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Processo n.º 637/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., B., C., D. e E. Lda., foram acusados da prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º n.ºs 1, 2 e 4, do Regulamento Geral das Infracções Tributárias (RGIT).
Os arguidos B., C. e D. requereram a abertura de instrução, invocando, além dos mais, a inconstitucionalidade material do artigo 105.º, n.º 1, do RGIT.
Terminada a instrução que correu termos no Juízo de Instrução Criminal de Águeda, Comarca do Baixo Vouga, foi proferida decisão instrutória em 24 de Julho de 2010, que decidiu pela não pronúncia dos arguidos, com fundamento na recusa da aplicação do disposto no artigo 105.º, nº 7, do RGIT, “por inconstitucionalidade material decorrente da violação dos princípios da legalidade e da igualdade expressos nos artigos 29º e 13º da CRP, respectivamente, no caso de omissão de entrega à administração tributária de prestação de IVA deduzida”.
O Ministério Público recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), na parte em que recusou a aplicação da norma constante do artigo 105.º, n.º 7, do RGIT.
O Recorrente apresentou alegações, tendo concluído da seguinte forma:
“1. Constitui crime de abuso de confiança fiscal a não entrega à administração tributária de prestação tributária de valor superior a 7.500€, deduzida nos termos da lei, por quem estava legalmente obrigado a fazê-lo (artigo 105º, nº 1, do RGIT).
2. Segundo o nº 7 do artigo 105º os valores a considerar são os que “nos termos da legislação aplicável”, devem constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
3. A “legislação aplicável”, no caso, são diversas disposições do CIVA, designadamente o artigo 41º, que estabelece os prazos de entrega das declarações periódicas.
4. A periodicidade da entrega pode ser mensal ou trimestral conforme o volume de negócios do sujeito passivo seja igual ou superior a €650.000, ou inferior, no ano civil anterior.
5. Desta forma, não deixando a remissão para a “legislação aplicável”, a descoberto qualquer elemento essencial para a compreensão da conduta proibida, a norma do nº 7 do artigo 105º do RGIT, não viola o princípio da legalidade penal (artigo 29º da Constituição).
6. Também não se mostrando tal norma violadora, do princípio de igualdade (artigo 13º da Constituição), deve ser concedido provimento ao recurso.”
O recorrido B. apresentou contra-alegações, em que concluiu do seguinte modo:
“1. Para aferir se uma norma penal em branco viola o princípio da legalidade é indispensável analisar não só os precisos termos em que é feita a remissão da norma sancionadora, mas principalmente as características e o âmbito da norma complementar.
2. Pelo que não basta, como aqui faz o Recorrente, referir que o Tribunal Constitucional já por diversas vezes se pronunciou no sentido da conformidade das normas penais em branco com o Princípio da Legalidade, uma vez que também tem sido entendimento deste Douto Tribunal que normas complementares que apresentem carácter inovador relativamente à norma sancionadora estão claramente em desconformidade com a Constituição da República Portuguesa por violarem o Princípio da Legalidade (cf. acórdão do TC n.º 427/95, de 06/07);
3. Tem entendido o Tribunal Constitucional que quando a “remissão feita pela norma sancionadora principal para a norma complementar tornar o tipo de ilícito incaracterístico, dificultar o seu conhecimento pelos destinatários, para além do que é exigível a uma pessoa média ou implicar o recurso a critérios autónomos ou critérios novos de ilicitude. Nestes casos a remissão e respectiva concretização violam o princípio da legalidade”;
4. No caso dos autos, o regime legal aplicável à entrega das declarações periódicas em sede de IVA comporta em si mesmo um conjunto de critérios, que passam desde logo pelo aplicação de um regime de entrega mensal e outro trimestral em função do volume de negócios do sujeito passivo de imposto, volume de negócios esse cujo conceito apenas se retira da interpretação de um outro artigo do código do IVA (artigo 42.º CIVA e que também ele comporta excepções que remetem, novamente, para outros artigos do mesmo código), importa ainda que o sujeito passivo conheça a que ano civil se reporta esse volume de negócios e, finalmente, que compreenda os requisitos mediante os quais a lei permite que o sujeito passivo abrangido pelo regime de entrega trimestral da declaração possa antes optar pelo regime mensal;
5. O que o sujeito passivo só poderá efectivamente fazer se compreender toda a lógica sistemática de uma legislação (complexa) como a estipulada no Código do IVA, que envolve a compreensão de vários artigos com várias remissões e comportando inúmeras excepções cuja previsão é relevante para determinar a aplicação ao sujeito passivo de um regime de entrega mensal ou trimestral;
6. Sendo certo, como já se viu, que aplicação de todos estes critérios previstos no Código do IVA determina o regime a que deve obedecer a entrega das declarações periódicas, o que por sua vez tem influência na determinação do montante da prestação tributária e que é relevante para que a conduta do sujeito passivo seja, ou não, punida criminalmente;
7. É manifesto que um sujeito passivo médio, não tem conhecimentos legais que lhe permitam compreender e conhecer, de forma clara, pela simples análise da norma sancionadora e da remissão feita por esta para as normas que a complementam, o tipo objectivo (conduta) que preenche o tipo legal de crime previsto no artigo 105.º n.º 1 do RGIT.
