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Processo n.º 459/10
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280º, nº 1, alínea b), da CRP e do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, invocando, entre outras, a inconstitucionalidade:
“do disposto no art° 411° n° 5 do Código de Processo Penal no sentido de que o recorrente que pretenda ver o seu recurso de decisão que conheça a final do objecto do processo, apreciado em audiência no Tribunal da Relação deve requerê-lo aquando da interposição do recurso e indicar quais os pontos da motivação de recurso que pretende ver debatidos, sob pena de indeferimento da sua pretensão”;
“(…) sempre o recorrente havia de ser notificado para aperfeiçoar o seu requerimento especificando quais os pontos do recurso que queria ver debatidos, sob pena de tal interpretação da norma do art° 411° n°5 e 419° n° 3 al. c) do Código de Processo Penal ser, do mesmo passo, inconstitucional por violação do art° 32° n°3 da Constituição”.
2. Por despacho autónomo, a Relatora proferiu decisão sumária de não conhecimento, em 12 de Julho de 2010, em relação a outras inconstitucionalidades invocadas no presente recurso. Esse despacho foi objecto de reclamação, a qual foi indeferida por acórdão, de conferência, proferido em 30 de Novembro de 2010.
3. O recorrente produziu alegações escritas quanto às questões de inconstitucionalidade enunciadas supra (§ 1.º), das quais resultam as seguintes conclusões (resumidas):
«(…)
7ª Na sua forma pura, o sistema de recursos do Código de Processo Penal de 1987 estruturava a defesa do recorrente em duas fases: a motivação do recurso e as alegações (que poderiam ser escritas ou orais). Sendo que, nos dizeres de Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal anotado, 16ª edição, 2007, pag. 921: “As alegações têm função e finalidades diferentes das da motivação; esta destina-se a manifestar porque é que o recorrente discorda da decisão recorrida e a apontar qual o sentido em que, em seu entendimento, deve ser proferida a decisão do tribunal superior, enquanto as alegações, proferidas quando o âmbito do recurso já está definido, se destinam a expor considerações finais já após a audiência”.
8ª Ora, sendo o direito ao recurso na lei ordinária consagrado como contendo a motivação e as alegações, como vimos de expôr, consagrar uma limitação à faculdade de alegar por parte do recorrente/arguido é limitar-lhe as garantias de defesa e o direito ao recurso.
9ª Por outro lado, devendo o arguido no requerimento de interposição do recurso, ou seja, antes de elaborar a motivação, requerer que seja realizada a audiência de julgamento no tribunal superior e, consequentemente, manifestar o direito de ser assistido por advogado e de alegar nessa audiência (o que constitui emanação do direito ao recurso, das garantias de defesa, do acusatório, do contraditório e do direito a ser assistido por advogado em todas as fases do processo penal), não pode a lei ordinária coarctar-lhe tais direitos constitucionalmente garantidos exigindo que este, antes de ser oferecida a resposta do Ministério Público na 1ª instância, requeira a audiência no Tribunal de recurso e restrinja o seu objecto.
10ª Assim sendo, o recorrente é obrigado a restringir o objecto da sua alegação (que já foi delimitado pelas conclusões da motivação), antes de saber qual a posição do Ministério Público e das demais partes no processo (cfr. artº 413º nº1 do Código de Processo Penal), o que se entende que é inconstitucional por violação das garantias de defesa, do direito ao recurso, do contraditório e do acusatório.
11ª Levado o preceito em causa – artº 411º nº5 do Código de Processo Penal – à letra, como levou o acórdão recorrido, o recorrente teria, como se disse, que requerer que fosse realizada audiência de julgamento e restringir no requerimento de interposição o objecto da audiência no tribunal superior, sendo que se o Ministério Público ou outro sujeito processual rebatesse matéria não abrangida pela delimitação dos aspectos a debater na audiência com novos e valorosos argumentos, citando jurisprudência, doutrina, juntando um parecer ou invocando um documento, o recorrente, espartilhado pela escolha que fez no requerimento de interposição do recurso, já não poderia responder a tal alegação.
