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Processo n.º 104/11
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. interpôs recurso, para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. O reclamante fora condenado pela prática de um crime de violação, previsto no artigo 164.º do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão; um crime de injúria, na pena de 2 meses de prisão; dois crimes de resistência e coacção sobre funcionário, nas penas, uma de 9 meses de prisão e outra de 15 meses de prisão. Finalmente, em cúmulo jurídico, fora o reclamante condenado na pena única de 4 anos e 4 meses de prisão.
Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou improcedente o recurso, mantendo a condenação da 1.ª Instância.
O reclamante interpôs, então, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que não foi admitido.
Notificado do despacho de não admissão, apresentou reclamação, tendo o Supremo Tribunal de Justiça indeferido a mesma, por decisão de 15 de Dezembro de 2010.
Infere-se da exposição aduzida no requerimento de interposição de recurso que é sobre esta decisão, que incide o recurso de constitucionalidade.
Quanto a este recurso foi proferida decisão de não admissão, no Supremo Tribunal de Justiça.
Tal decisão, datada de 17 de Janeiro de 2011, é do seguinte teor:
“ Não se admite o recurso interposto para o Tribunal Constitucional na parte em que o recorrente A. pretende ver apreciada a inconstitucionalidade do art. 5.°, n.º 2, alínea a), do CPP, uma vez que na reclamação apresentada o recorrente não suscitou a inconstitucionalidade desta norma.
«Uma questão de constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo» (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 421/2001- DR, II Série de 14.11.2001).
Neste entendimento da jurisprudência do Tribunal Constitucional, não se considera suscitada por modo processualmente adequado, e que obrigasse a tomar conhecimento, qualquer questão de inconstitucionalidade.
Também não se admite o recurso interposto na parte em que o recorrente A. suscita a inconstitucionalidade do art. 422.º do CPP, por esta norma não ter sido critério e fundamento da decisão que indeferiu a reclamação, o que inviabiliza qualquer julgamento sobre ela por parte do Tribunal Constitucional, porquanto os recursos de constitucionalidade desempenham uma função instrumental. Daí o TC só poder conhecer de uma questão de constitucionalidade quando ela exerce influência no julgamento da causa, o que não se verifica na situação dos autos.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça de 2 UC.
Notifique.”
3. O reclamante apresentou, então, a presente reclamação, com os seguintes fundamentos:
“ Com o devido respeito por opinião contrária, não foi feita uma correcta interpretação da Lei ao não se admitir o recurso apresentado pelo arguido. Na verdade,
O arguido, no seu requerimento de interposição de recurso, anunciou inequivocamente que o mesmo estava a ser apresentado junto quer do STJ, quer do TR Lisboa, porque, no primeiro caso, entendia haver uma inconstitucionalidade na decisão da sua reclamação, e no segundo, em virtude de uma errada interpretação do artº 422º do CPP.
É que entendeu o arguido que não poderia deixar precludir o seu direito ao recurso das decisões do TR Lisboa, que, pelos vistos estão em vias de não merecer a sindicância do STJ.
Assim,
Aceitando-se que o STJ, nesta parte, se pronuncie como fez, espera-se que no TR Lisboa se não decida da mesma maneira ...
Mas, a questão da inconstitucionalidade que se arguiu junto do STJ e a este atinente, e que, sempre salvaguardado o devido respeito por opinião contrária, nos parece que foi claramente levantada na reclamação, tem a ver com a inconstitucionalidade material da norma do artº 5º nº 2 al. a) do CPP interpretada no sentido de ao arguido ser vedado um grau de recurso.
A inconstitucionalidade levantada junto do STJ tem a ver com essa questão que, salvo sempre o devido respeito, resulta inequivocamente do texto da reclamação apresentada.”
O Ministério Público, no Tribunal Constitucional, defendeu o indeferimento da reclamação, nos seguintes termos:
“1. O recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional da decisão proferida pelo Excelentíssimo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação do douto despacho que, na Relação de Lisboa, não admitiu o recurso interposto para aquele Supremo Tribunal, do acórdão dessa Relação que julgara improcedente o recurso da decisão de 1ª instância que, em cúmulo, o condenara na pena de 2 anos e 4 meses de prisão.