8. Contrariamente ao que alega o Recorrente, no caso aqui em análise, a fixação da periodicidade de entrega das declarações periódicas não é feita de “forma objectiva e clara” por referência à análise do artigo 41.º do Código do IVA”, mas antes só é possível através da compreensão de um conjunto complexo de normas que constam do Código do IVA, que comportam várias remissões entre si, pela compreensão de vários conceitos jurídicos, bem como pelo conhecimento de uma série de excepções aos regimes gerais aplicáveis e cujos critérios têm influência determinante na conformação do regime concretamente aplicável.
9. Estamos perante uma disposição penal que remete para normas (CIVA) que não podem ser geralmente conhecidas pelo agente, na medida em que sendo vastos e complexos os vários regimes aí previstos, não é permitido ao agente saber o regime específico a que se encontra vinculado, sendo assim posta em causa a cognoscibilidade subjectiva desse específico elemento constante do tipo legal de crime consagrado no artigo 105.º n.º 1 do RGIT.
10. Pelo exposto, o artigo 105.º n.º 7 do RGIT deve ser declarado inconstitucional por violação do Princípio da Legalidade consagrado no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que ao remeter para a legislação aplicável a definição dos elementos objectivos da incriminação, desses elementos não resulta uma descrição clara e precisa do facto punível.
11. Os critérios a que deve obedecer a entrega das declarações e que, necessariamente, têm influência no montante da prestação tributária a entregar à administração, são relevantes para que a conduta seja, ou não, qualificada como crime;
12. Como é sabido, o IVA é um imposto de obrigação única (e não um imposto periódico), pois incide sobre factos tributários de carácter instantâneo, reportando-se a cada um dos actos concretamente praticados e no momento em que são praticados.
13. O imposto é devido no momento da ocorrência de cada facto tributário, tomando-se exigível nesse mesmo momento, conforme disposto no artigo 7.º do CIVA que aliás reflecte a regra geral da Directiva Comunitária que rege esta matéria (Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho de 28 de Novembro de 2006), que é a da simultaneidade entre facto gerador e exigibilidade do imposto.
14. Apesar disso, o momento da entrega do imposto à Administração Tributária é deferido para momento posterior por razões que se prendem com a economia de meios e maior eficiência administrativa.
15. O método de entrega da prestação devida ao Estado não constitui mais do que uma mera técnica de cobrança que possibilita que o Estado concentre as suas obrigações de fiscalização e cobrança num número substancialmente mais reduzido de sujeitos passivos, com evidentes ganhos ao nível da logística e da eficiência para a Administração Tributária.
16. Os mesmos motivos de simplificação burocrática, de logística e eficiência, que estão na génese da criação das duas modalidades de prestação das declarações, uma de periodicidade mensal e outra trimestral – o que influencia determinantemente, como já se viu, a criminalização, uma vez que nos termos do n.º 7 do artigo 105.º do RGIT, o montante susceptível de constituir a prática de um ilícito criminal deve ser apurado tendo em conta o valor referente a cada declaração a apresentar à Administração Tributária, sendo que essa declaração pode ter periodicidade mensal ou trimestral.