12ª Com efeito, pode o recorrente entender que a sua motivação de recurso constitui peça bastante e elucidativa da sua razão e, após a apresentação da(s) resposta(s) ao recurso, verificar da conveniência na realização da audiência por forma a que, em alegações, chamar a atenção do tribunal para algum aspecto que lhe possa escapar (cfr. neste sentido Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal anotado, 16ª edição, pag.921.
13ª Assim, na medida em que o disposto no artº 411º nº5 do Código de Processo Penal obriga o recorrente a delimitar o objecto da audiência, deve ser julgado inconstitucional por violação das garantias de defesa, do direito ao recurso, do contraditório e do acusatório e, designadamente, da paridade de armas.
(…)
15ª O arguido tem direito a ser assistido por defensor em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória, sendo que em matéria penal essa assistência é obrigatória na fase de recurso (artºs 61º nº1 als. c) e f) e 64º nº1 al. d) do Código de Processo Penal), pelo que o facto de o recorrente não especificar no requerimento de interposição de recurso os pontos da motivação que pretende ver debatidos não é causa de indeferimento do requerido, constituindo um direito discricionário do recorrente (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, pag. 1131).
16ª O direito do arguido a ser assistido por defensor em todos os actos do processo é um direito fundamental, como tal previsto na Constituição da República Portuguesa, e, assim sendo, tem aplicação directa, só podendo ser restringido pela lei ordinária nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (cfr. o artº 18º nº1 e 2 da Constituição).
17ª Assim, o arguido tem direito a ser julgado em audiência no tribunal superior e a ser representado por advogado nessa fase processual que não se cinge, nem se pode cingir a um mero trabalho sobre papéis, sob pena de violação do princípio do acusatório, do contraditório e da assistência por advogado.
18ª Dizer-se que o arguido é obrigatoriamente assistido ou representado por advogado na fase de recurso (seja ele ordinário ou extraordinário) não quer dizer, ou melhor, não quer só dizer que o recurso deve ser assinado por advogado, porquanto se deve entender que a fase de recurso apenas se abre com a remessa dos autos ao tribunal superior. Isto porque se o recurso tiver apenas por fundamento nulidades de sentença, é lícito ao tribunal de 1ª instância repará-las, nos termos do disposto nos artºs 379º nº2 e 414º nº4 do Código de Processo Penal.
(…)
20ª Ora, se o arguido, através do seu defensor, no requerimento de interposição de recurso requer o julgamento do recurso em audiência, com supressão do parecer do Ministério Público, nos termos do artº 416º nº2 e, por isso, não havendo resposta ao mesmo e sendo indeferido o requerimento para realização da audiência, o defensor nenhuma intervenção tem na fase de recurso, desde logo porque a sua intervenção, elaborando a motivação é anterior à subida do recurso.
21ª Assim, admitir que o defensor possa não assistir o arguido nesta fase recursória, é restringir um seu direito fundamental, prescrito no artº 32º nº3 da CRP, direitos fundamentais esses cujas restrições têm de limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (cfr. o artº 18º nº1 e 2 da Constituição).
22ª Sem embargo do que supra se disse, é entendimento do recorrente que o requerimento a solicitar a audiência oral não poderia ser rejeitado por não se especificar as concretas questões a debater sem que o recorrente fosse convidado a aperfeiçoar o seu requerimento, porquanto a obediência às garantias de defesa, ao princípio do contraditório, do acusatório e da obrigatoriedade de assistência de defensor ao arguido em matéria penal assim o obrigava.
23ª A questão é substancialmente idêntica à tratada no acórdão do Tribunal Constitucional nº 193/97 e 43/99 quanto à rejeição do recurso por falta de concisão das conclusões e que levou, aliás, à introdução da novel redacção do artº 417º nº3, 4 e 5 do Código de Processo Penal que obriga à notificação para o aperfeiçoamento das conclusões do recurso.
