Imprimir acórdão
Processo n.º 235/10
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, A., S.A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
Após convite ao aperfeiçoamento, a recorrente definiu, como objecto do recurso, a apreciação da constitucionalidade da interpretação da alínea a) do n.º 1, alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º e alínea d) do n.º 1 do artigo 4.º da Lei 46/2007, de 24 de Agosto, (Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, doravante, designada por LADA), no sentido “de se permitir o acesso ilimitado a quaisquer documentos, de natureza administrativa ou comercial, de empresas públicas e concessionárias de serviço público, mesmo que produzidos em ambiente de concorrência”.
2. A B., S.A., aqui recorrida, solicitou à recorrente o acesso e consulta da proposta da A. S.A., vencedora no processo de atribuição dos direitos de transmissão em televisão de acesso não condicionado livre de 33 jogos das edições de 2008-09 e 2009-10 da …, bem como do contrato entre a aludida proponente e a C., através do qual foram adquiridos tais direitos de transmissão.
Perante a recusa da recorrente, a recorrida apresentou uma queixa à Comissão de Acesso a Documentos administrativos (CADA), tendo esta entidade emitido parecer no sentido de a aqui recorrente estar obrigada a facultar os documentos solicitados.
Não obstante tal parecer, a recorrente recusou o acesso aos elementos em análise.
A recorrida instaurou, então, a presente acção, junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, pedindo a intimação da recorrente a facultar-lhe o acesso e consulta dos referidos documentos.
Por decisão de 12 de Março de 2009, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa julgou procedente a pretensão deduzida, tendo, em consequência, intimado a recorrente a facultar à recorrida, no prazo de dez dias, o acesso e consulta dos documentos pretendidos.
A recorrente interpôs recurso de tal sentença.
O Tribunal Central Administrativo Sul, por acórdão de 15 de Julho de 2009, decidiu negar provimento ao recurso, confirmando inteiramente a sentença recorrida.
Inconformada, a recorrente interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, concluindo as suas alegações do seguinte modo:
“1. Verificam-se os requisitos necessários à admissão do presente recurso de revista, nos termos previstos no artigo 150.°, n.° 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
2. O acórdão recorrido, ao considerar que a A. está sujeita ao dever de facultar o acesso aos documentos solicitados pela B., faz uma errada interpretação dos artigos 3.° e 4.° da LADA, violadora do princípio constitucional do arquivo aberto, dos direitos de igualdade e de livre iniciativa económica e do princípio da concorrência (consagrados, respectivamente, nos artigos 268.°, n.° 2, 13.°, 61.° e 81.° e 99.°, todos da Lei Fundamental), uma vez que tal interpretação configura um tratamento discriminatório da A. face aos seus concorrentes (o que é, aliás, reconhecido na sentença recorrida), discriminação essa intolerável à luz da Constituição da República Portuguesa.
3. Acresce que a aludida interpretação, no sentido de sujeitar a actividade privada de empresas públicas sob forma privada à LADA, não se acomoda à unidade do sistema jurídico, já que as empresas públicas com forma societária não estão sujeitas ao Código de Procedimento Administrativo e têm um regime jurídico de direito privado, que apenas sofre compressões se e quando estejam em causa actividades que traduzam o exercício de poderes públicos.
4. Não procede igualmente o argumento aduzido na decisão recorrida de que alude ao artigo 65.° do Código do Procedimento Administrativo (que consagra o direito à informação procedimental) deve aplicar-se à A., por força do artigo 2.°, n.° 5, do Código do Procedimento Administrativo – a este respeito, a doutrina e jurisprudência invocadas na sentença recorrida debruçam-se sobre uma realidade diferente da que está em causa nos presentes autos, pelo que a sua invocação não pode ser considerada – , razão pela qual decidiu mal o Tribunal a quo.
5. Também o argumento retirado do disposto no artigo 18.°, alinea a), da LADA não tem a virtualidade que a sentença recorrida lhe atribui no sentido de ver nela a confirmação da interpretação assumida de que a LADA se aplica a documentos produzidos pelas entidades descritas no artigo 4.° da LADA, quer relevem da actividade administrativa quer da actividade de gestão privada.
6. A correcta interpretação da LADA – diferente da que está subjacente à decisão recorrida - deve conferir relevância ao respectivo âmbito objectivo de aplicação, distinguindo entre actividade de gestão privada e actividade de gestão pública ou administrativa das entidades a ela sujeitas em abstracto, por forma a verificar, em concreto se se justifica o reconhecimento do direito de acesso aos documentos (o que só acontece caso se esteja diante do exercício de poderes públicos).
