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Processo n.º 166/10
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. Por sentença proferida em 11 de Dezembro de 2010 no Tribunal do Trabalho de Sintra foi decidido julgar inconstitucional e não aplicar a norma constante da alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009 de 12/02, que aprovou o novo Código do Trabalho, na redacção conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009 de 18 de Março de 2009. Diz-se na decisão:
«Conforme se alcança da decisão da ACT que a arguida impugnou, a esta vem imputada a prática no dia 28/02/2008 de uma infracção ao art. 245.º, n.ºs 1 e 2, al. a) da Lei n.º 35/2004, de 29/07, que regulamentava o Código do Trabalho de 2003, naquele caso no que diz respeito ao seu art. 276.º (cfr. o art. 218.º da Lei n.º 35/2004). E tal infracção estava prevista como contra-ordenação grave no art. 484.º, n.º 2, também da Lei n.º 35/2004, de 29/07.
Ora, entretanto, entrou em vigor a Lei n.º 7/2009, de 12/02, que aprovou o novo Código do Trabalho e revogou, além do mais, aquela Lei n.º 35/2004, através do seu art. 12.º, al. b). E, apesar de tal revogação só produzir efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regular a mesma matéria, relativamente a vários normativos elencados no n.º 6 daquele mesmo art. 12.º, aí se incluindo na alínea m) o mencionado art. 245.º, o mesmo não sucedeu com o art. 484.º, n.º 2 que previa e punia a infracção como contra-ordenação grave.
Na verdade, só em 18 de Março de 2009 foi publicada a Declaração de Rectificação n.º 21/2009, na qual se declarou que a Lei n.º 7/2009, de 12/02, havia saído com inexactidões que importava rectificar, designadamente, no que agora interessa, que “[n]a alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º, «Norma revogatória», onde se lê: «m,) Artigos 212.º a 280.º, sobre segurança e saúde no trabalho;» deve ler-se: «m) Artigos 212.º a 280.º, 484.º e 485.º, este na parte referente àqueles artigos, sobre segurança e saúde no trabalho;».
Ora, como se refere no Ac. do TC n.º 490/2009, publicado no DR, 2.ª série, de 5/11/2009, que julgou inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica, inerente ao modelo do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º, da C.R.P., a norma constante da alínea a), do n.º 3, do artigo 12.º, do Código do Trabalho, na redacção conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março de 2009, “[c]onforme resulta do debate parlamentar que antecedeu a aprovação da referida Declaração (vide a acta n.º 84/X148, da Comissão Parlamentar de Trabalho, Segurança Social e Administração Pública, acessível em www.parlamento.pt), a mesma visou colmatar um esquecimento do legislador da lei rectificada e não corrigir qualquer lapso material de redacção ou erro na publicação, pelo que se traduziu no preenchimento duma lacuna legislativa involuntária, visando manter a tipificação duma determinada conduta como contra -ordenação após essa tipificação ter sido eliminada por lapso legislativo. (…)
Ora, vigorando em matéria contra-ordenacional, tal como em matéria penal, no domínio da sucessão de leis, a regra da imposição da aplicação da lei mais favorável (artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82), em obediência a uma ideia de desnecessidade de intervenção destes instrumentos sancionatórios, o acto legislativo de contra-ordenação compromete o Estado perante os cidadãos, no sentido de que já não serão sancionados os respectivos comportamentos, mesmo que praticados em data em que tal punição se encontrava prevista na lei.
E este compromisso não pode ser quebrado, apesar do Estado verificar que se equivocou ao abandonar o sancionamento como contra-ordenação daquelas condutas, em defesa da fiabilidade da actividade de um Estado de direito democrático.”