24ª De facto, também o indeferimento do requerimento para ser realizada a audiência de julgamento no tribunal de recurso esvazia a intenção do legislador do Código de Processo Penal de 1987 da oralidade, do acusatório e da obrigatoriedade de assistência de defensor ao recorrente na fase de recurso.
25ª E, por outro lado, não existe no ordenamento processual penal qualquer norma que determine o indeferimento do requerimento por falta de pressupostos (cfr. o artº 419º do Código de Processo Penal), tal como não existia qualquer norma que determinasse a rejeição do recurso quando as conclusões do recurso se apresentassem prolixas.
26ª Assim, deve entender-se que o recorrente havia de ser notificado para aperfeiçoar o seu requerimento especificando quais os pontos do recurso que queria ver debatidos, sob pena de tal interpretação da norma do artº 411º nº5 e 419º nº3 al. c) do Código de Processo Penal ser inconstitucional por violação do artº 32º nº1, 3 e 5 da Constituição.»
4. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio apresentar contra-alegações, cujas conclusões são as seguintes:
«a) o recorrente esteve sempre representado, nos presentes autos, por advogado, que subscreveu todos os (sucessivos) recursos por ele interpostos, incluindo os recursos apresentados no Tribunal da Relação de Guimarães e, posteriormente, neste Tribunal Constitucional;
b) o ilustre mandatário do recorrente preparou, pois, e apresentou, como muito bem entendeu, os requerimentos de recurso e as respectivas motivações;
c) o recorrente cometeu o lapso de não atentar, como era sua obrigação, no art. 411º, nº 5 do CPP, pelo que não formulou, junto do Tribunal da Relação de Guimarães, quando o devia ter feito, o pedido de realização de audiência neste tribunal superior;
d) uma tal falta é-lhe, por isso, inteiramente imputável;
e) ora, o disposto no art. 411º, nº 5 do CCP visa a que o tribunal de recurso conheça, antecipadamente, os pontos de motivação que se pretendem ver debatidos, para os elementos, que integram o mesmo tribunal, se poderem preparar, devidamente, para a audiência; uma tal precaução visa, pois, garantir uma justiça adequada, serena e ponderada;
f) o citado preceito tem, contudo, um outro objectivo, de não menor importância: o de permitir, aos restantes sujeitos processuais, tomar conhecimento do requerimento de interposição de recurso, bem como da sua motivação (cfr. art. 411º, nº 6 do CPP);
g) o legislador pretendeu, pois, que todos os sujeitos processuais, bem como o tribunal conhecessem, antecipadamente, e em detalhe, os pontos controvertidos: o arguido, para os poder sustentar, os restantes sujeitos processuais, para os poderem eventualmente rebater e o tribunal, para poder valorar a argumentação que, sobre tais pontos, viesse a ser produzida;
h) o direito de requerer que o recurso seja julgado em audiência permanece um direito discricionário do recorrente, mas o mesmo não se poderá dizer da definição dos pressupostos que rodeiam o exercício de tal direito, que apenas incumbe à lei fixar, e, muito menos, das consequências resultantes de tais pressupostos não serem, no caso concreto, respeitados;
i) a definição de tais pressupostos, bem como a determinação das consequências resultantes do seu não exercício, encontram-se devidamente especificadas na lei –nos arts. 411º, nº 5 e 419º, nº 3 alínea c) do Código de Processo Penal -, pelo que eram, ou deveriam ter sido, se o recorrente nisso tivesse atentado, do inteiro conhecimento deste;
j) o convite ao aperfeiçoamento de um requerimento de interposição de recurso faz sentido, eventualmente, em relação a aspectos duvidosos da lei, ou a aspectos da argumentação do recorrente eventualmente carecidos de esclarecimento complementar;
l) não é esse, porém, o caso dos presentes autos, em que se está perante uma situação de não respeito de pressupostos adjectivos, fixados na lei, para o exercício de um recurso, sem margem para quaisquer ambiguidades;
m) assim, crê-se que este Tribunal não poderá deixar de considerar totalmente improcedente a argumentação do ora recorrente, indeferindo, nessa medida, a sua pretensão».
