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Proc. nº 729/00
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional: I – Relatório.
1. M..., Lda, ora recorrida, inconformada com a liquidação, pela Câmara Municipal do Porto, da taxa agravada por licença de obras e da taxa de urbanização, impugnou jurisdicionalmente tais liquidações.
2. No julgamento daquela impugnação o Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, por decisão de 12 de Junho de 2000, recusou aplicar, com fundamento na sua inconstitucionalidade formal, por falta de indicação da respectiva lei habilitante, o Regulamento Municipal de Obras (RMO) e o Regulamento de Liquidação e Cobrança de Taxas e Licenças Municipais (RLCTLM) para o ano de
1996, ambos da Câmara Municipal do Porto. Ponderou, então, aquele Tribunal:
'Pela análise da matéria provada verifica-se que, no momento da liquidação de ambas as taxas em discussão nestes autos, a taxa de legalização de obra e a taxa de urbanização, o RMO e o RLCTLM, da C.M.P., não continham indicação expressa da lei habilitante, dado que só posteriormente, em 27 de Maio de 1997, foi aprovada, por unanimidade, a deliberação da Assembleia Municipal da CMP, segundo o qual apenas o RMO passaria a constar essa lei habilitante, pelo que a publicação do regulamento com indicação da lei. O Tribunal Constitucional já se pronunciou inequivocamente que, de acordo com o disposto no artº 115º da C.R.P., os regulamentos – todo e qualquer regulamento, independentemente do órgão ou autoridade donde tiverem emanado – devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão, sob pena de padecerem de inconstitucionalidade formal, por desrespeito do citado preceito constitucional. Assim, sem necessidade de mais análises, dado tratar-se de uma questão repetidamente afirmada na doutrina e na jurisprudência, declaro, nos presentes autos a referida inconstitucionalidade formal dos referidos regulamentos, e, em consequência, a anulação do acto de liquidação nestes autos posta em causa, que não pode subsistir, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas nestes autos'
3. Desta decisão foram interpostos, respectivamente pelo representante da Fazenda Pública e pelo Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Tributário de 1ª Instância, recursos para o Tribunal Constitucional.
4. Já neste Tribunal foram os recorrentes notificados para alegar.
5. O Ministério Público, nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:
'1 – Conforme jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal, é formalmente inconstitucional a versão originária do RMO da Câmara Municipal do Porto, na versão que vigorou até ao momento – 27 de maio de 1997 – em que nele se inseriu menção da respectiva lei habilitante, - e não sendo tal sanação do vício de inconstitucionalidade formal susceptível de determinar a respectiva convalidação retroactiva.
2 - Invocando expressamente o Regulamento da Tabela de Taxas e Licenças para
1996, da Câmara Municipal do Porto, como lei habilitante o artigo 68º-A do Decreto-Lei nº 445/91 (na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro) bem como o artigo 118º do Código de Procedimento Administrativo – e resultando da primeira daquelas normas, ao menos implicitamente, a competência dos órgãos municipais para editarem regulamentos visando a fixação de regras relativas à construção, fiscalização e taxas de obras particulares – não pode imputar-se o vício de inconstitucionalidade formal, decorrente de omissão de invocação da lei-habilitante, às normas integradas no Capítulo IV do dito regulamento.
2 – Não cabe no âmbito do presente recurso de constitucionalidade sindicar se as normas legais, invocadas como base ou suporte do regulamento, constituem título bastante para a sua edição – competindo aos tribunais judiciais ou administrativos e fiscais dirimir tal matéria, situada exclusivamente no plano da estrita legalidade do acto regulamentar.
3 – Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com um juízo de constitucionalidade formal das normas desaplicadas na decisão recorrida.'
6. Por parte da recorrente Fazenda Pública não foi apresentada, dentro do prazo legal, qualquer alegação, pelo que o recurso por si interposto foi, com esse fundamento, julgado deserto por despacho de 12 de Março de 2001.
7. Por sua vez, a recorrida Mundiato, Lda., respondeu às alegações do Ministério Público, em termos que aqui se dão por reproduzidos, tendo concluído pela improcedência do recurso. Dispensados os vistos legais, cumpre decidir. II. Fundamentação.
