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Processo n.º 90/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. instaurou contra IPTM – Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos, IP, no Tribunal do Trabalho de Setúbal, acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, pedindo a condenação do Réu a reintegrá-lo no seu posto de trabalho «ou a indemnizá-lo pelo despedimento, conforme opção que o A. venha a declarar, e a pagar-lhe as prestações pecuniárias vencidas, que somam já €39.293,65, com juros legais até pagamento, as vincendas até trânsito em julgado e a indemnização pedida por danos morais, bem como juros vencidos e vincendos e custas e procuradoria condigna».
Foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, condenando o Réu a reintegrar o Autor no seu posto de trabalho, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, bem como a pagar-lhe todas as retribuições que deixou de auferir desde 10.09.2008 e até ao trânsito em julgado da decisão final, como se estivesse em efectiva execução da sua função laboral, mas com as deduções previstas nos n.os 2 e 3, do artigo 437.º, do Código do Trabalho, em montante a liquidar no incidente previsto nos artigos 378.º e seguintes do Código de Processo Civil, acrescidas de juros de mora, à taxa do artigo 559.º, n.º 1, do Código Civil, desde a liquidação e até integral pagamento, julgando, no mais, a acção improcedente.
Inconformado, o Réu interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 24 de Novembro de 2009, julgou a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
O Réu interpôs então recurso de revista excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 721.º-A, do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, o qual foi admitido pela formação de juízes a que se refere o n.º 3 do citado artigo.
O Autor/recorrido contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1 - O presente recurso circunscreve-se à interpretação e aplicação do artigo 106º, do Código do Trabalho de 2003 à situação de facto subjacente, tendo em vista apurar se a formação profissional realizada antes da celebração do contrato de trabalho e ao abrigo de um contrato de formação, é ou não relevante, e em que medida, para efeitos da contagem do período experimental a que estava sujeito o contrato de trabalho.
2 - A reapreciação da referida questão no âmbito da presente Revista, não é justificada à luz das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 721º A do CPC, pois não é necessária para uma melhor aplicação do direito, estão em causa interesses de particular relevância social.
3 - O Recorrente pretende a reapreciação do douto Acórdão com fundamento no disposto no artigo 722.º, n.º 1, a), do CPC, por entender que aquela decisão fez uma errada interpretação e aplicação das normas leais que regem o período experimental, violando nessa medida a lei substantiva aplicável ao caso dos autos concretamente, os artigos 104.º, n.º 1, e 106.º, n.º 1, do Código do Trabalho de 2003.
4 - O Douto Acórdão fez correcta aplicação do disposto nos artºs 106º, nº 1 e 104º do Código do Trabalho de 2003.
5 - Como doutamente foi decidido para efeito da contagem do período experimental não pode distinguir-se a formação profissional que antecede o contrato de trabalho da que se realiza na constância da execução desse contrato.
6 - No caso dos autos existe ligação entre o contrato de formação e o contrato de trabalho para que se inclua a formação desenvolvida em execução do primeiro no período experimental a que o segundo contrato está sujeito.
7 - A douta decisão recorrida encontra apoio nas obras doutrinárias que especificamente analisam a questão, bem como na jurisprudência dominante, no domínio da lei actual.
Nestes Termos,
E mais de direito
Não deve ser admitida a Revista; ou deve ser negada.”
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 16 de Novembro de 2010, decidiu conceder a revista, revogar o acórdão recorrido e absolver o Réu do pedido.
O autor solicitou a aclaração deste acórdão, o que foi indeferido por decisão do Supremo Tribunal de Justiça proferida em 16 de Dezembro de 2010.
O autor interpôs recurso para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos (na parte que ora releva):
A., recorrente nos autos, notificado do douto Acórdão proferido, com o mesmo não se conformando, vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional pois entende que o douto Acórdão ofende preceitos constitucionais, nomeadamente o fixado pelo artº 13º, 53º, 58º e 59º da Constituição da República Portuguesa (versão da Lei 1/2002), uma vez que a douta decisão proferida viola o disposto na lei substantiva, nomeadamente artº 106º nº 1, 107º b) e 110º e 429º a) do C.T.
De facto a douta decisão proferida não apreciou devidamente as questões de facto e de direito existentes nos autos.
