da acção penal pautada por critérios de legalidade e de objectividade. E, mesmo no processo penal, tal competência não obsta ao regime dos crimes particulares e ao consequente condicionamento da acção penal pela queixa ou dedução de acusação particular. Tem-se entendido, por outro lado, que as autoridades administrativas podem intervir no processo penal, sem prejuízo da autonomia do Ministério Público, desde que as mesmas se destinem a representar interesses específicos.
O caso presente diz respeito, porém, a um processo de contra-ordenações. E contrariamente àquele, nos processos de contra-ordenações as autoridades administrativas são competentes para o pleno conhecimento das infracções, sendo a intervenção do Ministério Público reservada para a fase de impugnação judicial da decisão condenatória (artigo 62.º e ss. do Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro).
Resta saber então se o que se afirma a propósito da autonomia do Ministério Público em processo penal é transponível para o processo contra-ordenacional.
7. O regime das contra-ordenações consta hoje de diploma próprio – o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (com as alterações do Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro, do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, do Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Setembro, e da Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro), que institui o ilícito de mera ordenação social e o respectivo processo. A Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, aprova o regime processual especial aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social. Nos termos do artigo 60.º deste diploma, “Sempre que o contrário não resultar da presente lei, são aplicáveis, com as devidas adaptações, os preceitos reguladores do processo de contra-ordenação previstos no regime geral das contra-ordenações”. Por seu turno, estabelece o artigo 32.º do regime geral das contra-ordenações: “em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal” por seu turno, refere o artigo 41.º: “Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal”.
8. O direito das contra-ordenações constitui um ramo jurídico autónomo. O Decreto-Lei n.º 232/79 de 24 de Julho instituiu no nosso ordenamento jurídico o regime geral do ilícito de mera ordenação social, atendendo a que «tanto no plano da reflexão teórica como no da aplicação prática do direito se sente cada vez mais instante a necessidade de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal». E logo houve ensejo, no respectivo texto preambular, de se deixarem assinalados alguns traços essenciais caracterizadores da natureza própria do direito de mera ordenação social, especialmente no plano da sua relacionação com o direito criminal. A este respeito, escreveu-se: “hoje é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza. A contra-ordenação «é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal» (Eduardo Correia, «Direito penal e direito de mera ordenação social», in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1973, p. 268).
A Comissão Constitucional, no Parecer n.º 4/81 (Pareceres da Comissão Constitucional, 14.º vol., pp. 205 a 272) tratou longamente este tema, fazendo minuciosa referência às posições mais significativas da doutrina. E, na linha de orientação já traçada no preâmbulo do respectivo diploma a propósito da natureza do ilícito de mera ordenação social, a Comissão Constitucional ponderou o seguinte:
«para o legislador português — ao que parece único legislador europeu que seguiu até agora a solução germânica — o direito de mera ordenação é um aliud relativamente ao direito penal, um ramo diverso, um «ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal». Como se afirma em múltiplos passos do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 232/79, as infracções às leis vigentes nos domínios da economia, saúde, habitação, cultura e ambiente normalmente não atingirão relevo penal, antes configurando «uma forma autónoma de ilicitude que reclama um quadro próprio de reacções sancionatórias e um novo tipo de processo».
A própria Constituição reconhece a autonomia do ilícito de mera ordenação social, nos artigos 165.º d) e 227.º, q). De facto, na origem da criação dogmática da figura das contra-ordenações esteve, entre outras, a preocupação de “revestir o processamento destas infracções de especificidades que permitissem, sobretudo, a aplicação das sanções pelos agentes administrativos encarregados da fiscalização e controlo das respectivas actividades” (Jorge de Figueiredo Dias, “Para uma Dogmática…”, p. 47). Esta é, de facto, a nota distintiva entre os processos de contra-ordenação e os processos criminais, e que não deixará, a final, de ter implicações no que toca ao papel do Ministério Público.
Nesse sentido, no Acórdão n.º 158/92 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., p. 713), o Tribunal Constitucional aceitou serem diferentes os princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submete a legislação penal e a que se reporta às contra-ordenações, pelo que não violava a Constituição o regime que atribui competência às autoridades administrativas para o processamento do processo contra-ordenacional e aplicação de coimas. O Tribunal considerou ainda que estava garantido, com efectividade e permanência, o direito de impugnação judicial das decisões sancionatórias daquelas autoridades – não atentando tal competência com o princípio da reserva de função jurisdicional dos tribunais.