8. O presente recurso, interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 70º da LTC, tem por objecto a apreciação da constitucionalidade formal do Regulamento Municipal de Obras e do Regulamento da Tabela de Taxas e Licenças Municipais para 1996, ambos da Câmara Municipal do Porto, a que o Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto recusou aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade formal, por não conterem indicação expressa da respectiva lei habilitante. Nenhuma destas questões é nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional que já se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade formal de ambos os regulamentos. Assim, sobre a inconstitucionalidade formal do RMO da Câmara Municipal do Porto pode ler-se, mais recentemente, no acórdão nº 148/00 (ainda inédito):
'E, na verdade, dispondo, ao tempo em que foi aprovado o dito Regulamento, o artigo 115º nº. 7 da CRP que 'os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva ou objectiva para a sua emissão', era patente a violação desta norma, pois não era, em parte alguma, citada a lei habilitante. Sendo esta a situação à data em que foi praticado o acto de liquidação impugnado, cuja legalidade haverá de ser ajuizada de acordo com o princípio
'tempus regit actum', impunha-se o julgado de invalidade daquele acto por recusa de aplicação do regulamento ao abrigo do qual ele fora emitido. Admite, porém, o recorrente que o facto de em 27 de Maio de 1997 ter sido aprovada deliberação da Assembleia Municipal do município do Porto, segundo a qual do Regulamento passaria a constar que ela fora aprovada ao abrigo do determinado no artigo 11º alínea a) da Lei nº. 1/87, de 6 de Janeiro, artigo 39º nº. 2, alínea l) do DL nº. 100/84 de 29 de Março, e no artigo 43º nº. 1 do DL nº. 400/84, de 31 de Dezembro, DL nº. 448/91, de 29 de Novembro, com as alterações introduzidas pelo DL nº. 334/95 de 28 de Dezembro e Lei nº. 26/96 de
1 de Agosto, possa influir na decisão do presente recurso, sem embargo de não ter a virtualidade de sanar, com efeitos 'ex tunc', a inconstitucionalidade. Isto porque 'a circunstância de terem incidido sobre a situação litigiosa diversas decisões de órgãos camarários, reiterando o débito decorrente da taxa em questão (cujo exacto momento de liquidação, aliás, se ignora praticadas num momento em que já não subsistia seguramente o vício de inconstitucionalidade formal imputado à versão originária do Regulamento, é susceptível de abalar a linearidade da conclusão expressa na decisão recorrida – segundo a qual seria necessariamente à data da liquidação originária da taxa de urbanização em causa que cumpria averiguar da constitucionalidade formal do regulamento em que o mesmo se suportara – sem indagar se, porventura, não terão ocorrido ulteriores actos da Administração (mas anteriores à impugnação judicial deduzida pelo particular) que traduzem, nomeadamente eventual renovação ou suprimento do acto nulo, com fundamento na versão (já formalmente conforme à Constituição) do regulamento em causa'. Mas não tem razão. Não devendo ignorar-se que o presente recurso integra um processo de fiscalização concreta de constitucionalidade e que o Tribunal Constitucional não pode substituir-se ao tribunal 'a quo' na aplicação do direito infra-constitucional, constitui obstáculo intransponível à tese admitida pelo recorrente o facto de, no uso dos seus poderes de cognição, o tribunal tributário de 1ª instância ter fixado o objecto da impugnação: um acto tributário de liquidação de taxa, praticado em data incerta mas anterior àquela em que a Assembleia Municipal tomou a citada deliberação. Não se recusa que, posteriormente àquele acto e antes da impugnação judicial, outros possam ter sido praticados num momento em que já fora tomada a mesma deliberação, actos esses que, não sendo susceptíveis de sanar um acto nulo, constituiriam a 'renovação' do primeiro, agora isentos do vício gerador de nulidade. Simplesmente, sendo certo que eles seriam do conhecimento do julgador, a verdade
é que não foram esses os que a sentença impugnada apreciou, nem lhes deu relevância como actos que 'substituíssem' o acto impugnado, extravasando os poderes de cognição do Tribunal proceder agora a uma tal operação, o que contenderia com a própria fixação do objecto da impugnação judicial. Nesta medida, sendo patente e de certo modo até incontestada pelo recorrente a violação do artigo 115º nº. 7 da CRP, na redacção então em vigor, não há mais que confirmar a recusa de aplicação do Regulamento Municipal de Obras feita na sentença recorrida, ficando consequentemente prejudicado o conhecimento da questão de inconstitucionalidade orgânica suscitada pelo recorrente e pela recorrida'.
De igual forma, sobre a inconstitucionalidade formal do RLCTLM para o ano de
1996, da Câmara Municipal do Porto, pode ler-se, mais recentemente, no acórdão desta Secção nº 174/01 (ainda inédito):
'Lê-se no aviso que antecede a publicação do mencionado Regulamento da Tabela de Taxas e Licenças para 1996, da Câmara Municipal do Porto, no Diário da República, II Série, nº 61, suplemento, de 12 de Março de 1996, p. 3386 (33) a
3386 (49):
«Em cumprimento do estipulado no nº 3 do art. 68º-A do Dec.Lei 445/91, de 20-11, na redacção dada pelo Dec.Lei 250/94, de 15-10, publica-se o Regulamento da Tabela de Taxas e Licenças para o ano de 1996, aprovado em reunião camarária de
12-12-95, previamente submetido à apreciação pública nos termos do artigo 118º do Código do Procedimento Administrativo e aprovado em reunião da Assembleia Municipal em 16-1-96'. A questão a decidir neste processo reside portanto em saber se satisfaz a exigência contida no artigo 112º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa a referência que é feita, no aviso que antecede a publicação no Diário da República do mencionado Regulamento da Câmara Municipal do Porto, ao nº 3 do artigo 68º-A do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro, e ao artigo 118º do Código do Procedimento Administrativo. A exigência de indicação da lei habilitante formulada pelo actual artigo 112º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa tem em vista, por um lado, disciplinar o uso do poder regulamentar, obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso, se podem ou não emitir determinado regulamento, e, por outro lado, garantir a segurança e a transparência jurídicas, dando a conhecer aos destinatários o fundamento do poder regulamentar.