Ora, também da redacção rectificada da al. m) do n.º 6 do art. 12.º da Lei n.º 7/2009 resulta a manutenção em vigor, sem qualquer hiato, da tipificação como contra-ordenação constante do art. 484.º, n.º 2, da Lei n.º 35/2004, de 29/07, das condutas previstas no seu art. 245.º, retirando, assim, qualquer efeito à contra-ordenação operada pela redacção primitiva do referido art. 12.º, n.º 1, al. b) e n.º 6, al. m), o que viola o princípio da segurança jurídica, inerente ao modelo de Estado de direito democrático, consagrado no art. 2.º da C.R.P.
Por este motivo, decido:
a) julgar inconstitucional e não aplicar, por violação do princípio da segurança jurídica, inerente ao modelo do Estado de direito democrático consagrado no art. 2.º da C.R.P., a norma constante da alínea m) do n.º 6 do art. 12.º do Código do Trabalho, na redacção conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março de 2009;
b) consequentemente, declarar extinto o procedimento contra-ordenacional, por contra-ordenação da infracção ao art. 245.º, n.ºs 1 e 2, al. a) da Lei n.º 35/2004, de 29/07, por força do art. 12.º, n.º 1, al. b) e n.º 6, al. m) da Lei n.º 7/2009, de 12/02, na redacção anterior à Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18/03;
c) dar sem efeito a continuação da audiência de julgamento».
2. É desta decisão que o Ministério Público interpõe recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição da República Portuguesa, do n.º 1 do artigo 75º-A e da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC). Recebido o recurso, em momento oportuno alegou e concluiu:
«1. A Lei nº 74/98, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 2/2005, de 24 de Janeiro, nº 26/2006, de 30 de Junho e nº 42/2007, de 24 de Agosto, define e circunscreve rigorosamente o âmbito em que podem ser feitas rectificações a diplomas legais.
2. Subjacente, a um tal quadro jurídico, está a preocupação de assegurar que se não alterem diplomas fora do quadro definido pelos requisitos constitucionais e legais que legitimem uma tal alteração.
3. A Declaração de Rectificação no 21/2009, no entanto, procedeu a alterações substanciais no texto do diploma que, aparentemente, vinha rectificar (Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprovou o novo Código do Trabalho), designadamente “recuperando” matéria contra-ordenacional que deixara, entretanto, de vigorar no ordenamento jurídico, por força da versão inicial da referida Lei.
4. Na verdade, relativamente ao presente recurso, havia contra-ordenações de natureza laboral, que se encontravam contempladas na Lei 35/2004 (Regulamento do Código de Trabalho), de 29 de Julho e no Código de Trabalho de 2003, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto.
5. Posteriormente, certos factos, por força da Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprovou o actual Código do Trabalho, na sua versão original (cfr. art. 12, nº 1, alíneas a) e b) da lei preambular que aprovou o novo Código do Trabalho), deixaram de ser considerados “ilícitos”, não podendo, portanto, nenhum Tribunal, ou entidade competente, proceder contra-ordenacionalmente com base nesses factos, após a publicação daquela Lei.
6. Com efeito, nos termos do art. 12, nº 1, alínea a), da versão original da Lei 7/2009, o Código de Trabalho de 2003 foi revogado e, nos termos da alínea b), do nº 1 da mesma disposição, o Regulamento do Código de Trabalho, relativo ao referido Código, também.
7. No entanto, no elenco das excepções, previstas no nº 6, alínea m), deste mesmo art. 12°, excepcionaram-se expressamente os arts. 212° a 280°, sobre segurança e saúde no trabalho, do Regulamento do Código de Trabalho – Lei 35/2004, devendo, em consequência, a revogação destes preceitos apenas produzir efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regulasse a mesma matéria.
8. Não se fazia, contudo, qualquer referência, na mesma disposição, ao art. 484° do referido Regulamento, que considerava os factos previstos no art. 245° como constituindo uma contra-ordenação grave, pelo que tal preceito ficou abrangido pela revogação genérica do Regulamento do Código de Trabalho, efectuada pelo art. 12°, nº 1, alínea b), da Lei 7/2009.