17. A distinção entre um e outro regime, não se funda em qualquer critério aferido tendo em conta o bem jurídico tutelado com a incriminação consagrada no artigo 105.º n.º 1 do RGIT.
18. E assim sendo, introduz um elemento claramente discriminatório na medida em que passam a ser determinantes para efeitos de a conduta ser considerada punível criminalmente, não os valores concretamente retidos, em igualdade de circunstâncias, pelos sujeitos passivos de imposto, mas antes os valores resultantes do regime de periodicidade da entrega das declarações, que, como se referiu tem natureza meramente burocrática, visando apenas facilitar a cobrança do imposto por parte do Estado.
19. Uma situação deste tipo conduz inevitavelmente a um tratamento diferenciado entre sujeitos passivos, sem que para tal haja qualquer motivo justificativo, pelo simples facto de um deles ter uma periodicidade mensal de entrega das declarações e outro periodicidade trimestral.
20. E não se diga a este propósito, como faz o aqui Recorrente, que a aplicação de um ou outro regime resulta do volume de negócios do sujeito passivo, pois que, como já se demonstrou a diferenciação de regimes visa simplesmente facilitar a tarefa da Administração Fiscal na cobrança deste imposto.
21. A que acresce o facto, não de somenos importância, de nos termos da lei, um sujeito passivo com volume de negócios igual ou inferior a 650.000 Euros poder, também ele, optar pelo regime de entrega mensal (artigo 41.º n.º 2 e 3 do CIVA).
22. Existe uma discrepância injustificada de tratamentos, para efeitos de incriminação entre os sujeitos passivos, que resulta da aplicação da norma do n.º 7 do artigo 105.º do RGIT, quando interpretada no sentido de que relevante para a qualificação como crime é a não entrega à Administração Tributária de prestação tributária de valor superior a 7.500 Euros, aferida pela respectiva declaração periódica, o que constitui uma violação do Princípio da Igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP, enquanto princípio estruturante do Estado de Direito Democrático, “na medida em que impõem a igualdade na aplicação do Direito, fundamentalmente assegurada pela tendencial universalidade da lei e pela proibição de diferenciação de cidadãos com base em condições meramente subjectivas”.
23. Face a tudo quanto foi exposto, deve ser declarada inconstitucional a norma do artigo l05.º n.º 7 do RGIT, por violação do Princípio da Igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretada no sentido de que relevante para a qualificação como crime é a não entrega à Administração Tributária de prestação tributária de valor superior a 7.500 Euros, aferida pela respectiva declaração periódica.
Termos em que e nos melhores de direito, não deverá ser dado provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA!”
Os recorridos E., Lda., e C. contra-alegaram, limitando-se a aderir aos fundamentos da decisão recorrida.
Não foram apresentadas contra-alegações pelos restantes recorridos.
Fundamentação
A decisão recorrida recusou a aplicação da norma constante do artigo 105.º, n.º 7, do RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), por inconstitucionalidade material, decorrente da violação dos princípios da legalidade e da igualdade, expressos nos artigos 29.º e 13.º da Constituição, respectivamente.
Tal recusa de aplicação assentou nos seguintes fundamentos.
Em primeiro lugar, entendeu-se que não é conforme à Constituição, por violação do princípio da legalidade plasmado no artigo 29.º, norma penal que remeta, quanto à definição dos elementos objectivos da incriminação, para preceitos cujos critérios não tenham como referencial material o bem jurídico protegido com a incriminação, mas, de outro modo, outros fins sem dignidade penal, com mera relevância na eficiência dos serviços tributários (ou outros) ou de regras de boa gestão da contabilidade dos contribuintes, como são as normas constantes do artigo 41.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA) que estabelecem o regime de apresentação à administração tributária das declarações periódicas de IVA.
