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Processo n.º 861/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que são recorrentes A. e B. e recorridos o Ministério Público, C. e D., o relator proferiu a Decisão Sumária n.º 89/2011, que não conheceu do objecto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«(…) 5. Os recursos de constitucionalidade apresentados por A. e por B. são em tudo idênticos e a ambos faltam os pressupostos necessários ao conhecimento do respectivo objecto.
Desde logo porque as normas a que os recorrentes imputam o vício de inconstitucionalidade não foram aplicadas pelo acórdão recorrido, como ratio decidendi da decisão, na parte em que não tomou conhecimento da questão da imputabilidade/inimputabilidade dos arguidos, aqui recorrentes.
Lê-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:
«Os recorrentes alegam a inconstitucionalidade não se sabe bem de que normas, por violação dos artigos 1.º, 16.º, n.º 2, 18.º, n.º 1, 20.º, n.º 5, 200.º, n.ºs 1 e 2, e 204.º, da Constituição, interpretadas no sentido, ao que se percebe, de que o Supremo Tribunal de Justiça não deve tomar conhecimento da questão da sua imputabilidade ou inimputabilidade, no entendimento de que a não suscitação dessa questão perante a Relação impede agora o seu conhecimento ou no de que se trata de questão de facto.
Não é com base em qualquer desses fundamentos que o Supremo Tribunal de Justiça decide aqui não apreciar a questão referida, mas a partir de um determinada interpretação do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, interpretação essa que não foi visada pelos recorrentes.»
Ou seja, o STJ decidiu não apreciar a referida questão, com fundamento na norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, cuja inconstitucionalidade não foi suscitada pelos recorrentes. Resta dizer que a convocação de tal norma para decidir essa questão não se apresenta como inovadora ou inusitada, não havendo, por isso, motivo para dispensar os recorrentes do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade junto do tribunal recorrido.
6. Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores), decide-se não conhecer do objecto de ambos os recursos. (…)»
2. Notificados desta decisão, os recorrentes vieram reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
«1 — A decisão reclamada louvou-se no discurso justificador do acórdão do STJ: não aplicou a norma arguida de inconstitucionalidade mas a norma que estipula a irrecorribilidade da sentença do Tribunal da Relação, não decidindo, portanto, sobre a questão da inimputabilidade dos arguidos.
2 — Mas não foi só a questão da inimputabilidade dos arguidos aquela que deu base à arguição de inconstitucionalidade das normas aplicadas pelo acórdão do STJ.
3 — Com efeito, os recorrentes arguiram a inconstitucionalidade, justamente, do sistema que dita a irrecorribilidade, do qual a norma aplicada no acórdão do STJ é um dos afloramentos.
4 — E o raciocínio dos recorrentes conjuga os dois planos, o da irrecorribilidade com o da questão da inimputabilidade penal.
5 — Traduz-se nisto:
— Perante a dramática questão de condenação de um inimputável, qualquer norma de irrecorribilidade infringe os pressupostos de uma ordem normativa constitucional teleológicamente ordenada a fazer prevalecer a dignidade humana.
6 — Ora, a conclusão de inimputabilidade dos recorrentes, que não foi tirada pelas instâncias e foi motivo do recurso, - quando desconsiderada, directa ou indirectamente, pela cadeia de decisões até ao acórdão do STJ, - constitui-se numa série de aplicação de normas contrárias ao elenco constitucional referido na resposta dada, pelos arguidos ao Exm.° Senhor Conselheiro Relator:
“1- Parece resultar do texto sentencial ainda que com dúvidas expressivas, ter o S.T.J. rejeitado o argumento da inconstitucionalidade invocada pelos recorrentes, porque considerou ter sido apenas posto foco nos art.°s 403/1, 410 e 412 CPP.
2- Contudo, a motivação do recurso é clara, no sentido de ter sido atacado todo e qualquer sistema de não consentimento de recurso, precisamente sob espécie de a imputabilidade ser uma questão, por assim dizer, impreclusiva.