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. As questões normativas a apreciar no presente recurso dizem respeito à fixação legislativa de uma condição para a realização de audiência de julgamento de recurso, mediante produção de alegações orais perante o tribunal recorrido, e à consequência jurídico-processual do não preenchimento de tal condição. Em suma, discute-se a constitucionalidade do n.º 5 do artigo 411º do Código de Processo Penal (CPP), de acordo com a redacção conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que determina o seguinte:
“Artigo 411º
Interposição e notificação do recurso
(…)
5 – No requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos da motivação de recurso, que pretende ver debatidos.
(…).”
Além disso, a propósito da segunda questão em apreço no presente recurso, o recorrente invoca ainda a inconstitucionalidade da alínea c) do n.º 3 do artigo 419º do CPP, quando conjugado com o supra referido preceito legal, dispondo este último dispositivo legal o seguinte:
“Artigo 419º
Conferência
(…)
3 – O recurso é julgado em conferência quando:
(…)
c) Não tiver sido requerida a realização de audiência e não seja necessário proceder à renovação da prova nos termos do artigo 430º.”
A argumentação do recorrente é, essencialmente, alicerçada no pressuposto de que a fixação de um ónus de indicação dos pontos da motivação de recurso cuja discussão oral se pretende, no próprio requerimento de interposição de recurso, coloca em crise o direito fundamental de se fazer assistir por advogado em todos os actos processuais (artigo 32º, n.º 3, da CRP), de que goza o arguido.
Importa, desde já, afastar tal entendimento. Aliás, nem se compreende em que medida é que uma norma que fixa uma condição de acesso a determinada fase (facultativa) da tramitação de um recurso contrariaria tal direito fundamental. Aliás, tendo em conta a concreta tramitação dos autos recorridos, verifica-se que o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, do qual constavam as respectivas motivações e conclusões (artigo 411º, n.º 3, do CPP), foi subscrito pelo mesmo advogado que ora representa o recorrente perante este Tribunal e que, portanto, o teria representado em eventual audiência de julgamento, para efeitos de produção de alegações orais.
Parece, no entanto, que o recorrente pretende extrair do regime jurídico-processual originariamente consagrado em 1987, um (suposto) direito à fase de alegações orais e uma (suposta) distinção entre a fase de motivação do recurso e a fase de alegações (cfr. §§ 15 a 21 das conclusões). Para o recorrente a tramitação da fase de recurso apenas se iniciaria com a fase de audiência de julgamento, para produção de alegações orais, ou quando os autos recorridos sobem ao tribunal “ad quem” (artigos 406º e 407º do CPP), o que não corresponde ao regime actualmente vigente, o qual faz depender o seu início da manifestação da vontade de interposição de recurso (artigo 411º do CPP). Tal entendimento resulta, desde logo, da própria organização sistemática do regime jurídico aplicável aos recursos penais (“Livro IX – Dos recursos”) que se inicia no artigo 399º do CPP e que contém inúmeras diligências processuais prévias à tramitação perante o tribunal “ad quem”.
Com efeito, “a Lei n.º 48/2007, de 29.8, não só suprimiu as alegações escritas, como abandonou a regra da audiência no tribunal de recurso em processo penal”, tendo o legislador considerado que a supressão da possibilidade de apresentação de alegações escritas se justificava, na medida em que aquelas acabaram por se revelar “«actos processuais supérfluos», pois «a experiência demonstrou constituírem pura repetição das motivações» (ver a motivação da proposta de lei 109/X)”. Além disso, “com o mesmo objectivo de celeridade processual e ponderando que a audiência já constituía um direito renunciável, o legislador consagrou a audiência no tribunal de recurso como uma excepção” (Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário ao Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2009, p. 1118).