Em segundo lugar, entendeu-se que a utilização dos valores referentes a cada declaração a apresentar à administração tributária, tal como previsto no n.º 7, do artigo 105.º, do RGIT, para efeitos de delimitação da incriminação prevista no n.º 1 do aludido artigo, introduz um elemento discriminatório sem qualquer suporte material, visto que torna decisivo para efeitos da incriminação, não os valores efectivamente retidos e de entrega legalmente obrigatória mas, de outro modo, os valores resultantes do regime de periodicidade da entrega das declarações, fundada em razões de índole meramente burocrática. Conclui, por isso, que tal critério é inconstitucional por violação do princípio da igualdade, visto que tal distinção não tem qualquer critério fundado à luz do bem jurídico tutelado com a incriminação.
O artigo 105.º do RGIT, na redacção da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, tem o seguinte teor:
“Abuso de confiança
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a € 50.000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 - [Revogado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro]
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”
Na redacção inicial deste artigo (resultante do Decreto-Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, que aprovou o RGIT) não estava previsto qualquer valor para a quantia não entregue como elemento do tipo, mas o n.º 6 previa o seguinte:
“Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder (euro) 1000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.”
A Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, alterou este valor para € 2.000 e, posteriormente, a Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, introduziu a redacção do actual n.º 1, tendo revogado o disposto no n.º 6. Com esta última alteração foi descriminalizada a conduta de não entrega de prestações tributárias não superiores a €7.500, a qual passou apenas a ser sancionada como contra-ordenação, nos termos do artigo 114.º, do RGIT.
De acordo com o n.º 7, do artigo 105.º, do RGIT, o referido valor de €7.500, relevante para se apurar se a conduta em causa é ou não criminalmente punível, é o que, nos termos da legislação aplicável, deva constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
Assinale-se ainda que o conceito de prestação tributária, relevante também para o preenchimento do tipo legal de crime previsto no n.º 1, do artigo 105.º, do RGIT, é o referido no artigo 11.º, alínea a), deste mesmo diploma legal, segundo o qual é considerada prestação tributária “os impostos, incluindo os direitos aduaneiros e direitos niveladores agrícolas, as taxas e demais tributos fiscais ou parafiscais cuja cobrança caiba à administração tributária ou à administração da segurança social”.
Daqui resulta que as prestações tributárias cuja não entrega dá lugar ao crime de abuso de confiança fiscal previsto no artigo 105.º, do RGIT, poderão ser, por exemplo, os valores retidos a título de IRS pelas entidades devedoras dos rendimentos sujeitos a retenção na fonte, de harmonia com o disposto nos artigos 98.° a 101.° do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, mas também outras prestações tributárias que tendo sido recebidas pelo sujeito passivo, haja obrigação legal de as liquidar (n.º 2, parte final, do artigo 105.º, do RGIT), como sucede com o IVA (vide, neste sentido, Susana Aires de Sousa, em “Os crimes fiscais. Análise dogmática e reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador”, pág. 124, da ed. de 2006, da Coimbra Editora, Isabel Marques da Silva, em “Nullum crimen, nulla poena, sine lege praevia: a inexistência de infracção tributária nos casos de não entrega de IVA não recebido”, em Estudos em Homenagem do Professor Paulo de Pitta e Cunha, vol. II, pág. 259-261, da ed. de 2010, da Almedina, Nuno Lumbrales, em “O abuso de confiança fiscal no regime geral das infracções tributárias”, em Fiscalidade, n.º 13/14 (2003), pág. 88, e Paulo Marques, em “Crime de abuso de confiança fiscal. Problemas do actual direito penal tributário”, pág. 101-107, da ed. de 2011, da Coimbra Editora. Em sentido contrário opinou Diogo Leite de Campos, em “Repercussão e abuso de confiança em IVA”, em Ciência e Técnica Fiscal, n.º 404, (Out.-Dez. de 2001), pág. 101, e em “Compensação de créditos fiscais”, na R.O.A., Ano 64 (2004), pág. 115-119).