9. Num terceiro momento, houve, finalmente, uma “inovação” incriminatória (através da repristinação de normas), por meio de uma “rectificação” retroactiva (cfr. alterações introduzidas ao art. 12°, nº 3 e nº 6, alínea m), da lei preambular que aprovou o novo Código do Trabalho, pela Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março).
10. Ora, uma tal actuação do legislador acaba por infringir, inapelável e negativamente, os princípios da não retroactividade da lei penal (e contra-ordenacional), da igualdade e da segurança jurídica, protegidos pela Constituição da República Portuguesa (cfr. artigos 9°, alínea b), 13° e 29°, nºs 1, 3 e 4 do texto constitucional).
11. Na verdade, a pretensa “rectificação”, com a vultuosa dimensão da que foi efectuada pela Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março de 2009, ultrapassa largamento o âmbito de aplicação que a Constituição autoriza e que a lei rigorosamente delimita para este efeito.
12. Deve, pois, julgar-se inconstitucional a norma vertida na alínea m), do nº 6, do artigo 12° do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, na versão constante da Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março de 2009, por violação dos arts. 112°, nº 1, 161°, alínea c), 166°, nº 3 e 168°, nºs 1 e 2 da Constituição.
13. Crê-se, pois, de manter o juízo de inconstitucionalidade feito pelo Tribunal a quo, com as consequências legais daí decorrentes».
Não houve contra-alegações por parte do recorrido A., Lda.
II Fundamentação
3. Tem vindo a consolidar-se neste Tribunal jurisprudência no sentido da falta de interesse na apreciação de questões de inconstitucionalidade em casos como o presente, decorrentes da Declaração de Rectificação n.º 21/2009 de 18 de Março de 2009, sempre que a decisão recorrida adopte outros fundamentos alternativos para afastar a aplicação da norma rectificada (neste sentido, ver Acórdãos n.º 469/2009, 576/09, n.º 584/09, n.º 187/10, n.º 269/2010, n.º 270/2010, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt). Em todos estes Acórdãos, considerou-se haver falta de interesse na apreciação da constitucionalidade porque a decisão do tribunal a quo assentava em dois fundamentos alternativos – um dos quais estranho ao objecto do recurso e que, mantendo-se incólume fosse qual fosse o juízo sobre a questão de constitucionalidade, seria suficiente para assegurar o sentido da decisão recorrida. Assim, o Acórdão n.º 584/2009:
«É indubitável que a decisão recorrida recusa validade à Declaração de Rectificação n.º 21/2009, publicada no Diário da República, I Série, de 18 de Março de 2009, por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque “não cumpre o disposto no artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro, na versão actualmente em vigor, sendo, por isso, ilegal”. Em segundo lugar (“ a tanto acresce”), por entender que “esta declaração de rectificação padece, também, de inconstitucionalidade, a saber: porque, a coberto de uma rectificação, se está a alterar a lei, violando, assim, o disposto no artigo 161º, alínea c), da Constituição da República; e porque qualquer rectificação que recupere uma censura contra-ordenacional que não figurava no texto publicado subverte a teleologia do artigo 29º, nº 4, da Constituição da República”.
Verifica-se, pois, que a decisão assenta em fundamentos alternativos, isto é, que a sentença recusou aplicar o conteúdo legal de que a Declaração de Rectificação pretendeu dotar a alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, com dois fundamentos, um dos quais estranho ao objecto do presente recurso e que, mantendo-se incólume fosse qual fosse o juízo sobre a questão de constitucionalidade, seria suficiente para assegurar o sentido da decisão recorrida.
Vem o Tribunal entendendo que, face à função instrumental do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, não deve conhecer dos recursos de constitucionalidade quando a decisão recorrida comporte fundamentos alternativos, um dos quais estranho ao objecto do recurso e suficiente para suportar o sentido da decisão.
(…)
A esta luz, mesmo que se considere que, tal como a fundamentação da sentença se desenvolve, o juízo de inconstitucionalidade não constitui um mero obiter dictum, o presente recurso não teria utilidade processual, uma vez que, fosse qual fosse a decisão sobre a questão de constitucionalidade, nunca o tribunal a quo admitiria decidir a causa por aplicação do conteúdo da Declaração de Rectificação, uma vez que considera que essa rectificação não se conteve nos limites que a lei consente a tal figura».
