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Processo n.º 94/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., Reclamante nos presentes autos em que figura como Reclamado B., inconformado com a decisão do Tribunal de Comarca de Coimbra que não admitiu recurso para o Tribunal Constitucional, veio dizer, no que ora interessa, o seguinte:
“Seria curioso — caso não fosse dramática — a ausência de coerência entre o aparente rigor e crueldade com que a decisão a favor da insolvência é decretada, por um lado e a forma ilegal como este indeferimento na admissão do recurso, por outro lado, é decretado.
Na verdade, a decisão pela insolvência do recorrente e reclamante é proferida liminarmente, sem cuidar de se esgotarem — equitativamente — as possibilidades probatórias permitidas por lei, mormente a eventual falta do requerente em audiência de discussão e julgamento, a prova e contraprova a serem produzidas em julgamento, a indiferença perante a excepção peremptório aduzida, etc, etc... a inexistência do crédito.
Todavia — por outro lado e em sentido absolutamente contraditório não se atende ao rigor legalista e positivista da mesma lei quando importa apreciar, por exemplo, o texto do citado artigo 76°, n.º 2 das Leis mobilizadas supra.
Ora vejamos. Diz, textualmente, este n° 2 o seguinte:
a) - «O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional DEVE SER INDEFERIDO «quando» «não satisfaça os requisitos do artigo 75-A», quando «a decisão o não admita», quando «o recurso haja sido interposto fora do prazo», quando «o requerente careça de legitimidade», ou quando «nos caso dos recursos previstos nas alíneas b) e f) do n° 1 do artigo 70.º forem manifestamente infundados»!
Ora, pergunta-se - ONDE SE ENCONTRAM AQUI INSERIDAS AS FACTUALIDADES E A JURIDICIDADE que levou o tribunal «a quo» a indeferir a subida do recurso de Inconstitucionalidade e ilegalidade interposto-
Responde-se — em lado NENHUM!
E não se diga que é na última previsão possível, porquanto o recurso interposto o foi nos termos e para os efeitos da alínea a) do n°1 daquele artigo 70°!
O tribunal recorrido e reclamado entendeu enviesar o teor e os fundamentos do recurso interposto tentando empurrar o enquadramento jurídico da alínea a) para as alíneas b) e f)!
Todavia, fê-lo — indevida e ilegitimamente — por sua iniciativa, única e exclusiva!
O recurso interposto foi-o nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º.
Isto quer o tribunal queira quer o tribunal não queira!
O tribunal recorrido e reclamado alterou o sentido do recurso interposto, fê-lo indevida e ilegitimamente e pronunciou-se — SEM PROVA — sobre uma questão que ainda NÃO ESTÁ esclarecida nem decidida: é a questão de saber se EXISTIU RECUSA no cumprimento daquela norma 35.º do CIRE, ou se, por outro lado, existiu apenas inutilidade.
Esta questão não pode ser decidida, suscitada, dirimida apenas pelo tribunal recorrido!
Melhor dizendo — só porque o tribunal recorrido o afirma, tal asserção passou a ser verdade-! Importa saber se EXISTIU uma coisa ou outra. O recorrente e reclamante entende que houve RECUSA no cumprimento de uma norma determinante, decisiva, cominatória!
O tribunal limita-se a dizer que tal norma era inútil! Mas esta afirmação proferida pelo tribunal recorrido é bastante por si só para ENVIESAR o conteúdo do recurso interposto, para alterar por iniciativa individual e parcial do tribunal a realidade «ad demonstrandum», para reverter o fundamento do recurso interposto e para — em última instância — indeferir aleatoriamente a admissão do recurso depois de o deslocar do fundamento da alínea a) para a fundamentação das alíneas b) e f) que NUNCA foram mencionadas pelo recorrente- Não! Não se aceita esta perversão da vontade do recorrente nem a perversão unilateral dos fundamentos invocados.
Antes que se afirme e decida E PRECISO DEMONSTRAR se tal omissão resulta de RECUSA ou é INUTILIDADE. Isto não resulta provado e não pode ser considerada bastante para os efeitos em causa — a simples e singela afirmação do tribunal dizendo que «houve inutilidade»!”