[…]
V - A Nossa Posição
O n.º 1 do artigo 106.º, quando estabelece que «[o] período experimental começa a contar-se a partir do início da execução da prestação do trabalhador», consagra que o período experimental só pode começar a contar-se após a celebração do contrato de trabalho. Mas entendemos que há contrato de trabalho já com o “Contrato de formação em Posto de Trabalho” não só porque o trabalhador está vinculado a esta formação como está sujeito ao poder disciplinar do empregador que lhe pague.,
A segunda parte do n.º 1 do artigo 106.º, ao equiparar, para efeitos de contagem do período experimental, as acções de formação «ministradas pelo empregador ou frequentadas por determinação deste» pressupõe que essas acções de formação se desenvolvem em verdadeiro contrato de trabalho, na medida em que, ao referir-se à execução da prestação pelo trabalhador e às acções de formação ministradas pelo empregador ou determinadas por este, teve em vista também as acções de formação que ocorrem na pendência do contrato de trabalho e também as que se desenvolvem antes da celebração desse contrato», por determinação do empregador, até porque no Contrato de Formação o futuro empregador dispõe do poder de direcção que lhe permita determinar a frequência de acções de formação». Por isso mesmo se trata de “Contrato de Formação” em Posto de Trabalho”, que na cláusula 1ª do mesmo refere processar-se “em regime de contrato de trabalho”.
Sendo de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, conclui-se que o período de tempo correspondente a acção de formação desenvolvida antes da celebração do contrato de trabalho determinada pelo empregador releva para efeitos de contagem do período experimental a que aquele contrato esteja sujeito.
Este entendimento é, aliás, confortado pelo estatuído no artigo 110.º do Código do Trabalho de 2003, nos termos do qual período experimental [...] pode ser reduzido, ou excluído, mas nunca alargado.
E o entendimento expresso pelo douto Acórdão do S.T.J. constitui um alargamento ilegal do período experimental.
Teremos pois de concluir que o nº 1 do artº 106º interpretado no sentido de excluir do período experimental as acções de formação em posto de trabalho determinadas pelo empregador é claramente inconstitucional por violar o disposto nos artºs 13º, 53º, 58º e 59º da C.R.P.
Assim, todos estes normativos legais foram violados.
Nos termos do artº 75º A da Lei 28/82 se consigna que o presente recurso é interposto ao abrigo do disposto no artº 70º nº 1 da mesma Lei, alíneas b), c), f) e i); e as normas em causa são as referidas da C.R.P.; tendo tais questões sido suscitadas na motivação do recurso para o S.T.J. e no pedido de aclaração.”
Foi proferida decisão sumária em 15 de Fevereiro de 2011 de não conhecimento do recurso, com os seguintes fundamentos:
“No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputadas a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem de incidir sobre uma regra abstractamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro acto de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria e irrepetível do caso concreto, daquilo que representa já uma autónoma valoração ou subsunção do julgador – não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo de queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais.
Por outro lado, tratando-se no presente caso de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC (não podendo o mesmo enquadrar-se, ao contrário do que refere o Recorrente, nas alíneas de c), f) e i) desta disposição legal), a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
No caso dos autos, a questão que, antes de mais, importa apreciar prende-se com saber se durante o processo foi suscitada validamente uma questão de constitucionalidade.
A suscitação processualmente adequada da questão de constitucionalidade implica, no plano formal, que o recorrente tenha invocado perante o tribunal recorrido, em tempo e modo que vincule este ao seu conhecimento, a inconstitucionalidade da mesma norma, ou da mesma interpretação normativa que agora questiona perante o Tribunal Constitucional.
Acresce que, no caso de pretender questionar apenas certa interpretação de uma dada norma, deverá o recorrente especificar claramente qual o sentido ou dimensão normativa do preceito ou “arco normativo” que tem por violador da Constituição, enunciando cabalmente e com precisão e rigor todos os pressupostos essenciais da dimensão normativa tida por inconstitucional.
Neste sentido, escreveu-se no acórdão n.º 269/94 (acessível na Internet em www.tribunalconstitucional.pt):
“Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que - como já se disse - tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma), que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a Lei Fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringidos.”
No caso dos autos, resulta do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional que o recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma constante do n.º 1 do artigo 106.º do Código do Trabalho, interpretada no sentido de excluir do período experimental as acções de formação em posto de trabalho determinadas pelo empregador, por violação do disposto nos artigos 13.º, 53.º, 58.º e 59.º da C.R.P.
Contudo, esta questão de constitucionalidade deveria ter sido suscitada nas contra-alegações apresentadas pelo ora recorrente no recurso de revista excepcional interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, pois era aí a oportunidade que o ora Recorrente tinha para obrigar aquele Tribunal a conhecer de tal questão.