Sendo assim, a fixação legislativa de uma condição de realização de tal audiência de julgamento – que passou a constituir a excepção na tramitação processual dos recursos penais – não restringe o direito fundamental de assistência por advogado (artigo 32º, n.º 3, da CRP). Pelo contrário, ao longo de todas as diligências processuais legalmente admissíveis para a fase de recurso em causa, o recorrente foi devidamente representado pelo seu mandatário, só não tendo havido lugar a audiência de julgamento, com a presença deste último, para efeitos de produção de alegações orais, por não ter sido preenchida a condição processual decorrente do n.º 5 do artigo 411º do CPP.
6. Questão distinta – ainda que apenas subliminarmente referida pelo recorrente – é a de saber se a fixação de tal condição viola o direito ao recurso e as demais garantias de defesa do arguido (artigo 32º, n.º 1, da CRP).
Tendo em conta que este Tribunal pode julgar uma norma inconstitucional com fundamento distinto do invocado pelo recorrente (artigo 79º-C da LTC), há que averiguar se a norma extraída do n.º 5 do artigo 411º do CPP viola aqueles parâmetros.
Deve, porém, adiantar-se, desde logo, que essa violação não se verifica pelas razões que a seguir se enunciam.
Em primeiro lugar, a condição processual para produção de alegações orais, perante o tribunal de recurso, tal como fixada pelo n.º 5 do artigo 411º do CPP não configura uma “eliminação”, uma “redução” ou sequer uma “oneração” excessiva que diminua o âmbito e a extensão do direito fundamental de recurso penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP). Mesmo que o recorrente se veja privado da possibilidade de produção de alegações orais, certo é que o núcleo essencial do direito a que determinada decisão penal condenatória seja apreciada por um outro tribunal, mantém-se plenamente intacto, visto que as suas motivações escritas serão alvo de conhecimento, pela conferência resultante da alínea c) do n.º 3 do artigo 419º do CPP.
Em segundo lugar, a extensão do direito ao recurso à produção de alegações orais nem sequer resulta da Lei Fundamental (artigo 32º, n.º 1, da CRP), pelo que há que destrinçar o “direito fundamental ao recurso penal” de um (pretenso) “direito à produção de alegações orais” que, na perspectiva do recorrente, estaria ínsito naquele direito fundamental.
Em consequência, é constitucionalmente admissível que o actual regime dos recursos penais conceba a audiência de julgamento para produção de alegações orais como uma efectiva excepção ao regime normal de tramitação. Aliás, mesmo no âmbito do regime jurídico anterior à Lei n.º 48/2007, a produção de alegações orais nem sequer constituía um direito indisponível do arguido, podendo este dele prescindir.
Em terceiro lugar, é jurisprudência firme e constante deste Tribunal (cfr., por exemplo, Acórdão n.º 215/2007, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), que:
“Especificamente quanto ao processo criminal, em que é convocável o parâmetro constitucional do princípio das garantias de defesa, incluindo expressamente o direito ao recurso, tem-se considerado ser lícito ao legislador, na sua regulamentação, impor determinados ónus aos diversos intervenientes processuais.”
Ou seja, o legislador goza de uma ampla margem de apreciação neste domínio.
Conforme resulta da jurisprudência consolidada neste Tribunal, do direito fundamental ao recurso penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP) não resulta um direito de ver a questão controvertida que é objecto de recurso ser apreciada, oralmente, em audiência de julgamento. Assim ditou o Acórdão n.º 352/98 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):
“Nada na Constituição impõe, desta sorte, que nos recursos em matéria criminal que versem somente sobre matéria de direito deva haver lugar a uma audiência subordinada aos princípios da imediação e da oralidade.”