7. À luz desta interpretação, e tendo os documentos em questão sido produzidos no âmbito da actividade concorrencial da A., não haverá que reconhecer à B. direito de acesso aos mesmos, razão pela qual a sentença ora recorrida, ao considerar que tais documentos — a proposta e o contrato — estão abrangidos pela LADA, viola o disposto nos artigos 3.°, n.° 2, alínea b), e 4.° da mesma Lei.
8. A decisão tomada pelo Tribunal a quo, sufragando a pretensão apresentada pela B., permite que esta entidade obtenha informação comercial sobre um outro operador seu concorrente no mercado, assim se permitindo um posicionamento mais adequado no mercado, solução que se reconduz à figura da fraude à lei.
9. A decisão proferida pelo Tribunal a quo viola, por isso, os artigos 2.°, n.° 5, e 65.° do Código do Procedimento Administrativo, e os artigos 3.°, n.° 2, alínea b), 4.º, 6.° e 18.° da LADA, para além dos preceitos e dos princípios de natureza constitucional referidos: do princípio constitucional do arquivo aberto, dos direitos de igualdade e de livre iniciativa económica e do princípio da concorrência.”
O Supremo Tribunal Administrativo julgou improcedente o recurso, confirmando o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul.
3. O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, datado de 6 de Janeiro de 2010, consubstancia a decisão recorrida, no presente recurso de constitucionalidade.
No requerimento de interposição de recurso, vem a recorrente referir que “os artigos 3º, n.ºs 1, alínea a), e 2, alínea b), e 4.º, n.º 1, alínea d), da LADA, na interpretação da mencionada decisão do Supremo Tribunal Administrativo, padecem de inconstitucionalidade material por ofensa do disposto nos artigos 13.º, 61.º, 81.º, 99.º e 268.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, por referência ao princípio do arquivo aberto, ao direito da igualdade, ao direito da livre iniciativa económica privada e ao princípio da concorrência.”
Concretiza, após convite ao aperfeiçoamento, que a interpretação, cuja sindicância pretende se reconduz ao “sentido normativo de se permitir o acesso ilimitado a quaisquer documentos, de natureza administrativa ou comercial, de empresas públicas e concessionárias de serviço público, mesmo que produzidos em ambiente de concorrência”.
4. Produzidas as alegações, foram as partes convidadas a pronunciarem-se, quanto ao pressuposto de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Nessa sequência, veio a recorrente apresentar peça processual do seguinte teor:
“1. A questão de inconstitucionalidade objecto do presente recurso prende-se, conforme indicação da ora recorrente em requerimento apresentado em 6 de Maio de 2010, com a inconstitucionalidade da norma resultante da interpretação, do Supremo Tribunal Administrativo, dos artigos 3.° e 4.° da LADA, no sentido de que é admitido o acesso ilimitado por terceiros a quaisquer documentos, de natureza administrativa ou comercial, de empresas públicas e concessionárias de serviço públicos, mesmo que produzidos num contexto de concorrência com outras entidades não sujeitas a idêntica obrigação.
É precisamente esse sentido normativo genérico e abstracto, que, aplicado ao presente caso concreto – como foi pelo Tribunal a quo –, resulta em tratamento discriminatório em relação à A. e à respectiva posição comercial, exigindo-lhe a disponibilização de qualquer informação produzida num contexto concorrencial - no caso concreto, com vista à aquisição de direitos televisivos - e mesmo que os restantes intervenientes nesse mercado ou nesse negócio de natureza privada não estejam sujeitos a idênticas exigências ou sujeições. E é justamente tal norma ou tal sentido normativo que se reputa inconstitucional.
2. A referida questão de inconstitucionalidade - objecto do presente recurso - foi previamente suscitada pela A., de modo processualmente adequado, nos termos exigidos pelo n.° 2 do artigo 72.° da LPTC.
Em causa está uma intimação para prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões apresentada pela B., Recorrida nos presentes autos, na qual requereu o acesso ao contrato que a recorrente celebrou com a C. relativo à transmissão de jogos de futebol da ... das épocas de 2008/2009 e 2009/2010, pedido que foi objecto de parecer favorável emitido pela Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos e que, posteriormente, veio a ter acolhimento jurisdicional.
Nos sucessivos recursos interpostos, a A. sustentou que a interpretação feita pelo tribunais a quo dos artigos 3.° e 4.º da Lei de Acesso aos Tribunais Administrativos (LADA) era constitucionalmente inaceitável em face do (i) princípio do arquivo aberto, (ii) do princípio da igualdade, (iii) do direito de livre iniciativa económica e (iv) do princípio da concorrência - cfr. conclusões 1.ª e 9.ª da alegações para o Tribunal Central Administrativo do Sul e conclusão 2.ª da alegações de revista.