2. Segundo o requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, o recorrente pretende ver apreciadas duas questões de constitucionalidade: uma, respeitante ao artigo 422.º, em conjugação com os artigos 312.º, n.º 4, do Código de Processo Penal (CPP) e 155.°, do Código de Processo Civil (CPC); outra, do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do CPP 'interpretada no sentido de que a perda de um grau de recurso não constitui um agravamento sensível da situação processual do arguido e limitação do direito de defesa'.
3. Quanto à segunda das questões de constitucionalidade, o momento processualmente adequado para a suscitar era a reclamação para o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
4. Ora, vendo tal peça processual, constata-se que aí não foi suscitada de forma adequada a questão da inconstitucionalidade do artigo 5.° do CPP, limitando-se o recorrente a dizer qual o regime que entende dever ser-lhe aplicado, face às alterações legislativas posteriores (que expressamente não identifica), concluindo que 'entender de forma diferente constitui uma manifesta violação do artigo 32.° da Constituição'.
5. Falta, pois, um requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.° da LTC.
6. A decisão do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça apenas apreciou a reclamação do despacho que, na Relação, não admitiu o recurso (artigo 405.° do CPP).
7. Portanto, as únicas normas aplicadas e susceptíveis de ser aplicadas, tinham, necessária e exclusivamente, de estar relacionadas com a recorribilidade do acórdão da Relação.
8. Assim, quanto à primeira questão referida pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso - referente aos artigos 422.°, 312.°, n.º 4 do CPP e 155.° do CPC (relacionada com a substituição do mandatário e o adiamento da audiência) .-, a decisão recorrida não aplicou tais normas, pelo que falta um pressuposto de admissibilidade do recurso.
9. Pelo exposto, deve também, quanto a esta parte, indeferir-se a reclamação.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
4. Antes de entrarmos na análise específica dos pressupostos de admissibilidade do presente recurso, convém delimitar o respectivo objecto, face à equivocidade da referência do reclamante a dois recursos, interpostos junto do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal da Relação de Lisboa.
Na verdade, não obstante se poder inferir, face ao teor da reclamação apresentada, que a questão atinente à decisão do Supremo Tribunal de Justiça se reconduz à alegada inconstitucionalidade material da norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Penal, de acordo com a aparente delimitação operada pelo reclamante na referida peça processual, a verdade é que o mesmo não cinge o presente recurso a tal questão, optando por, expressamente, invocar igualmente a inconstitucionalidade de norma extraída do artigo 422.º do mesmo diploma.
Poderíamos entender que a referida delimitação, plasmada na reclamação, resulta da circunstância de o reclamante se conformar com a decisão de não admissão do recurso, na parte relativa à norma do artigo 422.º do Código de Processo Penal. Porém, tal posição não é, de forma expressa e inequívoca, assumida pelo reclamante.
Pelo exposto, o presente acórdão pronunciar-se-á sobre a totalidade do objecto do recurso interposto, no juízo que formular sobre a respectiva admissibilidade.
5. O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objecto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP); artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Vejamos, pois, se tais requisitos se encontram preenchidos in casu ou se, pelo contrário, procedem os argumentos utilizados na decisão reclamada e sustentados pelo Ministério Público.
6. Refere o reclamante que pretende ver apreciada a “inconstitucionalidade material da norma do artº 422º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que, tendo dado cumprimento tempestivo ao estabelecido nos artºs 312º nº4 do CPP e 155º do CPC, o defensor/mandatário do arguido pode ser substituído, não se procedendo ao adiamento da audiência e marcação de nova data para a realização da mesma.”
Acrescenta que pretende igualmente a apreciação da “inconstitucionalidade material da norma da alínea a) do n° 2 do artº 5° do CPP, interpretada no sentido de que a perda de um grau de recurso não constitui um agravamento sensível da situação processual do arguido e limitação do seu direito de defesa.”