É este entendimento que se sufraga e reitera, considerando-se que a eventual ausência de uma fase de audiência de julgamento de recurso, mediante produção de alegações orais, não conflitua com o direito fundamental ao recurso penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP).
É certo que, não obstante esta conclusão, ainda se poderá averiguar se a solução legal ora em apreço conflitua com o princípio da proporcionalidade (artigos 2º CRP).
Para tal, há que verificar se a referida interpretação normativa ultrapassa o teste do princípio da proporcionalidade, na sua tripla dimensão: i) princípio da adequação ou da idoneidade; ii) princípio da necessidade ou da exigibilidade; iii) princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou da justa medida (neste sentido, cfr., entre muitos outros, Vitalino Canas, Proporcionalidade (Princípio da), in «Dicionário da Administração Pública», volume VI, Lisboa, 1994, pp. 620 a 628; Jorge Miranda / Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra, 2005, p. 162; Gomes Canotilho / Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra, 2007, pp. 392 e 393).
No caso em apreço, é inquestionável que a sujeição do recorrente a um ónus processual de identificação dos pontos da motivação de recurso que pretende discutir, mediante alegações orais, constitui medida adequada e idónea a assegurar uma maior eficiência e celeridade na tramitação processual penal (neste sentido, apontando a consagração da audiência, para produção de alegações orais, como um situação excepcional, à luz do novo regime de recurso, ver Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2009, p. 1118). Com efeito, tal medida tanto permite ao julgador (e aos recorridos, em particular ao Ministério Público, que exerce a acção penal) preparar(em) as questões a discutir em audiência de julgamento – note-se, a este propósito, que cabe ao Relator junto do tribunal recorrido, elaborar uma “exposição sumária sobre o objecto do recurso, na qual enuncia as questões que o tribunal entende merecerem exame especial” (artigo 423º, n.º 1, do CPP) –, como, simultaneamente, implica um esforço adicional dos recorrentes na compressão e síntese dos pontos da motivação a discutir, oralmente, em audiência.
Em segundo lugar, a interpretação normativa adoptada pelo tribunal “a quo” afigura-se igualmente como necessária. Nesta sede, impõe-se comparar diversas medidas alternativas igualmente idóneas e determinar se a escolha do legislador – neste caso, a interpretação normativa abraçada pela decisão recorrida – corresponde à menos lesiva daquelas.
É certo que o n.º 5 do artigo 411º do CPP fixa um ónus processual de natureza preceptiva. É igualmente certo que a omissão do cumprimento de tal ónus processual impossibilita o julgador de proceder ao agendamento e realização de audiência de julgamento de recurso, mediante produção de alegações orais pelo recorrente. Porém, nenhuma norma processual penal comina a extinção do direito fundamental ao recurso, mas tão só a não realização de uma fase da tramitação processual, a qual não implica qualquer decisão de não admissão do recurso interposto, seja mediante decisão sumária do Relator (artigo 417º, n.º 6, do CPP), seja mediante acórdão de conferência (artigo 420º, n.º 1, alínea c), do CPP). Pelo contrário, a falta de indicação dos pontos da motivação de recurso, de acordo com a interpretação normativa, apenas implica a não produção de alegações orais, mas exige sempre – desde que cumpridos os demais pressupostos processuais de conhecimento – a apreciação da motivação e respectivas conclusões de recurso, por parte do tribunal recorrido.
Assim sendo, não se afigura que a interpretação normativa em causa seja desproporcionada, por violação do princípio da necessidade.
Julga-se pois que a interpretação normativa do n.º 5 do artigo 411º do CPP, segundo a qual “o recorrente que pretenda ver o seu recurso de decisão que conheça a final do objecto do processo, apreciado em audiência no Tribunal da Relação deve requerê-lo aquando da interposição do recurso e indicar quais os pontos da motivação de recurso que pretende ver debatidos, sob pena de indeferimento da sua pretensão” não é contrária à Constituição, seja por violação do direito de assistência por advogado (artigo 32º, n.º 3, da CRP), seja por violação do direito de recurso penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP), seja por violação de quaisquer outros princípios ou normas constitucionais, designadamente dos princípios do Estado de Direito (artigo 2º, da CRP), da proporcionalidade (artigo 18º, n.º 2, da CRP) ou do direito ao contraditório em processo penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP).
