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Processo n.º 148/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., reclamante nos presentes autos, foi condenado, por sentença de 6 de Abril de 2006, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelos artigos 6.º, 24.º, n.º 5, e 27.º-B do Decreto-Lei 20 – A/90, na pena de 8 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.
O arguido interpôs recurso desta sentença para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo tal recurso sido considerado improcedente, por Acórdão de 29 de Novembro de 2006.
O Tribunal da Relação de Coimbra, em incidente de aclaração, determinou a baixa dos autos à 1ª instância, para que se pudesse oficiar ao Instituto da Segurança Social, tendo em vista dar cumprimento ao disposto no artigo 105º, nº 1, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT).
O arguido recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo tal recurso sido julgado improcedente.
Após a baixa dos autos à 1ª instância, o Instituto de Segurança Social procedeu à notificação do arguido, para proceder ao pagamento das prestações em dívida nos autos e juros legais no prazo de 30 dias.
O Tribunal procedeu, ainda, à notificação do arguido para informar se havia procedido ao pagamento no prazo estipulado.
O arguido apresentou, então, um requerimento no processo, em que solicitava, designadamente, que fosse declarada a invalidade e ineficácia da notificação efectuada pela Segurança Social, fosse conhecida e declarada, por ausência de reversão, a inadmissibilidade legal para o chamamento do arguido ao pagamento de uma dívida alheia, e fossem declaradas despenalizadas cada uma das prestações tributárias de valor inferior a € 7.500, aplicando-se o regime mais favorável ao recorrente.
Tal requerimento foi indeferido pelo tribunal de 1ª instância.
Este despacho motivou nova interposição de recurso, para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por Acórdão proferido em 5 de Maio de 2010, negou provimento ao recurso.
O arguido veio, então, “arguir obscuridade do douto acórdão de 05 do corrente, considerado notificado em 10 do corrente”, requerendo a sua “correcção”.
Por novo Acórdão, proferido em 15 de Setembro de 2010, o Tribunal da Relação de Coimbra indeferiu o requerido.
Novamente inconformado, o arguido veio arguir perante o Tribunal da Relação de Coimbra a nulidade deste acórdão e, simultaneamente, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, requerendo a apreciação da constitucionalidade dos artigos 105.º, n.º 4, e 107.º, n.º 2, do RGIT, interpretados com o sentido de que consagrando embora uma condição objectiva de punibilidade, poderem levar à condenação de quem, ao tempo da verificação da mesma, não tinha representação nem responsabilidade para efectuar o pagamento do devido, por violar o disposto no artigo 29.º, n.º 4, da Constituição.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por Acórdão proferido em 19 de Dezembro de 2010, indeferiu a arguição de nulidade.
Por sua vez, o Desembargador Relator proferiu despacho de não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional, com os seguintes fundamentos:
“No requerimento incorporado a fls. 4147-4153, além de arguir de omisso o acórdão aclaratório daquele que apreciara o recurso – questão já apreciada, em conferência - o arguido requereu que:
- “se considere interposto, desde já, recurso para o T. Constitucional» do mencionado acórdão que incidiu sobre o pedido de aclaração do acórdão que procedeu à apreciação dos fundamentos do recurso”.
Como fundamento do recurso de constitucionalidade, invoca a violação, pelo acórdão aclaratório, do regime do artigo 29.º, nº 4 da C. Rep. - dos artigos 105º, n.º 4 e 107º, nº 2 do RGIT, quando entendidos estes no sentido de, consagrando embora uma condição objectiva de punibilidade, poderem levar à condenação de quem, ao tempo da verificação da mesma, não tinha representação nem responsabilidade para efectuar o pagamento do devido.
O acórdão de que se recorre, onde teria cometida a invocada inconstitucionalidade não é o acórdão que apreciou a motivação do recurso interposto da decisão do tribunal de 1ª instância. Mas aquele que procedeu – apenas – à apreciação da invocada obscuridade do primeiro, cujo âmbito a aclaração não podia alterar.
Ora, na motivação do recurso, como resulta das respectivas conclusões, não era invocada a mencionada questão da inconstitucionalidade que apenas foi invocada no requerimento de aclaração.