Ora, da leitura das contra-alegações apresentadas e das respectivas conclusões constata-se que essa questão de constitucionalidade não foi aí colocada.
A questão de inconstitucionalidade deve ser suscitada antes de se mostrar esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre tal questão, na medida em que o recurso para o Tribunal Constitucional pressupõe a existência de uma decisão anterior do tribunal recorrido sobre a questão de inconstitucionalidade que é objecto do recurso.
Só em casos muito particulares – em que o recorrente não tenha tido oportunidade para suscitar tal questão antes de ser proferida a decisão recorrida, ou tendo tido essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de inconstitucionalidade, ou em que, por força de preceito específico, o poder jurisdicional não se tivesse esgotado com a prolação da decisão final – é que será admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre esta questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal recorrido.
É certo que o Recorrente, no requerimento em que solicitou a aclaração do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, refere que o alargamento do período experimental em que se traduz a decisão proferida viola claramente os direitos do trabalhador estatuídos nos artigos 13.º, 53.º, 58.º e 55.º da CRP.
No entanto, como tem sido reiteradamente entendido pelo Tribunal Constitucional, uma vez que o poder jurisdicional do tribunal a quo se esgota, em princípio, com a prolação da sentença ou acórdão e a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material ou lapso notório, não é causa de nulidade da decisão e não torna esta obscura, os incidentes pós-decisórios (pedido de aclaração, de reforma ou arguição de nulidade da decisão), não são, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar, pela primeira vez, uma questão de constitucionalidade.
Assim, tal forma de proceder revela-se manifestamente insuficiente para que se possa considerar cumprido o ónus, que recai sobre o recorrente, de, caso pretenda vir a recorrer para o Tribunal Constitucional, suscitar previamente, perante o tribunal recorrido, de modo processualmente adequado, uma questão de constitucionalidade normativa em termos de este a dever apreciar.
Face ao exposto, é manifesto que se não pode considerar cumprido o pressuposto exigido pelo n.º 2, do artigo 72º, da LTC, pelo que, não estando preenchido este requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, deverá ser proferida decisão sumária de não conhecimento, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.”
O Recorrente reclamou desta decisão, nos seguintes termos:
“A., notificado da douta decisão do Sr. Conselheiro Relator e com a mesma não se conformando, vem declarar para a Conferência, nos termos do nº 3 do artº 78-A da Lei 28/82 de 15 de Nov. da LTC, com os fundamentos já expostos na interposição do recurso que se dão por reproduzidos.
Devemos, no entanto, acrescentar a nossa discordância relativamente à douta decisão proferida porquanto, nos termos do disposto no artº 670º nº 1 do CPC o douto despacho de aclaração ou reforma se considera “como complemento e parte integrante desta” (sentença).
Acresce que, no caso dos autos, atento todo o circunstancialismo do mesmo, é de toda a justiça entender que o recorrente não teve oportunidade de suscitar as questões da inconstitucionalidade antes de ser proferida a douta decisão recorrida, ou não lhe era exigível que a suscitasse uma vez que se tratou de recurso excepcional, e todas as decisões anteriores apontavam no sentido contrário ao que a douta decisão recorrida veio a fixar.
Deve pois a presente questão ser apreciada em conferência, nos termos do nº 3 do artº 78 da LCT.
O Recorrido respondeu, pronunciando-se pelo indeferimento da reclamação apresentada
Fundamentação
A decisão reclamada não tomou conhecimento do objecto do recurso, por não ter sido suscitada adequadamente perante o tribunal recorrido a questão de constitucionalidade que agora se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie.
Tendo a interpretação questionada sido defendida nas alegações de recurso interpostas para o tribunal recorrido e dispondo o Reclamante do direito de contra-alegar, era nessa peça processual que este deveria ter invocado a inconstitucionalidade de tal interpretação, pelo que este teve oportunidade de o fazer e era exigível que o fizesse, face à posição sustentada nesse recurso pela parte contrária.
A invocação dessa inconstitucionalidade em incidente pós-decisório de aclaração já não foi uma suscitação adequada, uma vez que não tendo o tribunal recorrido aclarado a decisão nesse aspecto, não estava obrigado a conhecer de tal arguição.
Confirmando-se, pois, as razões apontadas na decisão reclamada para o não conhecimento, deve indeferir-se a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação apresentada por A. da decisão sumária proferida nestes autos em 15 de Fevereiro de 2011.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 22 de Março de 2011.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.