Como este Tribunal disse no acórdão nº 357/99 (Diário da República, II Série, nº 52, de 2 de Março de 2000, p. 4255), 'não impõe a lei constitucional que a indicação da lei definidora da competência conste de um qualquer trecho determinado do Regulamento'. A Constituição exige todavia que a menção seja 'expressa', recusando deste modo a legitimidade de referências meramente implícitas à base legal autorizante.
Mas, ainda que se aceite que a menção da norma legal habilitante seja
'implícita' ou 'indirecta' (como tem sido aceite em certa jurisprudência deste Tribunal), certo é que, no caso dos autos, não se encontra no texto do Regulamento, nem no texto do aviso que lhe deu publicidade, qualquer referência
à norma que justifica a competência da Câmara Municipal para o aprovar, ou da Assembleia Municipal para o homologar.
Na verdade, as disposições legais mencionadas no aviso acima transcrito dizem respeito tão somente à exigência de publicação no Diário da República de certos regulamentos municipais (nº 3 do artigo 68º-A do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro) e à exigência de submissão à apreciação pública dos projectos de regulamentos administrativos (artigo 118º do Código do Procedimento Administrativo).
As normas invocadas referem-se portanto a exigências de natureza procedimental, que devem ser observadas aquando da adopção de normas regulamentares por certas entidades. Ora, independentemente de qualquer juízo deste Tribunal quanto a essa questão, reconhece-se que a invocação de tais normas no aviso é oportuna, já que, através dela, a autoridade administrativa demonstra o cumprimento dessas exigências legais (a publicação no jornal oficial e a apreciação pública do regulamento).
Porém, nenhuma das normas invocadas prevê ou disciplina a competência da Câmara Municipal para aprovar, ou da Assembleia Municipal para homologar, o Regulamento que aqui se discute – mais precisamente, a norma com base na qual foi efectuada a liquidação impugnada nos presentes autos – ou para aprovar ou homologar qualquer outra norma regulamentar.
As normas invocadas não são, repete-se, normas atributivas de competência regulamentar aos órgãos autárquicos. Por isso, a referência a essas normas no aviso que precede a publicação do Regulamento não dispensa – e não pode substituir – a menção da respectiva norma legal habilitante. A função de uma e outra referência é diferente, porque distinta é também a finalidade a prosseguir por uma e outra exigência. Sublinhe-se, aliás, a fórmula utilizada no próprio aviso 'Em cumprimento do estipulado no nº 3 do art. 68º-A do Dec. Lei
445/91 [...] publica-se o Regulamento [...]'. Tanto assim é que – como vem provado na sentença recorrida, a fls. 170 – 'no dia
27 de Maio de 1997 foi aprovada, por unanimidade, a deliberação da Assembleia Municipal da C.M.P., segundo a qual do Regulamento Municipal de Obras passaria a constar que o Regulamento foi aprovado pela Assembleia Municipal ao abrigo do determinado no artº 11º, alínea a), da L. 1/87, de 06.01, artº 39º, nº 2, alínea l), do DL 100/84, de 29.03, artº 43º, nº 1, do DL 400/84, de 31.12, DL 448/91, de 29.11, com as alterações introduzidas pelo DL 334/95, de 28.12, e L. 26/96, de 01.08'.
Pelos fundamentos expostos, conclui-se que é formalmente inconstitucional, por falta de indicação da norma legal habilitante, o Regulamento da Tabela de Taxas e Licenças para 1996, da Câmara Municipal do Porto, aprovado em reunião camarária de 12 de Dezembro de 1995, e publicado no Diário da República, II Série, nº 61, suplemento, de 12 de Março de 1996, p.
3386 (33) a 3386 (49), na versão em vigor à data em que foi praticado o acto de liquidação impugnado nestes autos.
O mesmo juízo de inconstitucionalidade quanto ao mencionado Regulamento consta do acórdão deste Tribunal nº 148/00 (publicado no Diário da República, II Série, nº 233, de 9 de Outubro de 2000, p. 16343 s).
É esta jurisprudência - para cuja fundamentação se remete - que, por manter inteira validade, agora há que reiterar. III - Decisão. Por tudo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Lisboa, 9 de Maio de 2001 José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Messias Bento Luís Nunes de Almeida