Sendo certo que a decisão que apreciou o recurso não constituiu qualquer possível “decisão surpresa” para o recorrente, visto se ter limitado a apreciar os possíveis – debatidos sentidos interpretativos das normas invocadas.
Muito menos pode ter constituído “decisão surpresa” a decisão aclaratória (da qual vem interposto o recurso) que nada adiantou à decisão matricial originária.
Assim, falece um pressuposto do recurso de constitucionalidade – art. 70º, nº 1, al. f) da Lei do Tribunal Constitucional — Lei n.º 28/82 de 15.11.
Em termos de tempestividade do recurso, verifica-se que:
- o acórdão que apreciou o mérito do recurso é datado de 05/Maio/2010;
- o pedido de aclaração deu entrada (fls. 4105) em 21/05/2010. Tendo sido apreciado por novo acórdão de 15.09.20 10;
- a interposição do recurso de constitucionalidade deu entrada em juízo em 29.09.2010 (fls. 2147).
Ora, se é certo que o Código de Processo Penal não contém disposição que regule o efeito do requerimento para a correcção da sentença, apresentado nos termos do disposto no artigo 380º do CPP, postula o art. 669º, n.º 3 do CPC (aplicável ex vi do art. 4º do CPP), na redacção dada pelo DL 303/2007, de 24 de Agosto que: “Cabendo recurso da decisão, o requerimento previsto no n.º 1 (para esclarecimento de obscuridade da decisão) é feito na respectiva alegação”.
Assim, tendo o recorrente lançado mão, previamente, de um outro requerimento, o recurso de constitucionalidade surge também como intempestivo, pois que devia ter sido logo interposto no prazo do recurso da decisão.
Face ao exposto, quer por ilegal quer por intempestivo, não se admite o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.”
O arguido reclamou deste decisão para o Tribunal Constitucional tendo apresentado as seguintes conclusões:
I – Tendo o Recorrente sido notificado a 20 de Setembro de 2010, o douto acórdão de 15 de Setembro, que incidiu sobre OBSCURIDADE do acórdão primeiro,
temos que o recurso a ele relativo, com apresentação em 29.09 do requerimento de fls. 4147/53, foi tempestivamente interposto.
II – O recurso para Tribunal Constitucional só pode ter lugar se a decisão se tiver tornado irrecorrível no processo em causa – artigos 70º, nºs 2 e 4, e 75º da Lei do Tribunal Constitucional -, e é entendimento corrente – doutrinário (R.L.J. nº 3806, como J. A. Reis, in C.P.C. Anot., vol. V, aliás citado no douto acórdão) e jurisprudencial, mesmo desse douto Tribunal – cf. acórdão 16/2010, de 12.01.)
III - Demais que “a correcção ou a rectificação passam a fazer parte integrante da sentença, ... então só depois disso é que temos uma decisão para eventual recurso.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-03-2007 in www.dgsi.pt.
IV – Por outro lado, o Recorrente não admitiu, como possível, numa decisão judicial, em sede de recurso, equiparar-se condição objectiva de punibilidade com fazer cessar o procedimento criminal,
já que, as condições objectivas de punibilidade são condição e pressupostos da existência de ilícito: actuam num momento prévio à instauração de um processo, e não num momento posterior (como factor extintivo ou que determine um qualquer arquivamento).
V - Ao interpretar a norma permissiva que levara à notificação para nova liquidação antes de aplicação da sanção, como “condição objectiva de punibilidade” fez-se errada interpretação dos artigos 105º, nº 4 e 107º, nº 2 do RGIT, face ao normativo do artigo 29º, nº 4 da C. Rep., e por isso ferida de inconstitucionalidade – que se arguiu quando dela se conheceu.
VI – Pelo que, esta é uma daquelas situações “nas quais o interessado não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão final”. Neste sentido, o arrimo do Ac. do Tribunal Constitucional nº 74/00, de 10 de Fevereiro de 2000, no Proc. nº 790/99, acima transcrito
VII - Não falece, pois, o pressuposto de recurso de constitucionalidade apontado no douto despacho reclamado.