O despacho reclamado, e no que ora importa, tem o seguinte teor:
“De acordo com o requerido, o seu recurso fundamenta-se no art. 70.°, n.° 1, al. a), da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.
Estatui este normativo que cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
Ora, a decisão da qual o requerido pretende interpor recurso não recusou a aplicação de qualquer norma com fundamento na respectiva inconstitucionalidade.
Com efeito, a decisão em causa limitou-se a considerar desnecessária a realização da audiência de julgamento a que se reporta o art. 35.° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não tendo esta norma sido desaplicada com base na sua inconstitucionalidade, mas por a sua aplicação se revelar inútil.
Como tal, o referido fundamento não justifica a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Poderia, quanto muito, o requerente estribar o seu recurso nos fundamentos previstos nas alíneas b) e f) do art. 70°, n.° 1, atinentes às decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo ou que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo.
Sucede que nos termos do n.° 2 do art. 70°, os recursos previstos nas alíneas b) e f) do número anterior apenas cabem de decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam, salvo os destinados a uniformização de jurisprudência.
A decisão de que o requerido pretende recorrer mostra-se passível de recurso ordinário, nos termos do art. 42.° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Assim sendo, cumpre concluir que não é admissível recurso da decisão em causa para o Tribunal Constitucional.”
2. O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Notificado desse parecer, o Reclamante veio reiterar a sua posição.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. Em sede de reclamações deduzidas ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4 da LTC, compete ao Tribunal Constitucional averiguar se, em concreto, se encontravam reunidos os pressupostos necessários à admissão do recurso que foi recusada pelo tribunal a quo.
O recurso de constitucionalidade previsto na citada alínea a) pressupõe que tenha ocorrido, nos autos, a recusa de aplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade e que tal norma constitua o fundamento, quer dizer, a ratio decidendi da pronúncia a quo.
O Reclamante sustenta que o Tribunal de Coimbra recusou a aplicação da norma consagrada no artigo 35.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas “que deveria agendar data para a realização da audiência de discussão e julgamento, o que não fez.”.
Ora, a norma ao abrigo da qual o Reclamante tentou interpor o recurso de constitucionalidade visa as situações em que houve recusa de aplicação de normas, pelo tribunal a quo, sendo essa recusa fundada em inconstitucionalidade das mesmas. Não estão abrangidos os casos de alegada recusa implícita de aplicação de normas que redunde em inconstitucionalidade da decisão até porque o recurso de constitucionalidade, no sistema português, é exclusivamente normativo, não contemplando, portanto, o controlo das próprias decisões judiciais com fundamento em desconformidade com as normas e princípios da Lei Fundamental (cfr. artigos 280.º, da Constituição e artigo 70.º, n.º 1, da Lei Fundamental).
No caso dos autos, a decisão recorrida não recusou a aplicação de qualquer norma, aqui o artigo 35.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), com fundamento em inconstitucionalidade.
Como disse, e bem, o Exmo. Magistrado do Ministério Público, “ (…) o que se diz na sentença é que se revelava inútil a marcação da audiência de discussão e julgamento (a que se refere o artigo 35.º do CIRE), porquanto os factos que fundamentavam a pretensão se encontravam assentes documentalmente e por acordo das partes e o requerido não tinha alegado factos concretos que demonstrassem a respectiva solvência.”
Acresce que a inconstitucionalidade invocada pelo recorrente vem direccionada não exactamente a uma norma que, em sua perspectiva, tenha sido desaplicada, mas à própria decisão.
Ele, na verdade, alega que: “ (…) a sentença que, nos autos, decretou a insolvência do ora recorrente (…) encontra-se ferida de inconstitucionalidade (…), porque, de facto, a decisão proferida ‘a quo’ viola o princípio constitucional da equidade (…).”
Assim, facilmente se constata que o recorrente configurou o recurso não como uma questão de constitucionalidade normativa, mas como uma reacção de dissidência à decisão proferida pelo Tribunal recorrido.
Ora, o Tribunal Constitucional aprecia normas ou dimensões normativas e não a concreta actividade judicativa que se traduz na decisão dada ao pleito.
Assim, conclui-se pela manifesta improcedência da reclamação apresentada.
III – Decisão
4. Nestes termos, acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, indeferir a presente reclamação.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC.
Lisboa, 23 de Março de 2011.- José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.