3- Neste sentido, foi apresentado o ponto 11 das conclusões que começa, por isso mesmo, da seguinte maneira: “… se porventura o Tribunal entender que o motivo [imputabilidade/inimputabilidade] destas conclusões não cabe no âmbito e alcance do sistema de revista alargada …”, logo, abarcando todo e qualquer pretexto de desconsideração.
4- Este ponto de vista é aliás congruente com o que fica dito na mesma conclusão, quando se escreveu: [foi aceite] dele [recurso] não tomar conhecimento [por] aplicação que [se] faça [de quaisquer] dispositivos normativos ... equivalentes.
5- Pretende o recorrente ficar a saber se V. Exª.s recusaram a inconstitucionalidade que nesta direcção incorre do mesmo modo o art.º 400/1- f) CPP ou se é de levar à letra terem apenas considerado que os recorrentes não arguiram a inconstitucionalidade dessa norma, por não caber nas normas equivalentes daquelas que foram expressamente nomeadas no âmbito e alcance da contrariedade constitucional. ”
“1 - O S.T.J. julgou parcialmente procedente o recurso, baixando a pena unitária aplicada à recorrente, por ter considerado ser possível conhecer das conclusões de crítica à pena aplicada porque o crime excedia os oito anos, ao contrário das penas parcelares
2 - Não considerou, porém, as conclusões referentes à imputabilidade/inimputabilidade da arguida, por ser tema indexado à prática dos crimes a que foram aplicadas precisamente essas penas parcelares que definem a irrecursibilidade.
3 - Contudo, também a questão da imputabilidade supõe, melhor, se tem de pôr necessariamente em relação à acumulação das infracções objecto da sentença, isto é, a cada uma e ao conjunto de todas elas.
4 - Ora, foi a acumulação de infracções que determinou pena unitária que tornou o feito possível de recurso para o S.T.J.
5- V. Ex.ªs não explicam no texto sentencial porque razão o problema da inimputabilidade se põe infracção a infracção e são também quanto ao conjunto das infracções.
6 - E a recorrente, embora convencida, como disse, de não proceder a tese que exclui do recurso o tema da inimputabilidade, fica sem saber se, verdadeiramente, foi seguido pelo Tribunal o raciocínio acima proposto de, nuns casos valer ser exigível a imputabilidade dos arguidos para aplicação de uma pena e noutros (cúmulo jurídico) já não.”
7 — É este problema que continua a ser escamoteado e que os recorrentes esperam ver enfrentado pela conferência.
8 — Sendo certo que a dúvida sobre a sua inimputabilidade permanecerá como uma mancha da Justiça, de uma relevância insuportável.
V. Exas., com douto suprimento, mandarão, pois, seguir o recurso.»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou a seguinte resposta:
«1º
Pela Decisão Sumária n.º 89/2011, não se conheceu do objecto do recurso, porque durante o processo o recorrente não tinha suscitado a questão de inconstitucionalidade da norma efectivamente aplicada (artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP), sendo que a interpretação acolhida pela decisão recorrida não se apresentava inovadora ou inusitada, por forma a dispensar os recorrentes do ónus da suscitação prévia.
2º
Quando interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça os recorrentes colocaram a possibilidade de ele não ser admitido e suscitaram a questão da inconstitucionalidade das eventuais interpretações normativas que viessem a decidir daquela forma.
3.º
Fizeram-no do seguinte modo:
“Mas se porventura (i) o tribunal entendeu que o motivo destas conclusões não cabe no âmbito e alcance do sistema de revista alargada, prevista no artigo 410.º do CPP, ou porque ficou precludido, por não ter sido levado às conclusões do recurso para a 2.ª instância com base, por exemplo, no artigo 403.º, n.º 1, conjugado com o artigo 412.º;(ii) se não tomou conhecimento da matéria (iii) a aplicação que faça dos dois dispositivos citados ou equivalentes, conduz à inconstitucionalidade (…)”.