Termos em que deve ser julgada procedente a reclamação e revogado o douto despacho de 16 de Dezembro, que se previa no acórdão de 19.12, mas, apesar disso, notificado com expediente datado de 17 posterior e anteriormente, conforme a relacionação de datas), e, consequentemente, ordenada a subida do recurso para que seja analisado e apreciado o seu mérito em sede judicial própria.
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
Fundamentação
1. Da tempestividade do recurso
O Recorrente, no recurso por si interposto para o Tribunal Constitucional questiona a constitucionalidade de uma determinada interpretação dos artigos 105.º, n.º 4, e 107.º, n.º 2, do RGIT, que imputa à decisão recorrida.
Essa decisão só poderá ser o Acórdão proferido em 5 de Maio de 2010, pois, foi ele que apreciou a correcção da aplicação dos mencionados preceitos.
O prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é de 10 dias a contar da data da notificação da decisão recorrida (artigo 75.º, n.º 1, da LTC).
Contudo, o referido Acórdão de 5 de Maio de 2010 foi objecto de um pedido de aclaração, o qual só foi indeferido por Acórdão proferido em 15 de Setembro de 2010.
À tramitação dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código de Processo Civil, em especial as respeitantes ao recurso de apelação (artigo 69.º, da LTC), mesmo que se trate de um recurso interposto em processo penal.
Uma vez que estamos perante um processo iniciado antes da entrada em vigor da Reforma operada no regime dos recursos em processo civil pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, é-lhe aplicável o regime vigente até 31-12-2007 (artigos 11.º e 12.º, n.º 1, do referido diploma).
Ora, neste último regime, se alguma das partes requerer a aclaração, o prazo para o recurso só começa a correr depois de notificada a decisão proferida sobre o requerimento (artigo 686.º, n.º 1, do C.P.C.).
Assim, tendo o mandatário do Recorrente sido notificado do Acórdão proferido em 15 de Setembro de 2010, por via postal expedida em 17 de Setembro de 2010, o requerimento de interposição de recurso ao dar entrada em 29 de Setembro de 2010, foi atempado, atenta a data presuntiva de recebimento daquela notificação.
Não há, pois, razões para não admitir o recurso interposto, com fundamento na sua intempestividade.
2. Da falta de suscitação adequada
Estando nós perante recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Aquele primeiro requisito só se considera dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve «lapso manifesto» do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações.
Neste recurso, o Reclamante pretende que se fiscalize a constitucionalidade dos artigos 105.º, n.º 4, e 107.º, n.º 2, do RGIT, interpretados com o sentido de que consagrando embora uma condição objectiva de punibilidade, podem levar à condenação de quem, ao tempo da verificação da mesma, não tinha representação nem responsabilidade para efectuar o pagamento do devido, por violar o disposto no artigo 29.º, n.º 4, da Constituição.
Independentemente do juízo que se faça sobre a verificação do pressuposto de que a interpretação normativa questionada integra a ratio decidendi da decisão recorrida, o Reclamante teve oportunidade para colocar aquela questão de constitucionalidade ao Tribunal recorrido, antes deste proferir uma decisão de mérito sobre o recurso, nas alegações apresentadas a esse Tribunal.
A aplicação da interpretação dos artigos 105.º, n.º 4, e 107.º, n.º 2, do RGIT, que se pretende sindicar era perfeitamente previsível pelo Recorrente, uma vez que era necessariamente do seu conhecimento pessoal que, aquando da notificação para pagamento das contribuições em falta já não era representante da sociedade devedora, nas alegações de recurso sempre qualificou essa diligência como visando apurar uma condição objectiva de punibilidade e com o recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra estava precisamente a questionar a sua condenação pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social.
Dispunha, pois, de todos os dados e sinais que lhe permitiam antecipar a possibilidade de ser seguida a interpretação cuja constitucionalidade pretendeu mais tarde questionar, pelo que o deveria ter feito antecipadamente, permitindo assim ao Tribunal recorrido que se pronunciasse sobre ela.
Não o tendo feito atempadamente, carece agora de legitimidade para interpor o presente recurso, pelo que se revela correcta a decisão de não o admitir, com este fundamento.
Por este motivo deve ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A..
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 22 de Março de 2011.-João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.