Essa posição da recorrente assentava, como se encontra desenvolvido nas referidas alegações de recurso, no entendimento de que o princípio do arquivo aberto, conjugado com o princípio da igualdade e com o direito fundamental de livre iniciativa económica, bem como com o princípio da concorrência, não autorizam a interpretação que tem sido sustentada na jurisprudência anterior, segundo a qual os artigos 3.° e 4.° da LADA permitem, sempre e em qualquer circunstância, perante actividade de natureza concorrencial ou não concorrencial, o acesso ilimitado aos documentos detidos por empresas públicas e concessionárias de serviço público. E de documentos que, no primeiro caso, interessam, justamente, à referida actividade concorrencial, como sucede nesta situação concreta.
E a A. sempre sublinhou que tal leitura, inequivocamente normativa, é constitucionalmente insustentável.
3. É conhecida e aliás compreensível a posição exigente que vem sendo assumida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional no que respeita aos pressupostos processuais do recurso de inconstitucionalidade e, em particular, à exigência de suscitação processualmente adequada da inconstitucionalidade normativa em sede de fiscalização concreta. Sabendo-se da criteriosa exigência pelo Tribunal Constitucional da verificação de tais pressupostos processuais, os mesmos encontram-se, no caso concreto, integralmente satisfeitos. Vejamos.
(i) O objecto do recurso como questão normativa
4. Dúvidas não há de que o objecto de recurso de inconstitucionalidade vai dirigido a uma norma (rectius, a um sentido normativo), com o que se cumpre o primeiro pressuposto processual exigido nos recursos de constitucionalidade.
Como se disse, o que se reputa inconstitucional não é a decisão recorrida, mas, isso sim, a interpretação que a decisão recorrida faz dos artigos 3.° e 4.° da LADA e o sentido normativo (ou a norma) que resulta dessa interpretação. E esta conclusão emerge, de modo transparente, da conclusão 2.ª das alegações de recurso apresentadas pela aqui recorrente no Tribunal a quo, onde pode ler-se que “[o] acórdão recorrido, ao considerar que a A. está sujeita ao dever de facultar o acesso aos documentos solicitados pela B., faz uma errada interpretação dos artigos 3.° e 4° da LADA, violadora do princípio constitucional do arquivo aberto, dos direitos de igualdade e de livre iniciativa económica e do princípio da concorrência (consagrados, respectivamente nos artigos 268.°, n.° 2, 13.°, 61° e 81° e 99.° todos da Lei Fundamental (...)”.
(ii) Esgotamento dos recursos ordinários
5. O n.° 2 do artigo 70.° da LPTC admite recurso de inconstitucionalidade desde que esteja esgotada a possibilidade de interposição de recurso ordinário. Ora, a decisão recorrida foi proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo, no âmbito de um recurso de revista interposto de acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, pelo que dúvidas não há se que este pressuposto se encontra verificado.
(iii)Suscitação da questão de inconstitucionalidade em termos susceptíveis de aplicação genérica
6. A respeito deste pressuposto processual, o Tribunal Constitucional tem entendido que “[a]o questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição” - cfr. Acórdão n.° 367/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
No entendimento da recorrente, das alegações de recurso de revista apresentadas junto do Supremo Tribunal Administrativo resulta claramente que os parâmetros exigidos pela referida jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o referido pressuposto processual se encontram cumpridos nos autos.
E tal percepção emerge da análise da conclusão a que exclusivamente se reporta a decisão recorrida (conclusão 2.ª das alegações de recurso), muito embora saia reforçada da análise do próprio corpo das alegações de recurso.
Atente-se, desde logo, na referida conclusão 2.ª: “[o] acórdão recorrido, ao considerar que a A. está sujeita ao dever de facultar o acesso aos documentos solicitados pela B., faz uma errada interpretação dos artigos 3.° e 4.° da LADA, violadora do princípio constitucional do arquivo aberto, dos direitos de igualdade e de livre iniciativa económica e do princípio da concorrência (consagrados, respectivamente nos artigos 268.°, n.° 2, 13.°, 61.° e 81.° e 99.°, todos da Lei Fundamental), uma vez que tal interpretação configura um tratamento discriminatório da A. face aos seus concorrentes, discriminação essa intolerável à luz da Constituição da República Portuguesa”.
7. Mas vejam-se, mais detalhadamente, os diversos segmentos da aludida conclusão e ver-se-á que a mesma reúne os requisitos exigidos pelo Tribunal Constitucional. De facto, aí se refere o seguinte:
a) “[O] acórdão recorrido, ao considerar que a A. está sujeita ao dever de facultar o acesso aos documentos solicitados pela B., faz uma errada interpretação dos artigos 3.° e 4.° da LADA (...) [que] configura um tratamento discriminatório da A. face aos seus concorrentes (...)“, o que equivale a dizer que o sentido normativo resultante da interpretação daquelas normas da LADA pelo acórdão recorrido é justamente aquele que permite o acesso por qualquer interessado e, desde logo, por qualquer concorrente da A. (nestes autos sempre perspectivada em torno do seu estatuto de empresa pública e de concessionária de serviço público) a documentos comerciais desta, produzidos em ambiente concorrencial.