Ora, quanto à norma que o reclamante extrai do artigo 422.º do Código de Processo Penal (CPP), constata-se que a mesma não foi convocada no âmbito da ratio decidendi da decisão recorrida, não configurando critério ou fundamento da mesma, como bem refere a decisão reclamada.
Na verdade, o referido preceito corresponde a matéria alheia ao tema da decisão recorrida, que apenas incide sobre a questão da admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Assim, encontra-se prejudicada, nesta parte, a admissibilidade do recurso de constitucionalidade, porquanto a norma colocada em crise não é sequer aplicada na decisão recorrida.
Relativamente à questão da constitucionalidade da norma da alínea a) do n.° 2 do artigo 5.° do CPP - interpretada no sentido de que a perda de um grau de recurso não constitui um agravamento sensível da situação processual do arguido e limitação do seu direito de defesa – refere a decisão reclamada que não foi cumprido o ónus de suscitação, de modo processualmente adequado.
Debrucemo-nos, então, sobre este específico pressuposto de admissibilidade do presente recurso.
A jurisprudência deste Tribunal Constitucional tem uniformemente defendido que recai, sobre o recorrente, o ónus de suscitação – em termos tempestivos e procedimentalmente adequados – da questão de constitucionalidade que pretende ver dirimida, junto do tribunal a quo, antes da prolação da decisão recorrida.
O cumprimento de tal ónus pressupõe que o recorrente antecipe as diversas possibilidades interpretativas, que plausivelmente poderão ser adoptadas na decisão recorrida, e confronte o tribunal a quo com as inconstitucionalidades que poderão inquinar tais interpretações, de modo a criar no mesmo um dever de se pronunciar sobre a questão de constitucionalidade colocada se vier a optar por uma das interpretações postas em crise.
Acresce que, para que o tribunal a quo se aperceba que tem, perante si, uma questão de constitucionalidade que terá de resolver, é necessário que o recorrente proceda a uma clara e expressa especificação do objecto dessa questão, identificando a norma ou interpretação normativa, sobre a qual recai o seu juízo de desconformidade constitucional, e aduzindo uma fundamentação, minimamente concludente, justificativa de tal juízo.
Aplicando as considerações expendidas ao caso concreto, concluímos que o reclamante não cumpre o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade, de forma processualmente adequada, tal como refere a decisão reclamada.
De facto, o reclamante, na reclamação apresentada nos termos do artigo 405.º do CPP, – peça onde deveria ter colocado ou renovado a questão de constitucionalidade, que pretendia ver dirimida – limita-se a propugnar pela não aplicabilidade, no caso, da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na versão introduzida pela Lei n.º 48/2007, por entender decorrer do artigo 5.º do mesmo diploma a inaplicabilidade de alterações legislativas posteriores ao início dos autos, quando delas resulte diminuição das garantias de defesa do arguido.
Nessa sequência, defende o reclamante que o recurso, que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça, é admissível, face ao disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na versão anteriormente vigente, de que apenas resultava a irrecorribilidade do acórdão condenatório proferido, em recurso, pelas relações, quando confirmasse decisão de 1.ª instância em processo por crime a que fosse aplicável pena de prisão não superior a oito anos. Estando em causa, nos autos, entre outros, um crime de violação, punível com pena de prisão de três a dez anos, o recurso interposto deveria ser admitido. Acrescenta o reclamante que “entender de forma diferente constitui uma manifesta violação do disposto no artº 32º da Constituição da República Portuguesa, quando consagra, no seu nº 1 que “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.”
A omissão de especificação concreta da interpretação normativa a sindicar e a lacónica alusão a uma pretensa violação do artigo 32.º da Lei Fundamental, desprovida de qualquer substanciação argumentativa, tornam manifesta a conclusão pelo incumprimento do ónus de suscitação prévia, de forma processualmente adequada, prejudicando inelutavelmente a admissibilidade de ulterior recurso de constitucionalidade.
Nestes termos, conclui-se pela inadmissibilidade do recurso e consequente improcedência da presente reclamação.
III – Decisão
7. Pelo exposto, decide-se:
- julgar inadmissível o recurso de constitucionalidade interposto e, em consequência, julgar improcedente a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 22 de Março de 2011.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.