7. Resta analisar a questão da alegada inconstitucionalidade das normas extraídas dos artigos 411º, n.º 5, e 419º, n.º 3, alínea c), ambos do CPP, quando interpretadas no sentido de não haver lugar a convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso, mediante indicação dos pontos da motivação que o recorrente pretende que sejam alvo de alegações orais.
Mais uma vez, o recorrente insiste na inconstitucionalidade daquela interpretação normativa por alegada violação do direito fundamental à assistência por advogado. Reiteram-se aqui todas as considerações já supra tecidas (cfr. § 6 do presente acórdão), a esse propósito, considerando-se que tal direito fundamental não fica precludido, na medida em que o recorrente só tem direito a ser assistido em todas as fases processuais, desde que a lei admita a existência de tais fases.
A questão da interpretação normativa que postula a dispensa de um dever de convite ao aperfeiçoamento, por parte do Relator, suscita, porém, o problema da sua eventual incompatibilidade com o direito fundamental ao recurso penal. O Tribunal Constitucional proferiu, aliás, jurisprudência sobre uma questão que só aparentemente é similar, qual seja a da ausência de norma processual expressa, no âmbito da vigência da lei processual penal anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que previsse o convite ao aperfeiçoamento das conclusões de recurso, quando aquelas não procedessem à indicação de elementos fixados pela lei (v.g., identificação de normas ou interpretações, em caso de recurso sobre matéria de Direito, pontos da matéria de facto recorrida, com indicação das concretas provas, especificação das gravações de audiência, etc.).
Resumidamente, o Tribunal Constitucional declarou, por unanimidade, a inconstitucionalidade dos (anteriores) artigos 412º, n.º 1, e 420º, n.º 1, ambos do CPP, “quando interpretados no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso, sem que previamente seja feito convite ao recorrente para suprir tal deficiência” (ver Acórdão n.º 337/2000, que, por sua vez, segue e complementa a orientação anteriormente fixada pelos Acórdãos n.º 193/97 e n.º 43/99, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Idêntico raciocínio foi abraçado pelo Tribunal Constitucional, relativamente a:
i) Falta de indicação, nas conclusões de recurso, de elementos necessários ao julgamento de matéria de Direito (Acórdãos n.º 288/2000 e n.º 320/2002, este último, com força obrigatória geral, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/);
ii) Falta de indicação, nas conclusões de recurso, de elementos necessários ao julgamento de matéria de facto (Acórdãos n.º 259/2002, n.º 529/2003 e n.º 320/2002, este último, com força obrigatória geral, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/);
iii) Falta de apresentação de conclusões de recurso (Acórdãos n.º 428/2003, em processo penal, e n.º 319/99 e n.º 265/2001, em processo contra-ordenacional, o último com força obrigatória geral, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
A Reforma Processual de 2007, viria a acomodar a lei processual penal a este entendimento jurisprudencial (cfr. actual artigo 417º, n.º 3, do CPP).
Perguntar-se-á se a não extensão de tal solução legislativa à falta de indicação dos pontos da motivação que o recorrente pretende discutir, mediante alegações orais, não seria inconstitucional, precisamente por violação das garantias de defesa do arguido.
Adiante-se, desde já, que resposta a esta questão também deve ser negativa.