É esta, portanto, a “exacta dimensão normativa do preceito que [a Recorrente] entende não dever ser aplicada por ser incompatível com a Constituição” (cfr. acórdão n.° 349/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
E assim se vê que esta enunciação do sentido normativo permite que”(...), no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição” (cfr. o citado acórdão n.° 367/94).
b) De resto, noutro segmento daquela mesma conclusão escreve-se ainda que “(...) [essa] interpretação dos artigos 3.° e 4.° da LADA [é] violadora do princípio constitucional do arquivo aberto, dos direitos de igualdade e de livre iniciativa económica e do princípio da concorrência (consagrados, respectivamente, nos artigos 268.°, n.° 2, 13.°, 61.° e 81.° e 99.°, todos da Lei Fundamental) (...)“, completando-se o preenchimento do pressuposto processual em análise, com a indicação do porquê da incompatibilidade, isto é, a indicação da norma ou princípio constitucional infringido.
8. E se assim é a partir das conclusões das alegações de recurso - as quais, embora delimitando o seu objecto, são necessariamente sumárias e sintéticas, remetendo o desenvolvimento dos argumentos nelas plasmados para o corpo das alegações -, uma leitura do corpo das alegações, na parte em que se debruça sobre a questão de inconstitucionalidade em apreço, é igualmente esclarecedora:
a) Na página 19 das alegações pode ler-se:” (...) ao não ponderar o princípio do arquivo aberto com outros princípios e com a especificidade atinente ao regime jurídico de actuação empresarial da A. a decisão recorrida interpretou as normas contidas nos artigos 3.° e 4.° da LADA em sentido desconforme à Constituição e ao princípio constitucional do arquivo aberto”;
b) Na mesma página 19, mais adiante, estendo-se até ao início da página 20, refere-se que “(...) não pode sujeitar-se, sem critério e sem atender à especificidade na natureza da actividade em causa, entidades privadas e sujeitas a uma regime de direito privado às mesmas regras que impendem sobre entidades com natureza pública. Pense-se, justamente, nas empresas públicas com firma societária e nas concessionárias, sendo certo que a A. reúne estes dois estatutos, mas que, no caso, confluem no sentido da mesma solução”;
c) Na página 31 pode ler-se :“(...) o deferimento da pretensão da B. significa que os operadores privados de televisão podem ter acesso às propostas comerciais apresentadas por um concorrente, apenas porque um tal concorrente é uma empresa pública e concessionária, ao passo que a A. não tem qualquer possibilidade de, no mesmo mercado concorrencial, aceder à estratégia comercial levada a cabo pelos seus concorrentes privados, isto é, pela SIC e pela B., o que se afigura constitucionalmente inaceitável. O deferimento da pretensão da B. equivale, portanto, a uma interpretação inconstitucional das normas da LADA face ao princípio do arquivo aberto e face aos direitos de iniciativa económica privada e de igualdade e face ao princípio da concorrência tal como constitucionalmente consagrado, razão adicional para que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que se mostre conforme com tais preceitos e princípios constitucionais”.
d) Na página 32 das alegações (no § 4.°, em jeito de considerações finais), a recorrente, evidenciando o passo em que se afasta do entendimento do Tribunal a quo, alegou o seguinte:
(i) “(...) a circunstância de a A. assumir natureza de empresa pública e de ser concessionária (...) implica que uma proposta comercial apresentada perante uma qualquer entidade privada e que não resulte da existência de um direito exclusivo do contrato de concessão tenha obrigatoriamente de ser divulgada perante um terceiro que se mostre interessado nesse conhecimento (...)“, e ainda
(ii) “(...) a A. está obrigada a divulgar à B. a proposta que apresentou à C. para a aquisição de determinados direitos comerciais sobre conteúdos televisivos, (i) sabendo-se que a B. foi concorrentes nesse procedimento concorrencial em questão, (ii) sabendo-se que a proposta da B. foi preterida em beneficio da proposta da A. e (iii) sabendo-se que, na situação inversa, não há mecanismo legal que permita à A. aceder à proposta apresentada pela B.-”.
As passagens das alegações da Recorrente que aqui se transcrevem são também claras quanto à questão de saber se a Recorrente enunciou, ou não, de modo claro e perceptível o sentido normativo que a decisão recorrida atribui às normas legais e que se considera inconstitucional.