O juízo de inconstitucionalidade formulado pela recorrente relativamente às normas que aqui se questionam assenta, essencialmente, na consideração de que o ilícito de mera ordenação social dispõe de natureza idêntica à do ilícito criminal, devendo assim, quanto a ele, valer o quadro de princípios e garantias constitucionais próprias do direito e do processo criminal.
Todavia, como a seguir se verá, semelhante entendimento não tem razão de ser.(…)
Considerando apenas a decisão de confiar às autoridades administrativas a aplicação de sanções às contra-ordenações, entendidas tais sanções e o correspondente ilícito como matéria especialmente administrativa, afigura-se-nos possível entender que não ocorre qualquer inconstitucionalidade neste caso. Tal afirmação, porém, tem de ser interpretada em conjugação com o disposto nos artigos 20.º, n.º 1, e 269.º, n.º 2, da Constituição. Inconstitucional seria o entendimento, que o legislador porventura tivesse acolhido, de confiar o conhecimento das contra-ordenações a autoridades administrativas, com expressa proibição de recurso contencioso.
Garantido com efectividade e permanência o direito de impugnação judicial das decisões das autoridades administrativas aplicadoras de uma coima, há-de concluir-se no sentido de as normas agora sob análise não atentarem por qualquer forma contra o princípio da reserva da função jurisdicional aos tribunais consagrado no artigo 205.º da Constituição.
E, do mesmo modo, tais normas, também não afectam o disposto no artigo 211.º do texto constitucional, uma vez que aquelas autoridades administrativas não dispõem, em caso algum, de uma competência criminal especializada, limitando-se a efectuar o processamento das contra-ordenações por forma a tornar-se possível a imposição das respectivas coimas que, como já se viu, detêm natureza distinta da dos ilícitos criminais.
Convém aqui recordar a lição de Eduardo Correia a que já se fez referência (Boletim da Faculdade de Direito, cit.). Assim: «uma coisa será o direito criminal, outra coisa o direito relativo à violação de uma certa ordenação social, a cujas infracções correspondem reacções de natureza própria. Este é, assim, um aliud que, qualitativamente se diferencia daquele, na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitos aos princípios e corolários do direito criminal».
Do exposto, impõe-se concluir no sentido da não violação dos artigos 205.º e 211.º do texto constitucional, por parte das normas dos artigos 33.º e 34.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82.
9. A fase judicial de recurso inicia-se com o envio dos autos ao Ministério Público por parte da autoridade administrativa competente. O requerimento de interposição do recurso, embora dirigido ao tribunal, é apresentado à autoridade administrativa que proferiu a decisão, possibilitando-lhe reapreciar o caso e, eventualmente, revogar a decisão. Se isso não suceder, a autoridade administrativa envia os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este acto como “acusação”, nos termos do artigo 37.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro. Ora, para analisar a retirada da acusação por parte deste órgão, há que atentar no significado da actuação do Ministério Público nesta fase inicial de envio do processo ao juiz, que, de acordo com a lei, reveste o «valor» de acusação. Na verdade, o paralelismo com a acusação penal é ilusório; o auto de notícia é, ele próprio, a acusação, pois consiste na imputação de determinados factos ao agente, na caracterização da infracção e na concretização da sanção aplicável. O despacho do Ministério Público que manda apresentar o recurso ao juiz não define, pelo contrário, a factualidade imputada ao arguido no processo, nem delimita o objecto deste. O envio dos autos ao juiz não consubstancia, por isso, um poder acusatório, visando apenas pôr em marcha o iter processual necessário à intervenção do juiz.
No que toca à retirada da acusação por parte do Ministério Público, é certo que o artigo 41.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro exige o consentimento da autoridade administrativa, enquanto o artigo 65º-A do regime geral das contra-ordenações se basta com a audição da mesma. Mas, uma vez que a autoridade administrativa é a verdadeira titular do processo contra-ordenacional, não parece ser ilegítima a exigência do consentimento desta autoridade. De facto, com a “retirada da acusação” por parte do Ministério Público a decisão condenatória da autoridade administrativa deixa de ter efeito, já que daí resultará o arquivamento do processo de contra-ordenação. Ora, o melhor árbitro da existência de interesse público para o prosseguimento desse recurso é a autoridade administrativa.
E não se diga que, desta forma, se corre o risco de introduzir considerações alheias à defesa do princípio da legalidade no processo. É que o processo de contra-ordenação tem como princípio estruturante o princípio da legalidade e, ao exigir-se o acordo da autoridade administrativa para a retirada dessa acusação, releva-se, ao fim e ao cabo, o interesse público especialmente confiado à tutela da autoridade administrativa, na fase judicial. Com efeito, a Constituição não colocou, no processo de contra-ordenação, a defesa do interesse público na exclusiva tutela do Ministério Público. O legislador não está, por isso, impedido de destacar um determinado interesse público e de incluir a sua protecção na competência de uma entidade pública distinta, à qual passa depois a exigir um especial dever de colaboração com o Ministério Público na fase judicial de defesa desse interesse. Acresce que, contrariamente ao que parece resultar da sentença recorrida e da alegação, também as autoridades administrativas estão sujeitas ao princípio da legalidade, nos termos do artigo 266º da Constituição; todavia, é-lhes permitida uma actuação exercida mediante opções de natureza discricionária, de acordo com uma perspectiva própria de defesa dos interesses públicos que tutelam, que deve ser concretizada «com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé». De resto, não existe oposição entre “Ordem Jurídica” e “Administração”, reconhecendo-se que esta última participa plenamente da ordem jurídica (Jorge de Figueiredo Dias, “Para uma Dogmática do Direito Penal Secundário”, Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Coimbra Editora, 1998, p. 35 e ss).
Aliás, também a necessidade do acordo do próprio arguido para a retirada da acusação se explica pela relevância conferida à interferência de outros interesses, para além dos que o Ministério Público defende, como seja o respeito pelo interesse particular do arguido em pretender a demonstração factos ou na obtenção de um juízo que, para além do benefício pessoal que deles retira, inevitavelmente visam uma decisão de não condenação cujo resultado prático seria, todavia, semelhante ao da inoperatividade da acusação com a sua retirada pelo Ministério Público.
10. Considera-se, assim, que a necessidade do acordo da autoridade administrativa não coloca em crise o princípio da autonomia do Ministério Público. Este princípio encontra a sua justificação na especial função de exercício da acção penal. Ora, no que toca às acções contra-ordenacionais, apesar de as normas processuais penais a elas serem subsidiariamente aplicáveis, há uma nota distintiva claramente marcante; os titulares da acção são as autoridades administrativas a quem a lei entregou de forma especial a tutela de um determinado interesse público. A isso não obsta que, quer o regime geral das contra-ordenações, quer a Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, qualifiquem o envio dos autos do Ministério Público para o juiz como tendo o valor de acusação. Na verdade, substancialmente, a peça que corresponde à natureza e funções da acusação é o auto da autoridade administrativa, que é quem representa o interesse público especificamente em causa. Por outro lado, o Ministério Público continua a exercer os seus poderes com autonomia, apesar de a lei exigir a concordância da autoridade administrativa para obter o fim processual em vista. Finalmente, a necessidade do acordo da autoridade administrativa não só não infringe o princípio da autonomia do Ministério Público, como não provoca qualquer diminuição das garantias de defesa do arguido. O que a Constituição exige é que a decisão da autoridade administrativa seja susceptível de impugnação judicial e portanto de «recurso» a um tribunal, e que a um tribunal caiba a primeira e, em todo o caso, a última palavra (Jorge de Figueiredo Dias, “O Movimento…”, p. 32).
III Decisão
11. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 41.º da Lei n.º 107/2009 de 14 de Setembro, na parte em que exige o prévio acordo da autoridade administrativa para a retirada da acusação pelo Ministério Público.
Em consequência, concede-se provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada em conformidade com o precedente juízo.
Sem custas.
Lisboa, 3 de Maio de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Rui Manuel Moura Ramos.