O IVA é um imposto sobre o consumo em que, segundo o seu regime geral, o montante da dívida tributária de cada sujeito passivo é apurado através do chamado método indirecto subtractivo, nos termos do qual esse montante nos é dado pela diferença entre o que resulta da aplicação de uma taxa ao valor das vendas ou prestações de serviços, durante determinado período, e o montante do imposto suportado nas aquisições efectuadas no mesmo período. O IVA é liquidado pelo respectivo sujeito passivo, sendo igualmente ele que procede à sua cobrança, pelo que, feitas as deduções e apurado o imposto, deve o sujeito passivo proceder à sua entrega à administração tributária, acompanhado de uma declaração de onde constem os elementos que serviram de base ao respectivo cálculo.
As normas respeitantes às declarações a apresentar à administração tributária para que remete o artigo 105.º, n.º 7, do RGIT, quando o imposto cuja entrega é devida é o IVA, são os artigos 29.º, n.º 1, alínea c), e 41.º, do CIVA.
Assim, o artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do CIVA (na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 102/2008, de 20 de Junho), estabelece a regra geral segundo a qual os sujeitos passivos do imposto devem “enviar mensalmente uma declaração relativa às operações efectuadas no exercício da sua actividade no decurso do segundo mês precedente, com a indicação do imposto devido ou do crédito existente e dos elementos que serviram de base ao respectivo cálculo”.
Por sua vez, o artigo 41.º, n.º 1, do CIVA, estabelece que, para efeitos do disposto na alínea c), do n.º 1 do artigo 29.º a declaração periódica deve ser enviada até ao dia 10 do 2º mês seguinte àquele a que respeitam as operações, no caso de sujeitos passivos com um volume de negócios igual ou superior a € 650.000 no ano civil anterior [alínea a)] ou até ao dia 15 do 2º mês seguinte ao trimestre do ano civil a que respeitam as operações, no caso de sujeitos passivos com um volume de negócios inferior a € 650.000 no ano civil anterior [alínea b)].
É ainda facultada aos sujeitos passivos abrangidos pelo regime de apresentação periódica trimestral a possibilidade de optar pelo envio da declaração periódica mensal, devendo manter-se neste regime por um período mínimo de três anos, conforme dispõe o n.º 2, do citado artigo 41.º, do CIVA, assim como se encontra previsto um regime especial para a entrega de declaração por sujeitos passivos que pratiquem uma só operação tributável (artigo 43.º, do CIVA) e para os pequenos retalhistas (artigos 60º e seguintes do CIVA).
Tecidas estas breves considerações sobre a legislação infra-constitucional aplicável in casu, vejamos agora se a norma cuja aplicação foi recusada padece da inconstitucionalidade que lhe é apontada.
O princípio da legalidade criminal
A primeira questão de inconstitucionalidade suscitada refere-se à eventual violação do princípio da legalidade, consagrado no artigo 29.º da Constituição, pela norma constante do artigo 105.º, n.º 7, do RGIT.
Num Estado de direito democrático a prevenção do crime deve ser levada a cabo com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, estando sujeita a limites que impeçam intervenções arbitrárias ou excessivas, nomeadamente sujeitando-a a uma aplicação rigorosa do princípio da legalidade, cujo conteúdo essencial se traduz em que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege). É neste sentido que o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, dispõe que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.
Essa descrição da conduta proibida e de todos os requisitos de que dependa em concreto uma punição tem de ser efectuada de modo a que se tornem objectivamente determináveis os comportamentos proibidos e, consequentemente, se torne objectivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos (Figueiredo Dias, em “Direito Penal. Parte Geral” tomo I, pág. 186, da 2ª ed. da Coimbra Editora). Daí que, incindivelmente ligado ao princípio da legalidade se encontre o princípio da tipicidade, o qual implica que a lei deve especificar suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos de medida de segurança), bem como tipificar as penas (ou as medidas de segurança). A tipicidade impede, assim, que o legislador utilize fórmulas vagas, incertas ou insusceptíveis de delimitação na descrição dos tipos legais de crime, ou preveja penas indefinidas ou com uma moldura penal de tal modo ampla que torne indeterminável a pena a aplicar em concreto. É um princípio que constitui, essencialmente, uma garantia de certeza e de segurança na determinação das condutas humanas que relevam do ponto de vista do direito criminal.