Com efeito, a transposição do raciocínio desenvolvido pela jurisprudência supra citada somente seria possível mediante a detecção de um paralelismo substantivo entre as situações alvo daquelas decisões e a situação ora em apreço. Ora, ao contrário do que acontece nos presentes autos, as situações que justificam o convite ao aperfeiçoamento dizem respeito a um ónus de indicação de elementos do recurso cuja omissão redunda na rejeição ou no não conhecimento parcial do objecto do recurso interposto (artigo 417º, n.º 3, in fine, do CPP). Com efeito, as situações em causa dizem respeito a: i) indicação de normas ou interpretações normativas, em caso de recurso sobre matéria de Direito (artigo 412º, n.º 2, do CPP); ii) indicação de concretos pontos de facto e provas, em caso de recurso sobre matéria de facto (artigo 412º, n.º 3, do CPP); iii) identificação das gravações da audiência de julgamento, quando existentes (artigo 412º, n.º 4, do CPP), iv) especificação obrigatória dos recursos retidos nos quais o recorrente mantém interesse (artigo 412º, n.º 5, do CPP).
Ora, não é esse o caso dos presentes autos. Nunca a decisão recorrida considerou que o recorrente ficaria privado de uma decisão sobre o objecto do respectivo recurso, limitando-se a afirmar a impossibilidade de realização de audiência de julgamento e, consequentemente, a produção de alegações orais. Assim sendo, não se vislumbra o eventual paralelismo entre a situação em apreço nos presentes autos e as situações que foram alvo da jurisprudência constitucional supra citada e que, presentemente, justificam a formulação de despacho de aperfeiçoamento ao abrigo do n.º 3 do artigo 417º, do CPP.
Por último, recorde-se que, tendo em conta que cabe ao legislador ordinário uma ampla margem de liberdade de conformação das condições para exercício de direitos processuais, designadamente em processo penal, não deve este Tribunal questionar as suas opções legislativas, salvo quando esteja em causa uma violação grave e manifesta dos princípios e normas constitucionais, o que, como já atrás se demonstrou, não se verifica nos presentes autos.
A terminar, refira-se que a referência do recorrente à alínea c) do n.º 3 do artigo 419º do CPP não justifica quaisquer considerações adicionais, na medida em que a interpretação normativa em apreço, resulta da sua conjugação com o já referido n.º 5 do artigo 411º do CPP. Como é evidente, na medida em que a decisão recorrida interpretou esta norma no sentido de não ser exigível convite ao aperfeiçoamento e, consequentemente, concluiu pela inadmissibilidade legal de realização de audiência de julgamento, acabou por interpretar a alínea c) do n.º 3 do artigo 419º do CPP como integrando não só as situações em que tal audiência não é sequer requerida, como outras em que, sendo requerida, a mesma se torna legalmente inadmissível, por força do incumprimento do ónus legal resultante do n.º 5 do artigo 411º do CPP. Não se vislumbra de que modo, “de per si”, poderia tal norma ser considerada inconstitucional, na medida em que o julgamento em conferência não prejudica, de modo algum, o conhecimento sobre a motivação escrita de recurso e, portanto, não atenta contra o direito de recurso e as garantias de defesa do arguido (artigo 32º, n.º 1, da CRP).
Em suma, cabe ao legislador ordinário determinar quais as consequências processuais da falta de indicação dos elementos exigidos pelo n.º 5 do artigo 411º do CPP. Tendo optado por não incluir essa omissão nas causas que justificam o convite ao aperfeiçoamento, na fase de exame preliminar (artigo 417º, n.º 3, do CPP), só se justificaria julgar inconstitucional a interpretação normativa segundo a qual não existe dever legal de convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso, mediante indicação dos pontos da motivação que o recorrente pretende sejam alvo de alegações orais, se aquela se afigurasse grave e manifestamente desproporcionada face ao direito de recurso e às garantias de defesa do recorrente (artigo 32º, n.º 1, da CRP). Não se verificando, em concreto, qualquer desproporcionalidade nessa interpretação normativa, mais não resta do que julgar improcedente o recurso, também quanto à segunda interpretação normativa.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 24 de Março de 2011.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.