4.º
Também na resposta ao “Parecer” do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça a questão da inconstitucionalidade - de mais que duvidosa natureza normativa -, é colocada nos seguintes termos:
“De qualquer forma a aplicação da norma do artigo 420.º do CPP, contra suspeita forte de inconstitucionalidade, carecido o debate da causa de averiguação psiquiátrica correspondente, torna o preceito inconstitucional (…)”
5.º
Ora, o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o recurso por o considerar inadmissível, mas não com base em qualquer das interpretações adiantadas pelo recorrente e atrás mencionadas.
6.º
Inclusivamente, o Supremo Tribunal de Justiça aceitou que tinha competência para conhecer em recurso de questões novas que não tinham sido colocadas nem apreciadas no recurso para a Relação, se estas fossem de conhecimento oficioso, sendo a questão da imputabilidade – a agora colocada pelos arguidos – uma delas.
7.º
O Supremo Tribunal de Justiça entendeu, também que só poderia conhecer dessas “questões novas” se o recurso fosse admissível aplicando o regime geral sobre a admissibilidade.
8.º
No caso, aplicando o artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP e seguindo a jurisprudência pacífica daquele Tribunal, entendeu-se que, como nenhuma das penas parcelares aplicadas era superior a 8 anos de prisão e tendo a ver a questão da imputabilidade com a possibilidade da afirmação da culpa, respeitante a cada um dos crimes, o recurso não era admissível.
9.º
Precisamente porque a norma efectivamente aplicada não fora aquela cuja constitucionalidade havia sido suscitada, o Supremo Tribunal de Justiça não apreciou a questão da inconstitucionalidade colocada pelos recorrentes.
10.º
Isto mesmo é dito, expressamente, no Acórdão que rejeitou o recurso e reafirmado posteriormente, ainda com mais clareza, no Acórdão que apreciou o pedido de aclaração do primeiro.
11.º
Ora, apesar desta evidência, os recorrentes quando recorrem para o Tribunal Constitucional, continuam a identificar, como objecto do recurso, as normas e a questão, cuja inconstitucionalidade anteriormente suscitaram.
12.º
Face ao exposto, parece-nos claro que pretendendo os recorrentes ver apreciadas pelo Tribunal normas que não foram aplicadas na decisão recorrida e que em relação à efectivamente aplicada não foi suscitada durante o processo a questão da sua inconstitucionalidade, faltam requisitos de admissibilidade do recurso.
13.º
Mesmo que os recorrentes tivessem correctamente identificado a questão e a norma aplicada quando recorreram para este Tribunal, para se poder considerar que os mesmos estavam dispensados do onus da suscitação prévia, teriam de invocar surpresa pela interpretação levada a cabo no Acórdão recorrido e explicar porquê.
14.º
Ora, os recorrentes nunca invocaram ter sido surpreendidos, nem sequer na reclamação da douta Decisão Sumária, sendo certo que, pelo que se vê do que já anteriormente dissemos (artigo 8º), aquela interpretação nada teve de surpreendente.
15.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A decisão sumária ora reclamada pronunciou-se pelo não conhecimento do objecto do recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, com fundamento, além do mais, na não aplicação das normas reputadas inconstitucionais pela decisão recorrida e na não suscitação, pelos ora reclamantes, da inconstitucionalidade da norma (artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal) que efectivamente fundamentou a decisão recorrida.
A presente reclamação em nada contraria este fundamento.
Os reclamantes limitam-se a invocar que arguiram a “inconstitucionalidade do sistema que dita a irrecorribilidade, do qual a norma aplicada no acórdão do STJ é um dos afloramentos”; e concluem que “a dúvida sobre a sua inimputabilidade permanecerá como uma mancha da Justiça, de uma relevância insuportável”.
É manifesto que a segunda afirmação prende-se com a aplicação do direito infra-constitucional, sendo totalmente estranha ao objecto de um recurso de constitucionalidade. É igualmente óbvio que a arguição da inconstitucionalidade “do sistema que dita a irrecorribilidade” não constitui a imputação do vício de inconstitucionalidade a uma norma ou interpretação normativa, não podendo, como tal, constituir objecto de um recurso de constitucionalidade.
Pelo exposto é de manter na íntegra a decisão sumária reclamada.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Março de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.