É que das mesmas emerge inequivocamente que a Recorrente não aceita e considera inconstitucional o entendimento segundo o qual as empresas públicas e as concessionárias de serviço público estão sujeitas a um dever de acesso ilimitado a documentos por si produzidos, mesmo que em regime concorrencial, sendo justamente esse o sentido normativo que as instâncias anteriores retiraram dos normativos questionados. E estas passagens não podem deixar de ser também levadas em consideração para efeitos da verificação dos pressupostos processuais do recurso em apreço.
9. À evidência do cumprimento integral do pressuposto processual em causa não se opõe o facto de a Recorrente, na enunciação da questão normativa, se referir ao caso concreto - isto é, aludir à A., aos concretos documentos cujo acesso é requerido e à própria B., que os requer.
Na verdade, essa circunstância (própria, aliás, de um pleito judicial) não invalida que a questão normativa haja sido suscitada em termos susceptíveis de aplicação genérica. Isto porque:
> Ao longo das suas alegações, é constantemente referido o estatuto da A. que assume relevância, para efeitos das questões suscitadas - o estatuto de empresa pública e de concessionária de serviço público.
> Também quanto aos documentos cujo acesso é requerido pela B., extrai-se, em termos totalmente fechados e inequívocos, que o que assume relevância nas alegações e na posição da Recorrente é a circunstância de tais documentos terem sido produzidos em ambiente concorrencial.
10. Fica, por isso, claro, neste quadro e na perspectiva da A., que a questão normativa cuja constitucionalidade é suscitada é apresentada em termos susceptíveis de aplicação genérica, abstracta e independente do caso concreto, com isso se cumprindo a exigência a que vem aludindo a jurisprudência do Tribunal Constitucional.”
Por seu lado, a recorrida, pronunciou-se, nos seguintes termos:
“1. A Recorrida não pode afirmar que não tenha a Recorrente suscitado junto do Supremo Tribunal Administrativo a alegada inconstitucionalidade da interpretação que o mesmo Superior Tribunal faz da LADA;
2. Contudo, e como já em sede de Contra-Alegações, apresentadas no presente recurso, havia a Recorrida dito, a invocação da alegada inconstitucionalidade foi sempre realizada de uma forma vaga e nem sempre facilmente apreensível, sustentada fundamentalmente numa alegada contrariedade do Acórdão Recorrido com um conjunto de princípios constitucionais;
3. Aliás, não foi seguramente em vão que a Recorrente foi convidada, logo no início deste processo junto do Tribunal Constitucional, a reformular o seu requerimento esclarecendo qual seria o seu fundamento, tudo nos termos do art.° 75.°-A, da LOFPTC;
4. Ou seja, não sendo possível afirmar que a Recorrida não tenha suscitado a questão da alegada inconstitucionalidade perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, de um ponto de vista meramente formal, a verdade é que também não se pode de forma alguma afirmar que o tenha feito de forma fundamentada e de acordo com o que se determina na norma constante do art.° 75.º, n.° 2, da LOFPTC, uma vez que não resultando de forma clara e inequívoca, dessas referências vagas e imprecisas, qual ou quais as alegadas inconstitucionalidades da interpretação levada a cabo pelo Supremo Tribunal Administrativo, a qual foi igualmente sufragada por todas as instâncias inferiores e corresponde à prática inequívoca e continuada da própria CADA;
5. Pelo que, e salvo melhor entendimento, não se encontra inequivocamente preenchido o requisito exigido no art.° 72.°, n.° 2, da LOFPTC, não bastando a invocação difusa e não fundamentada de uma alegada contrariedade da interpretação adoptada pelo STA a um conjunto de princípios constitucionais fundamentais, pondo em causa a verdadeira essência do princípio da transparência da Administração, também ele de natureza constitucional;
6. Para a Recorrida, parece, pelo contrário, bastante clara e inequívoca a finalidade da Recorrente através dessas referências não fundamentadas, a qual se traduz na pretensão de erigir o recurso para o Tribunal Constitucional num quarto grau de jurisdição, aliada ao intuito de continuar a protelar por mais tempo o cumprimento das suas obrigações enquanto empresa pública e concessionária de um serviço público;
7. Pelo exposto, deverá, pois ser indeferido o presente recurso, com as legais consequências.”
II – Fundamentos
5. O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objecto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
6. Vejamos, então, se os aludidos requisitos – de necessária verificação cumulativa – se encontram preenchidos in casu.
Comecemos pelo pressuposto que condiciona a legitimidade activa para o recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 72.º da LTC.
A recorrente refere que a questão de constitucionalidade, cuja apreciação é requerida, havia sido, por si, suscitada nos recursos jurisdicionais interpostos da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa e do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul.