O princípio da tipicidade tem que ver, assim, com a exigência da determinabilidade do conteúdo da lei criminal. Conforme escreve Taipa de Carvalho (em “Constituição Portuguesa anotada”, org. por Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo I, pág. 672, da 2.ª edição, revista, actualizada e ampliada, da Wolters Kluwer Portugal - Coimbra Editora), «dada a necessidade de prevenir as condutas lesivas dos bens jurídico-penais e igualmente de garantir o cidadão contra a arbitrariedade ou mesmo contra a discricionariedade judicial, exige-se que a lei criminal descreva o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime. Só assim o cidadão poderá saber que acções e omissões deve evitar, sob pena de vir a ser qualificado criminoso, com a consequência de lhe vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança. Daqui resulta a proibição de o legislador utilizar cláusulas gerais na definição dos crimes, a necessidade de reduzir ao mínimo possível o recurso a conceitos indeterminados, e o imperativo de não recorrer às chamadas “normas penais em branco”, salvo quando tal recurso se apresente como manifestamente indispensável e a norma para que é feita a remissão seja clara na descrição da conduta punível. Esta exigência, decorrente da razão de garantia do princípio da legalidade penal, é denominada por princípio da tipicidade, traduzido pela conhecida formulação latina nullum crimen sine lege certa.»
Regressando ao caso dos autos, o que está em causa é saber se o artigo 105.º, n.º 7, do RGIT, é desconforme à Constituição, por não cumprir as exigências do princípio da tipicidade, mercê do conteúdo integral da sua previsão só poder ser obtido através de recurso à consulta de normas de natureza tributária.
No artigo 105.º, do RGIT, estabelece-se a punição penal para quem não entregue à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei (n.º 1), bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar (n.º 2), sendo considerada uma prestação, para os efeitos dessa previsão, a soma dos valores que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária (n.º 7).
O valor da prestação tributária não entregue ao Estado pelo sujeito passivo é, pois, um elemento do tipo, uma vez que só a não entrega de prestações superiores a € 7500 serão criminalmente punidas, definindo o n.º 7 do artigo 105.º do RGIT, o critério determinativo do cálculo de uma prestação tributária, para efeitos de apuramento do valor que não foi entregue ao Estado pelo agente. Nos termos deste preceito, esse valor é aquele que deveria constar de cada declaração a apresentar à administração tributária, nos termos da legislação aplicável.
Serão, pois, os diplomas que regulam o modo de declaração à administração tributária dos diferentes impostos abrangidos pela previsão do artigo 105.º, do RGIT, que concretizarão a aplicação do critério adoptado para a determinação do montante das prestações não entregues pelo sujeito passivo.
Tratando-se de IVA, no que respeita ao regime geral, é o disposto no artigo 41.º, n.º 1, do CIVA, que revela que cada prestação tributária integra a diferença entre o montante que resulta da aplicação de uma taxa ao valor das vendas ou prestações de serviços, efectuadas durante um ou três meses, conforme o regime a que os sujeitos estão submetidos, de acordo com o seu volume anual de negócios ou a sua opção, e o montante do imposto suportado nas aquisições efectuadas no mesmo período. É o montante dessas prestações mensais ou trimestrais que, não sendo entregues à Administração Tributária, serão relevantes para aferir do preenchimento do elemento quantitativo do tipo legal de crime previsto no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT.
Independentemente de sabermos se nos encontramos ou não perante uma norma penal em branco (vide, sobre o conceito de lei penal em branco, Jorge Miranda e Miguel Machado, em “Constitucionalidade da protecção penal dos direitos de autor e da propriedade industrial”, em RPCC, n.º 4 (1994), pág. 483-486, e Teresa Beleza e Frederico da Costa Pinto, em “O regime legal do erro e as normas penais em branco”, pág. 31 e seg., da ed. de 1999, da Almedina. Qualificando o tipo legal de crime do artigo 105.º do RGIT, como uma norma penal em branco, vide, Nuno Lumbrales, ob. cit., pág. 89, e Paulo Marques, ob. cit., pág. 92), a mera circunstância da norma tipificadora, contida no artigo 105.º, do RGIT, remeter parte da sua concretização para outra fonte normativa, não é suficiente para que se considere atingido o referido princípio da tipicidade, uma vez que este não obriga à conexionação no mesmo preceito legal ou na mesma lei da previsão integral da conduta proibida com a pena que lhe corresponde (vide, neste sentido, Figueiredo Dias, em “Para uma dogmática do direito penal secundário. Um contributo para a reforma do direito penal económico e social português”, na RLJ, Ano 117, pág. 47).