Impõe-se, por isso, apreciar previamente esta questão.
Conforme este Tribunal tem repetidamente afirmado, o recurso de inconstitucionalidade tem uma função instrumental, pelo que o interesse em apreciar o seu objecto reside na virtualidade de o julgamento se projectar, ou repercutir, de forma útil e eficaz, na decisão recorrida, de modo a alterar, no todo ou em parte, a solução jurídica que se obteve no caso concreto. Isso significa, como se afirmou no Acórdão n.º 498/96, “que o interesse no conhecimento de tal recurso há-de depender da repercussão da respectiva decisão na decisão final a proferir na causa. Não visando os recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso”. Carece, por isso, de utilidade o julgamento do recurso quando a solução a dar pelo Tribunal Constitucional à questão de inconstitucionalidade é insusceptível de se projectar na solução dada ao caso concreto, que se manterá inalterada qualquer que venha a ser o julgamento da questão jurídico-constitucional.
4. O presente caso é, no entanto, diverso daqueles que foram objecto das citadas decisões. O juiz do Tribunal de Trabalho de Sintra desaplicou a norma constante da alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, na redacção conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março de 2009, com um fundamento apenas: a sua inconstitucionalidade, “por violação do princípio da segurança jurídica, inerente ao modelo do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da CRP”.
Não se tendo invocado um outro fundamento para a não aplicação da norma, não há motivos no caso presente para concluir pela inutilidade do recurso. De facto, refere o Acórdão n.º 112/84 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º vol., pp. 329-334): “o recurso é útil, subsistindo interesse processual na sua apreciação, quando a alegada inconstitucionalidade haja sido «determinante da decisão recorrida e que esta poderia ter sido outra se não houvesse previamente concluído por aquela inconstitucionalidade»”. Ora, de acordo com a fundamentação da sentença recorrida, a questão de inconstitucionalidade foi determinante na decisão recorrida, tendo sido o seu único fundamento, a sua única ratio decidendi. Nesse caso, é de crer que a decisão de constitucionalidade é susceptível de influir no julgamento do caso concreto. Sublinhe-se ainda o critério da utilidade, abordado no Acórdão n.º 18/85 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º vol., pp. 347-351): “A questão de fundo deve, por isso mesmo, ser decidida sempre que, de um ponto de vista meramente formal, o seu julgamento possa apresentar-se como útil”.
Por o tribunal a quo ter invocado como único fundamento da sua decisão a inconstitucionalidade da norma constante da alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro (que aprovou a revisão do Código do Trabalho), na redacção conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março de 2009, a decisão do Tribunal Constitucional sobre a constitucionalidade dessa norma produzirá efeito útil. Daqui decorre que a aludida questão de inconstitucionalidade deve ser conhecida.
5. O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar sobre a questão de inconstitucionalidade da norma constante da alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, na redacção conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março de 2009. Fê-lo no seu Acórdão n.º 197/10 e, ainda, nos Acórdãos n.ºs 490/2009 e 628/2009, embora nestes casos a propósito do artigo 12.º n.º 3, alínea a) da Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro, na redacção que lhe foi conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009 de 18 de Março, mas que em tudo são semelhantes ao caso dos autos.
No primeiro aresto citado decidiu o Tribunal julgar inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica, inerente ao modelo do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, a norma da alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro, na redacção que lhe foi conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009 de 18 de Março. Entendeu-se, essencialmente, que a retroactividade da norma cuja redacção foi alterada pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009 de 18 de Março, atentaria contra o princípio constitucional da segurança jurídica inerente ao Estado de direito democrático, já que a punição como contra-ordenação de comportamentos ocorridos anteriormente à sua tipificação legal, constituiria uma violação da confiança que os cidadãos devem depositar na ordem jurídica, compromisso que não podia ser quebrado apesar de o Estado verificar que se equivocou deixando de prever como contra-ordenação aquelas condutas.