Compulsados os autos, verifica-se, porém, que a única questão de constitucionalidade que a recorrente suscitou previamente, perante o tribunal a quo, foi a relativa à interpretação dos artigos 3.º e 4.º da LADA, “no sentido de sujeitar (à aplicação de tal diploma) a actividade privada de empresas públicas, sob a forma privada.”
No tocante a tal questão, refere a recorrente, nas conclusões das alegações do recurso da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, o seguinte:
“ A sentença recorrida, ao considerar que a A. está sujeita ao dever de facultar o acesso aos documentos solicitados pela B., faz uma errada interpretação dos artigos 3.° e 4.º da LADA, violadora do princípio constitucional do arquivo aberto, dos direitos de igualdade e de livre iniciativa económica e do princípio da concorrência (consagrados, respectivamente, nos artigos 268.°, n.º 2, 13.º, 61.º e 81.º e 99.º, todos da Lei Fundamental), uma vez que tal interpretação configura um tratamento discriminatório da A. face aos seus concorrentes (o que é, aliás, reconhecido na sentença recorrida), discriminação essa intolerável à luz da Constituição da República Portuguesa.
Acresce que a aludida interpretação, no sentido de sujeitar a actividade privada de empresas públicas sob forma privada à LADA, não se acomoda à unidade do sistema jurídico.” (negrito nosso)
E, nas alegações do recurso de revista, refere, sob a epígrafe “A violação dos princípios da iniciativa privada, da igualdade e da concorrência”:
“21. Reconheceu a sentença inicialmente recorrida e o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo não afasta essa percepção, que os documentos em questão foram produzidos no âmbito de uma actuação em regime de mercado concorrencial.
Porém, considera o Tribunal a quo que o tratamento discriminatório que daí resulta tem uma justificação: o facto de a A. ser um empresa pública, cujo estatuto justifica o diferente tratamento, face aos seus concorrentes, em matéria de acesso aos documentos do processo em causa.
Conclui, por isso, sem mais, o Tribunal a quo que o reconhecimento do direito de acesso aos aludidos documentos não constitui qualquer violação do direito de liberdade de iniciativa privada (consagrado no artigo 61.° da Constituição da República Portuguesa) nem do direito de igualdade de tratamento (previsto no artigo 13.° da Constituição) nem do princípio da concorrência (artigos 81.° e 99.° da Constituição), princípios que entende inaplicáveis (cfr. p. 5).
Retira-se, assim, da decisão recorrida que o fundamento para o aludido entendimento (de inexistência de violação dos preceitos constitucionais invocados) reside na norma legal que prevê a sujeição das empresas públicas à LADA. Por outras palavras: em resposta à invocação, pela ora recorrente, da inconstitucionalidade de uma interpretação das normas da LADA (no sentido de sujeitar a actividade privada das empresas públicas com forma privada ao direito de acesso aos documentos) oferece o Tribunal a quo a própria norma interpretada no sentido que se reputa inconstitucional. De outra forma ainda, invocou-se a inconstitucionalidade da interpretação que a B. defende do artigos 3.° e 4.° da LADA e o Tribunal a quo rejeita a inconstitucionalidade, ainda que sem grande detalhe sobre a questão.
De qualquer modo, decorre da própria decisão recorrida que a sujeição da A. ao direito de acesso aos documentos configura um tratamento discriminatório face aos seus concorrentes, pondo-se em causa o direito de igualdade e deturpando-se as próprias regras de funcionamento do mercado. Com efeito, na nossa ordem jurídico-constitucional, o princípio da concorrência não impõe qualquer capitis deminutio às empresas públicas incompatível com o princípio da coexistência dos sectores de propriedade. Pelo contrário, a preocupação constitucional com a concorrência e o mercado não tem apenas em vista o sector privado.
Conforme sublinha o Acórdão n.° 444/93, na ordem jurídico-constitucional portuguesa, as empresas privadas coexistem com empresas do sector público [artigo 80.°, alínea b), e artigo 82.°, n.° 1] e com elas concorrem [artigo 81.°, alínea f)]. Além disso, constituem incumbências do Estado assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral [artigo 81.°, alínea f)], bem como velar pela concorrência salutar dos agentes mercantis e combater as práticas comerciais restritivas [artigo 99.°, alíneas a) e c)]
Logo, numa solução confirmada pelo Direito Comunitário (artigo 86.° do TCE), o principio da concorrência aplica-se às relações entre empresas públicas e empresas privadas.
Neste sentido, o Tribunal Constitucional Federal Alemão e a doutrina germânica têm vindo justamente a admitir a possibilidade de reconhecimento da titularidade de direitos fundamentais a pessoas colectivas de direito público e, genericamente, às entidades de natureza empresarial integradas no sector público, quando a actuação destas se reconduza ao desenvolvimento de actividades de carácter económico e, em especial, quando inseridas num mercado concorrencial. Esta orientação funda-se, no essencial, na consideração, inteiramente transponível para o caso que aqui nos ocupa, de que, nestes casos, as entidades integradas no sector público se encontram colocadas, no que toca à actividade económica desenvolvida, numa posição equiparável à de outras empresas de natureza privada actuantes no mesmo mercado.