Em primeiro lugar, aqui não se coloca o problema da fonte normativa para onde é feita a remissão não respeitar a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República que abrange a definição das condutas criminosas (artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição), uma vez que o CIVA foi aprovado por Decreto-Lei emitido pelo Governo, com autorização da Assembleia da República.
Em segundo lugar, a técnica legislativa da remissão, tão frequente na tipificação do direito penal económico, é perfeitamente compreensível neste caso, uma vez que não cumprindo à lei penal, mas sim à lei tributária, estipular a periodicidade de liquidação, declaração e entrega dos valores respeitantes a impostos, cujos valores foram deduzidos ou repercutidos pelos sujeitos passivos, justifica-se que para a determinação da prestação tributária cuja não entrega é criminalizada, se recorra a tais estipulações técnicas, não sendo exigível a réplica de todas essas normas no tipo incriminador único de abuso de confiança fiscal.
Em terceiro lugar, as normas do CIVA aplicáveis, limitam-se a auxiliar a concretização do conceito de prestação tributária, cuja não entrega é o elemento fundamental do tipo legal de crime de abuso de confiança tributária, não acrescentando um diferente pressuposto de punibilidade que não resultasse já da previsão constante do artigo 105.º, do RGIT. Aqueles preceitos legais, com interesse para a definição dos elementos do tipo legal de crime em causa, limitam-se a determinar o período temporal em que ocorreram as operações tributáveis, cujo decurso obriga à apresentação da declaração indicadora do montante do imposto a entregar ao Estado, relativo a esse período. Daí que o alheamento das finalidades perseguidas por essas normas a qualquer valoração penal não coloca em causa a satisfação da exigência duma prévia previsão legal desse sancionamento, uma vez que aquelas se limitam a servir como “bengalas de apoio” na descrição típica, não deixando esta de ser efectuada, no seu essencial, pela lei penal.
E o facto de tais normas respeitarem a matéria tributária também não prejudica a apreensão da conduta tipificada como crime, até porque os destinatários dessas normas são precisamente os sujeitos passivos tributários que podem incorrer na prática desse comportamento e que, portanto, têm obrigação de as conhecer perfeitamente.
Pode, pois, concluir-se que o disposto no artigo 105.º, do RGIT, descreve o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime, nomeadamente qual a prestação cuja não entrega é sancionada penalmente, não prejudicando a remissão contida no seu n.º 7 para as diversas leis tributárias, a necessária compreensão integral pelos cidadãos da conduta aí descrita, pelo que o seu conteúdo não atenta contra o princípio da legalidade em matéria penal (vide, sustentando idêntica conclusão, Nuno Lumbrales, na ob. cit., pág. 89).
O princípio da igualdade
Na sentença recorrida entendeu-se que o critério adoptado pelo artigo 105.º, n.º 7, do RGIT, para a determinação do montante da prestação não entregue, também violava o princípio da igualdade. Considerou-se que a utilização dos valores referentes a cada declaração a apresentar à administração tributária, tal como previsto no referido preceito, para efeitos de delimitação da incriminação, introduz um elemento discriminatório, sem qualquer suporte material, pois que subverte a própria norma incriminadora visto que torna decisivo para efeitos da incriminação, não os valores efectivamente retidos e de entrega legalmente obrigatória mas, de outro modo, os valores resultantes do regime de periodicidade da entrega das declarações fundada em razões de índole meramente burocrática. Argumentou-se que o referido critério conduz, no limite, ao resultado insustentável de tratamento diferenciado para efeitos de incriminação, entre contribuintes que, tendo deduzido em cada um dos meses de certo trimestre o mesmo valor de IVA e estando obrigados a entregar um mesmo valor ao Estado, façam a entrega da sua declaração mensal ou trimestralmente, isto sempre que o valor em causa não exceda aquele definido como penalmente relevante (actualmente €7.500,00), pois que num caso (entrega da declaração trimestral) haveria crime e no outro (entrega mensal) já não.