6. Não obstante, a rectificação da redacção da alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009 através da Declaração de Rectificação n.º 21/2009 levanta um outro problema de constitucionalidade de carácter prévio. Com efeito, a Declaração de Rectificação em causa não veio suprir um lapso gramatical, ortográfico, de cálculos ou de natureza análoga, nem um erro de publicação. Na verdade, visou-se colmatar um esquecimento do legislador e provocar uma verdadeira alteração à norma da alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro.
Tratou-se, afinal, da alteração substancial de um acto legislativo.
No contexto do presente recurso, estava em causa a prática de uma infracção ao artigo 245.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) da Lei n.º 35/2004, de 29/07, que regulamentava o Código do Trabalho de 2003. Tal infracção estava prevista como contra-ordenação grave no artigo 484.º, n.º 2, também da Lei n.º 35/2004, de 29/07. Posteriormente, a Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, veio determinar, no artigo 12.º, n.º1, alínea b), a revogação desse Regulamento do Código do Trabalho. No entanto, no n.º 6, alínea m), deste mesmo artigo 12°, excepcionaram-se expressamente os artigos 212° a 280°, sobre segurança e saúde no trabalho, preceitos do Regulamento do Código do Trabalho cuja revogação apenas deveria produzir efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que viesse regular a mesma matéria. Dispõe, com efeito, o artigo 12.º, n.º 6, alínea m) da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro:
Artigo 12.º
Norma revogatória
(…)
6 – A revogação dos preceitos a seguir referidos da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, na redacção dada pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março, e pelo Decreto-Lei n.º 164/2007, de 3 de Maio, produz efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regular a mesma matéria:
(…)
m) Artigos 212.º a 280.º, sobre segurança e saúde no trabalho;
Não se fez, contudo, qualquer ressalva quanto ao artigo 484° do referido Regulamento, que qualificava os factos previstos no artigo 245° como contra-ordenação grave, pelo que o preceito foi abrangido pela revogação genérica do Regulamento do Código de Trabalho determinada no artigo 12° nº 1 alínea b) da Lei 7/2009. Posteriormente, a Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março veio dizer:
«Para os devidos efeitos se declara que a Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprova a revisão do Código do Trabalho, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 30, de 12 de Fevereiro de 2009, saiu com as seguintes inexactidões, que assim se rectificam:
(…)
Na alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º, «Norma revogatória», onde se lê:
«m) Artigos 212.º a 280.º, sobre segurança e saúde no trabalho;»
deve ler -se:
«m) Artigos 212.º a 280.º, 484.º e 485.º, este na parte referente àqueles artigos, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho;»” (sublinhado acrescentado)»
Visou-se, assim, travar a imediata revogação dos artigos 484.º a 485.º do Regulamento do Código do Trabalho (que qualificavam a infracção ao artigo 245.º n.ºs 1 e 2 alínea a) da Lei n.º 35/2004 de 29/07 como contra-ordenação grave), que a Lei n.º 7/2009 impunha, adiando essa revogação para uma data posterior, a da entrada em vigor do diploma que viesse regular a mesma matéria. O efeito jurídico inovador que a Declaração de Rectificação n.º 21/2009 veio introduzir na alínea m) nº 6 do artigo 12.º da Lei n.º7/2009 de 12 de Fevereiro foi este: os referidos ilícitos contra-ordenacionais mantinham-se em vigor.