KLAUS STERN afirma, a este propósito, que “o Tribunal Constitucional Federal (“Bundesverfassungsgericht”) não decidiu conclusivamente, até à data, a questão relativamente às instituições de direito público, com capacidade jurídica ilimitada ou parcial, cuja actuação, de natureza económica, se processa, em regra, num mercado concorrencial.” No entanto, nestes casos, “a titularidade de direitos fundamentais justifica-se quando estas instituições devam ser equiparadas, quanto ao seu posicionamento num mercado concorrencial, a empresas de direito privado. Nestes casos, não se trata já do exercício de competências e da realização de tarefas comunitárias, mas antes de uma actuação económica no âmbito do mercado. Nesta medida, poder-se-ia argumentar que a organização jurídico-pública é acidentalmente imposta”.
Ora, o deferimento da pretensão da B. significa que os operadores privados de televisão - e quaisquer outras entidades detidas pelo Estado, em relação a qualquer contrato que as mesmas celebrem - podem ter acesso às propostas comerciais apresentadas por um concorrente, apenas porque um tal concorrente é uma empresa pública, ao passo que a A. não tem qualquer possibilidade de, no mesmo mercado concorrencial, aceder à estratégia comercial levada a cabo pelos seus concorrentes privados, isto é, pela SIC e pela B., o que se afigura constitucionalmente inaceitável. O deferimento da pretensão da B. equivale, portanto, a uma interpretação inconstitucional das normas da LADA face ao princípio do arquivo aberto e face aos direitos de iniciativa económica privada e de igualdade e face ao princípio da concorrência tal como constitucionalmente consagrado, razão adicional para que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que se mostre conforme com tais preceitos e princípios constitucionais.
c) O facto de a A. assumir natureza de empresa pública e concessionária – o que não está em causa – implica que uma proposta comercial apresentada perante uma qualquer entidade privada e que não resulte da existência de um direito de exclusivo do contrato de concessão tenha obrigatoriamente de ser divulgada perante um terceiro que se mostre interessado nesse conhecimento-”
E retoma, nas conclusões de tal peça processual, o teor das conclusões apresentadas no recurso anterior:
“2. O acórdão recorrido, ao considerar que a A. está sujeita ao dever de facu1tar o acesso aos documentos solicitados pela B., faz uma errada interpretação dos artigos 3.° e 4.° da LADA, violadora do princípio constitucional do arquivo aberto, dos direitos de igualdade e de livre iniciativa económica e do princípio da concorrência (consagrados, respectivamente, nos artigos 268.°, n.º 2, 13.º, 61.º e 81.º e 99.º, todos da Lei Fundamental), uma vez que tal interpretação configura um tratamento discriminatório da A. face aos seus concorrentes (o que é, aliás, reconhecido na sentença recorrida), discriminação essa intolerável à luz da Constituição da República Portuguesa.
3. Acresce que a aludida interpretação, no sentido de sujeitar a actividade privada de empresas públicas sob forma privada à LADA, não se acomoda à unidade do sistema jurídico.” (negrito nosso)
Ora, tal questão de constitucionalidade não coincide com a que foi apresentada à apreciação do Tribunal Constitucional, no presente recurso.
Na verdade, a questão em que a recorrente centra o presente recurso de constitucionalidade – e que veio precisar quando convidada – é a da conformidade constitucional da interpretação dos artigos 3.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, alínea b), e 4.º, n.º 1, alínea d), da LADA no “sentido normativo de se permitir o acesso ilimitado a quaisquer documentos, de natureza administrativa ou comercial, de empresas públicas e concessionárias de serviço público, mesmo que produzidos em ambiente de concorrência”.
Tal questão, na sua dimensão normativa, autonomizada dos juízos subsuntivos específicos do caso concreto, não foi, em nenhum momento, colocada perante o tribunal a quo, de modo adequado.
Quanto a este ponto, cumpre esclarecer que o requisito de suscitação prévia só se mostra preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido colocada à apreciação do tribunal recorrido de forma expressa, directa, clara e perceptível, de tal modo que, de acordo com as regras que regem a tramitação do processo-base, se crie para o tribunal a quo um dever de pronúncia sobre a matéria a que tal questão se reporta.