Este Tribunal já por diversas vezes se pronunciou sobre o princípio da igualdade, particularmente na dimensão da proibição do arbítrio, que assume maior relevo para apreciação do presente caso, firmando uma jurisprudência reiterada no sentido de que se é verdade que o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impede, contudo, qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante.
O legislador ordinário, utilizando uma ampla margem de liberdade no exercício da sua actividade de criação e conformação dos tipos legais de crime, por razões de política criminal, na tipificação do crime de abuso de confiança fiscal estabeleceu um limite mínimo para o valor do imposto não entregue ao Estado pelo sujeito passivo - €7500.
Ora, a adopção do critério de que o valor que não foi entregue ao Estado pelo agente é aquele que deveria constar de cada declaração a apresentar à administração tributária, nos termos determinados pela legislação aplicável a cada imposto, é perfeitamente justificado, uma vez que, residindo este crime na omissão de entrega de determinada quantia respeitante a imposto deduzido ou repercutido, o montante desta só pode ser aquele cuja entrega era devida e que devia constar da respectiva declaração informativa. O acto omitido foi o da entrega ao Estado dessa prestação e não dos diversos valores parciais que a integram, pelo que é precisamente o montante dessa prestação que deve relevar para se apurar o valor do imposto não entregue e a consequente dimensão da ofensa ao bem jurídico tutelado pela incriminação aqui em causa.
Se é verdade que os diferentes períodos estabelecidos pelas leis tributárias para a realização de um apuramento do valor do imposto deduzido ou repercutido que deve ser entregue ao Estado pelo sujeito passivo, podem facilitar ou dificultar que as respectivas prestações atinjam o limite previsto no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, isso não retira ao critério estabelecido o seu fundamento material evidente acima apontado, não sendo possível qualificá-lo de arbitrário.
E, no caso particular dos períodos estabelecidos no artigo 41.º, do CIVA, a que devem respeitar as declarações periódicas de liquidação do IVA pelos sujeitos passivos, acresce ainda que, com excepção dos casos em que se verificou uma opção por um regime diferente, aqueles que estão sujeitos a um periodicidade mensal são os que têm um maior volume de negócios (igual ou superior a € 650.000 anuais), a que normalmente corresponderão também maiores valores de IVA a entregar ao Estado, enquanto os que estão sujeitos a uma periodicidade trimestral são os que têm um menor volume de negócios (inferior a € 650.000 anuais) e, portanto, em regra, também menores valores de IVA a entregar ao Estado, pelo que a diferente periodicidade acaba por contribuir para uma maior igualação das circunstâncias em que se encontram os sujeitos passivos relativamente à possibilidade de incorrerem na prática de um crime de abuso de confiança fiscal.
No caso limite indicado na argumentação da sentença recorrida não é possível dizer que as duas situações eram idênticas, porque no caso em que o sujeito passivo estava obrigado a entregas mensais, estamos perante três comportamentos individualizados de omissão de entrega de quantias inferiores a € 7500, enquanto o sujeito passivo obrigado a entregas trimestrais tem um único comportamento de omissão de entrega de uma quantia superior a este valor. Esta dissemelhança é fundamento suficiente para um tratamento diverso que resultaria para o primeiro na prática de três contra-ordenações previstas no artigo 114.º, do RGIT, e para o segundo na prática de um crime de abuso de confiança fiscal previsto no artigo 105.º, do RGIT.
Perante esta análise conclui-se que a norma recusada também não viola o princípio constitucional da igualdade.
Não se revelando que o disposto no n.º 7 do artigo 105.º do RGIT, desrespeite qualquer parâmetro constitucional deve o recurso interposto pelo Ministério Público ser julgado procedente.
Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma do artigo 105.º, n.º 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias;
b) conceder provimento ao recurso, determinando-se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 22 de Março de 2011.- João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.