7. Todavia, o referido efeito inovador não pode considerar-se uma mera correcção, nem de lapsos gramaticais, ortográficos, de cálculo ou de natureza análoga, nem resulta ter sido uma correcção de um erro material proveniente de uma divergência entre o texto original e o texto da publicação do diploma na 1ª série do Diário da República. Vejamos:
A Lei n.º 7/2009 teve origem na Proposta de Lei n.º 216/X. O artigo 11.º da referida Proposta, sob a epígrafe de “norma revogatória” corresponde à norma que veio depois a constituir o artigo 12.º da Lei n.º 7/2009. No texto proposto para esse artigo, sobre o qual incidiu a discussão e o subsequente procedimento legislativo, foram omitidos os elementos que vieram a ser acrescentados pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009. De facto, a alínea m) do n.º 5 do artigo 11.º da referida proposta (que veio a corresponder à línea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, previa:
« 5 - A revogação dos preceitos a seguir referidos da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, na redacção dada pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março, e pelo Decreto-Lei n.º 164/2007, de 2 de Maio, produz efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regular a mesma matéria:
(…)
Artigos 212.º a 280.º, sobre segurança e saúde no trabalho»
Assim, não foram incluídos neste ponto os artigos 484.º e 485.º da Lei n.º 35/2004 – menção depois acrescentada pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009. Sobre a manutenção em vigor das normas dos artigos 484.º e 485.º da Lei n.º 35/2004 até à entrada em vigor do diploma que viesse regular essa matéria nunca houve, por isso, discussão. O texto final decorrente desses trabalhos preparatórios (Decreto da AR n.º 262/X), publicado no Diário da Assembleia da República, (II série A, n.º 61, de 26/01/2009, p. 2 e ss.) corresponde, aliás, totalmente ao texto da Lei n.º 7/2009, tal como foi publicado no Diário da República, Iª Série, n.º 30, de 12 de Fevereiro de 2009. Assim, os novos elementos que se vieram acrescentar à norma em causa pela Declaração de Rectificação foram um aspecto que foi, desde o início, totalmente estranho ao procedimento legislativo que deu origem à Lei n.º 7/2009.
Em bom rigor, a Declaração de Rectificação n.º 21/2009 não constituiu uma simples rectificação, já que “a rectificação não se destina a alterar o original dos diplomas publicados, mas tão-só a corrigir os actos instrumentais de revelação desses mesmos diplomas, procurando repor a genuinidade dos textos originários, no exacto sentido em que foram remetidos para publicação” (Carlos Blanco de Morais, “Problemas relativos à Rectificação de actos legislativos dos órgãos de Soberania”, Legislação, n.º 11 (1994), p. 54). Neste caso, como se vê, o original do diploma coincidia com a versão publicada. O que ocorreu, sob o suposto nome de “rectificação”, foi uma verdadeira alteração, aditamento ou suprimento de lacuna ao artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro. Perante essa possibilidade, “quaisquer erros de direito, de facto, ou mesmo de cálculo ou de redacção, respeitantes aos momentos formativos ou constitutivos do acto (os quais a doutrina denomina de «vícios patológicos») traduzem disfunções reportadas a um momento anterior à extrinsecação de um texto original, momento no qual o acto se pretende como definitivamente perfeito, embora não eficaz. Como tal deverá entender-se que qualquer falta referente a esse estádio anterior, preso à elaboração e controlo do acto, apenas poderá, independentemente da natureza do lapso, ser sanada através de novo acto normativo de idêntica natureza, e aprovado pelo procedimento previsto na Constituição ou na lei” (A. e op. cit., p. 37).
8. A alteração de um acto legislativo por um acto que não assume também a natureza de acto legislativo é proibida constitucionalmente. De facto, a Constituição assume o papel de “norma primária sobre a produção jurídica”, o que implica três importantes funções: a identificação das fontes de direito do ordenamento jurídico português, o estabelecimento de critérios de validade e eficácia de cada uma das fontes, e a determinação de competência das entidades que revelam normas de direito positivo (J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, p. 605). Jorge Miranda fala, neste contexto, de uma autêntica “reserva de Constituição no domínio das competências legislativas, das formas e da força de lei” (Manual de Direito Constitucional, Tomo V, 3ª Edição, Coimbra Editora, 2004, p. 197). Como refere este último autor, se é certo que “a Constituição permite ao legislador escolher o tempo e as circunstâncias da sua intervenção e determinar ou densificar o seu conteúdo, desde que respeitados os fins, os valores e os critérios constitucionais (…) já no plano orgânico-formal é completa a vinculação, sob um tríplice aspecto: o dos órgãos, o das formas, e o da força jurídica”.
O artigo 112.º concretiza alguns dos princípios que enformam essa “reserva de Constituição”, alguns deles verdadeiros princípios inerentes ao Estado de Direito democrático: o princípio da hierarquia das fontes, o princípio da competência e o princípio da tipicidade das leis. Trata-se, nas palavras de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, de uma “norma concretizadora de vinculação constitucional do legislador quanto à produção normativa” (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4ª Edição, 2010, p. 52).
9. Relevo especial assume o princípio da tipicidade das formas de lei, ou, na terminologia de Jorge Miranda, um “princípio da fixação constitucional de competências legislativas” (op. cit., p. 206). Desse princípio decorre desde logo que apenas são actos legislativos os definidos pela Constituição nas formas por elas prescritas – e que são taxativamente identificados no artigo 112.º, n.º 1: as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais. Também o n.º 5 do artigo 112.º reforça o princípio da tipicidade dos actos legislativos e consequente proibição de actos legislativos apócrifos ou concorrenciais, com a mesma força e valor de lei, ao estipular: “Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”.
A declaração de rectificação não reveste a natureza de acto legislativo, mas a de simples acto de correcção de um erro na execução material da publicação de uma norma, cujo procedimento se não aproxima, sequer, do relativo à produção legislativa.
Deve, por isso, concluir-se que a Lei n.º 7/2009 foi alterada por um acto que não tem a natureza de acto legislativo.
10. Cabe, no entanto, sublinhar que os actos legislativos possuem, como atributo, a característica da “força de lei”, categoria que faz apelo à ideia de resistência à revogação ou derrogação por outras normas hierarquicamente inferiores ou que não possuam força de lei (J.J. Gomes Canotilho, op. cit, p. 609). De facto, salvo os casos expressamente previstos na Constituição, uma lei só pode ser afectada na sua existência ou alcance por efeito de uma outra lei. Os actos legislativos só podem ser afectados por lei subsequente ou por decisão do Tribunal Constitucional; trata-se da realidade que Jorge Miranda designa por “força de lei formal negativa”, que consiste “na capacidade de resistir ou reagir a actos doutra natureza (…) ou, em certos casos, a outras leis, não se deixando modificar, suspender, revogar ou destruir por eles”.
Ao ter-se modificado ou realizado aditamentos à Lei n.º 7/2009 sem ter sido através de um novo acto legislativo, concedeu-se a esse acto não legislativo o atributo de “força de lei”, violando-se o princípio da tipicidade dos actos legislativos.
Também nesse sentido se tem desenvolvido a jurisprudência constitucional, desde a Comissão Constitucional, que referiu, no Parecer n.º 39/79, de 13 de Dezembro (in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. XI, p. 8):
«actos legislativos apenas podem ser os definidos como tais pela Constituição. Nem poderia deixar de ser de outro modo, sob pena de se frustrar a interdependência dos órgãos de soberania e evitar a sujeição das leis ao processo legislativo e fiscalização preventiva da constitucionalidade (…) é, pois, um princípio geral de Direito Constitucional que está em causa: o princípio da tipicidade dos actos legislativos».
Deve, concluir-se, em suma, que a norma da alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro, na redacção que lhe foi conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009 de 18 de Março, enferma de inconstitucionalidade formal, por violação do princípio da tipicidade dos actos legislativos, consagrado no artigo 112.º n.º 1 da Constituição.
III Decisão
11. Assim, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da tipicidade dos actos legislativos consagrado no artigo 112.º n.º 1 da Constituição, a norma da alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009 de 12 de Fevereiro (que aprovou a revisão do Código do Trabalho), na redacção que lhe foi conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009 de 18 de Março;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 3 de Maio de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Maria João Antunes – Rui Manuel Moura Ramos.