A identificação da questão de constitucionalidade deverá de ser feita, logo perante o tribunal recorrido, com um rigor certeiro, por forma a que fique assegurada ulterior coincidência entre a questão previamente suscitada, a interpretação normativa aplicada na decisão recorrida e a fixada como objecto de recurso, perante o Tribunal Constitucional (cfr. Acórdãos deste Tribunal com os n.ºs 477/05, 650/05, 59/08, 383/08, 434/08 e 20/09).
Ora, na presente situação, não obstante a recorrente problematizar a desconformidade da interpretação dos artigos 3.º e 4.º da LADA, feita pelas instâncias, aludindo aos princípios e preceitos constitucionais alegadamente violados, não logra enunciar claramente tal interpretação, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, especificando a mesma, através da formulação expressa de uma regra ou sentido normativo, susceptível de operar a coincidência com a questão que conforma o presente recurso de constitucionalidade, definida após convite ao aperfeiçoamento do respectivo requerimento de interposição.
Assim – e sem curarmos de assumir, agora, posição sobre a verificação de um segundo pressuposto, atinente à circunstância de tal interpretação estar ou não abarcada pela ratio decidendi da decisão recorrida – teremos de concluir que, não tendo a questão colocada no presente recurso sido suscitada, «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), ficou prejudicada a admissibilidade do recurso.
Mais sucede que, à semelhança do que se decidiu na Decisão sumária n.º 156/2010 deste Tribunal, a propósito de situação idêntica, com a mesma recorrente, se poderá, também, neste caso, referir que:
“ A circunstância de o Tribunal a quo ter decidido conhecer da questão de constitucionalidade não tem como efeito o suprimento da falta de preenchimento de um requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade. Como se escreve no Ac. n.º 710/04 “[…] nem se diga que basta que, apesar de uma hipotética deficiência da colocação da questão de constitucionalidade por parte do(s) recorrente(s), o tribunal a quo se tenha efectivamente ocupado dela e assumido que a tinha como objecto de pronúncia obrigatória. Não basta. Por um lado, porque o tribunal a quo poderá estar confrontado com uma questão de inconstitucionalidade da decisão judicial sobre a qual não pode deixar de se pronunciar, sem que tal suscitação da questão abra o recurso para o Tribunal Constitucional; por outro lado, porque, no nosso sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade, tal como se encontra constitucional e legalmente desenhado, não é admissível substituir o ónus de suscitação atempada de uma questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão por uma qualquer pronúncia que este, por qualquer imaginável razão, venha a produzir”.
Não obstante as considerações expendidas serem suficientes para se concluir, desde já, pela impossibilidade de conhecer do presente recurso de constitucionalidade, atento o carácter cumulativo dos respectivos pressupostos de admissibilidade, sempre se dirá que a interpretação autonomizada pela recorrente não corresponde à ratio decidendi da decisão recorrida.
De facto, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo não defende um acesso ilimitado a quaisquer documentos, referindo expressamente que:
“ (…) não significa que os órgãos das entidades indicadas no art.º 4.º/1 da citada Lei estão obrigados, em todos os casos, a facultar a documentação que lhes é solicitada pois que a recusa a esse acesso é admissível sempre que daí possa resultar o seu uso ilegítimo - seja porque põe em causa segredos comerciais, industriais, ou sobre a vida interna das empresas, seja porque pode significar o desrespeito dos direitos de autor, dos direitos de propriedade industrial, seja porque possam conduzir a práticas de concorrência desleal (vd. art.º 6.º da citada Lei 46/2007).”
Acresce que, inquestionavelmente, qualifica a natureza dos documentos em causa como administrativos, referindo que:
“ (…) a documentação decorrente da actividade privada da empresa pública é susceptível de também ser consultada ao abrigo das disposições da LADA. O que, aliás, se compreende já que quando as empresas públicas agem segundo as regras do direito privado com vista a contribuir para a satisfação das necessidades da colectividade estão, directa ou indirectamente, a desenvolver uma actividade ou função materialmente administrativa.”
(…) o critério decisivo na definição do que se deve entender por documento administrativo decorre deste ter sido elaborado no âmbito de uma actividade destinada à satisfação das necessidades da colectividade, portanto, no âmbito de uma actividade que visava o cumprimento do serviço público de televisão e, se assim é, o facto de a obtenção daquele direito ter ocorrido em concorrência com os operadores privados não é relevante.”
Com base nos excertos transcritos, facilmente se conclui que a interpretação normativa seguida não corresponde ao objecto de recurso delimitado pela recorrente, pelo que, ainda que se mostrasse verificado o primeiro pressuposto de admissibilidade analisado, relativo à suscitação prévia da questão de constitucionalidade, de modo adequado – que, reiteramos, não se verifica – sempre teríamos de concluir pelo não conhecimento do presente recurso.
III – Decisão
7. Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em doze unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 3 do mesmo diploma).
Lisboa, 22 de Março de 2011.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos.