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Proc. nº 726/00
1ª Secção Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – RELATÓRIO:
1. M... deduziu embargos à falência decretada por sentença do 3º Juízo Cível da Comarca de Braga. Nesses embargos, suscitou desde logo a questão de inconstitucionalidade orgânica dos artigos 147º e 149º do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência (abreviadamente designado CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril.
Após contestação do embargado B..., SA e porque as questões suscitadas pelas partes dispensavam a produção de prova, foi proferida decisão, datada de 2 de Fevereiro de 2000, que julgou improcedentes os embargos deduzidos e manteve a sentença que decretara a falência.
Inconformada, a embargante interpôs recurso de apelação desta decisão para o STJ.
Nas suas alegações, continuou a suscitar a questão de inconstitucionalidade orgânica daquelas normas.
Admitido o recurso, e juntas as contra-alegações do embargado, os autos subiram ao Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por acórdão de 31 de Outubro de 2000, julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão recorrida.
2. Novamente inconformada, a recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo
70º da LTC, para apreciação da questão de inconstitucionalidade orgânica das normas constantes dos artigos 147º e 149º do CPEREF.
Admitido o recurso, subiram os autos a este Tribunal, onde a recorrente produziu alegações, que concluiu pela forma seguinte:
1. O Decreto-Lei 132/93, de 23/4 estabeleceu nos seus artigos 147º e
149º uma regulamentação que exorbita a autorização que lhe foi concedida, pelo que padece de inconstitucionalidade orgânica.
2. O mesmo foi sido elaborado pelo Governo, no uso de autorização legislativa concedida pela Assembleia da República, nos termos dos artigos 164º alínea e) (actualmente 161º, alínea d)) e 168º, nº 1, alíneas b), c), i) e s),
(actualmente 165º, alíneas b), c), i) e q)) da Constituição.
3. Dispõe o artigo 4º da Lei de autorização (Lei nº 16/92): «Fica o Governo autorizado a determinar a inibição do falido, ou no caso de sociedade ou de pessoa colectiva, dos seus administradores para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação privada de actividade económica ou empresa pública» (sublinhado nosso).
4. O artigo 147º do CPEREF dispõe que «A declaração de falência priva imediatamente o falido (...) da administração e do poder de disposição dos seus bens presentes ou futuros que passam a integrar a massa falida (...)».
5. Por seu lado, o artigo 149º estabelece «O falido e, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, os seus administradores são obrigados a apresentar-se pessoalmente no tribunal (...), a fim de prestarem os esclarecimentos necessários».
6. Confrontando o teor destes dois artigos com a disposição que concedeu autorização legislativa ao Governo, conclui-se que a regulamentação constante daqueles artigos não cabe no âmbito do artigo 4º da Lei 16/92.
7. Na verdade, o Governo legislou sobre o «estado e capacidade das pessoas» e sobre «direitos, liberdades e garantias» (artigo 168º, actual artigo
165º da Constituição), matérias essas que são da exclusiva competência da Assembleia, «salvo autorização ao Governo».
8. Repete-se, os artigos 147º e 149º do CPEREF estabeleceram limitações relativas à pessoa do falido, limitações essas que afectam o seu estado e capacidade e os seus direitos, liberdades e garantias (privação da administração e poder de disposição dos seus bens e obrigação de apresentação no tribunal).
9. E tal exorbita claramente o âmbito da autorização concedida pela Assembleia, a qual se referia, unicamente, à «inibição (...) para o exercício do comércio».
Por sua vez, o recorrido B..., nas suas contra-alegações, concluiu pela improcedência do recurso. Entendeu aí:
Na verdade, como bem se decidiu no douto Acórdão recorrido, as disposições do CPEREF que a recorrente reputa de inconstitucionais, contêm-se na autorização legislativa nº 16/92 de 6 de Agosto.
É que a expressão ou conceito «inibição do falido» comporta em si mesma, atenta a evolução do processo falimentar no ordenamento jurídico português, a apreensão dos bens do falido e a sua afectação ao pagamento da suas dívidas.
Apreensão e afectação de bens que define e caracteriza juridicamente a própria falência.
Foi pois neste sentido e entendimento do conceito de inibição do falido que foi concedida a autorização legislativa supra referida ao Governo.
Dela, inibição, se realçando o exercício do comércio pela circunstância dessa proibição poder, ela sim, ferir princípios fundamentais da Constituição relativamente reservados à actividade legislativa da Assembleia da República.
Por último, não se afigura ao recorrente que a obrigatoriedade de apresentação em Juízo e a prestação de esclarecimentos necessários pelo falido constitua qualquer violação de princípios constitucionais, maxime os invocados pela recorrida.
Tanto mais porque é obrigação dos cidadãos colaborarem com a boa administração da Justiça.
Cumpre, então, decidir.
II – FUNDAMENTOS
3. A questão de inconstitucionalidade suscitada pela recorrente refere-se, pois, às normas constantes dos artigos 147º, nº 1, e 149º do CPEREF, na medida em que, segundo a recorrente, tais normas dispõem sobre questões atinentes ao estado e capacidade das pessoas e sobre direito, liberdades e garantias, matérias essas da exclusiva competência da Assembleia da República e para as quais o Governo não possuía autorização válida ou bastante que lhe permitisse regulamentar ou legislar.
Tais normas são do seguinte teor: Artigo 147º Limitações resultantes da declaração de falência
1 – A declaração de falência priva imediatamente o falido, por si ou, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, pelos órgãos que o representem, da administração e do poder de disposição dos seus bens presentes ou futuros, os quais passam a integrar a massa falida, sujeita à administração e poder de disposição do liquidatário judicial.
2 – [...]
Artigo 149º Dever de apresentação
O falido e, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, os seus administradores são obrigados a apresentar-se pessoalmente no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo liquidatário, a fim de prestarem os esclarecimentos necessários, salvo a ocorrência de legítimo impedimento ou expressa permissão de se fazerem representar por mandatário.
Por sua vez, o artigo 4º da Lei nº 16/92, de 6 de Agosto – lei que autorizou o Governo a legislar sobre os processos especiais de recuperação das empresas e de falência -, estabelece:
Fica o Governo autorizado a determinar a inibição do falido ou, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, dos seus administradores para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação privada de actividade económica ou empresa pública.
4. Sobre semelhante questão de inconstitucionalidade orgânica, ainda que em concreto reportada a outras normas do CPEREF (a do artigo 129º, nº 1, alínea a), e a do artigo 228º), se debruçou já este Tribunal, no seu Acórdão nº
479/98 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 40º vol., págs. 491 e ss.); embora nesse aresto a questão se reportasse a pessoa colectiva, não deixou o Tribunal de desde logo antever algumas considerações pertinentes à situação das pessoas singulares, pela forma seguinte:
E, se da declaração de falência porventura decorressem, para pessoas singulares, determinados efeitos com incidência na sua capacidade, nem por isso o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, quanto a esse particular, poderia ser visto como padecendo de vício de desconformidade orgânica com a Constituição, tendo em conta o que se dispõe no artº 4º da Lei
16/92, de 6 de Agosto, segundo o qual ficava o Governo autorizado 'a determinar a inibição do falido ou, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, dos seus administradores para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial, associação privada de actividade económica ou empresa pública'.
[...] Por último, [...] o dever de apresentação (no caso releva o respeitante aos administradores da pessoa colectiva declarada falida) pessoal no tribunal para prestar os necessários esclarecimentos, sempre que isso seja determinado pelo juiz ou pelo liquidatário, a que se reporta o artº 149º, também não é inserível em matéria que contenda ou afecte o estado e capacidade desses administradores. Por essas razões, a argumentação deduzida pela recorrente neste particular revela-se inapropriada para justificar o vício de inconstitucionalidade que assaca à norma que ora se aprecia (cfr., sobre o ponto, Oliveira Ascenção, Efeitos da Falência sobre a pessoa e negócios do falido in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 55, Dezembro de 1995, 641 a 688, e Luís Carvalho Fernandes, Efeitos substantivos da declaração de falência, estudo publicado na Revista Direito e Justiça, 19 a 49).
[...] Seja como for, aquela norma é, visivelmente, uma norma de estrito âmbito processual, não contendendo, sequer, com qualquer limitação da capacidade da pessoa colectiva falida ou com os direitos e vinculações que os respectivos administradores, perspectivados como pessoas individuais, possam ou não exercer afora a consequência prevista no nº 1 do artº 148º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, plenamente autorizada a ser editada num diploma de origem governamental pelo artº 4º da Lei nº 16/92.
Ora, aquele âmbito processual, até porque não se insere de modo imediato e directo numa adjectivação de «institutos» ou matérias verdadeiramente substantivas que tenham a ver com questões ligadas, qualquer reflexo sobre a já mencionada medida de direitos e vinculações que alguém, pessoalmente, possa exercer e cumprir, afastaria, numa visão de primeira linha, a necessidade da edição da norma pelo órgão parlamentar, fundada na sua reserva relativa de competência [e isto, claro está, independentemente de se saber se estando em causa, por exemplo, matérias ínsitas na alínea a) do nº 1 do artigo 165º da Constituição, a reserva parlamentar há-de abranger somente as suas regras materiais ou também as regras que aquelas adjectivem].
5. Pois bem, e antes de mais, as normas em causa não se mostram inovadoras nem representam qualquer alteração face ao anterior regime, antes consagram aspectos tradicionalmente aceites.
Com efeito, e à semelhança do que já no Código de 1939 se consagrava, o CPC de 1961dispunha no seu artigo 1189º, sob a epígrafe Inibição do falido:
1. A declaração da falência produz a inibição do falido para administrar e dispor de seus bens havidos ou que de futuro lhe advenham [...].
E o artigo 1193º, por seu lado, impunha o dever de apresentação pessoal do falido em tribunal sempre que tal fosse determinado «pelo juiz ou pelo síndico, a fim de prestar todos os esclarecimentos [...]».
Estes preceitos apenas foram revogados pelo artigo 9º do Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, que aprovou o CPEREF - do qual constam as normas que precisamente os substituíram e cuja inconstitucionalidade vem suscitada - pois que as diversas intervenções legislativas no âmbito do direito falimentar, que foram sucessivamente publicadas após 1976, se debruçaram sobre outros aspectos, nomeadamente os relativos à recuperação de empresas, não se tendo verificado qualquer revogação das referidas normas do Código de Processo Civil.
Assim, para além de se poder, desde logo, entender que estas normas
- como se afirmou, de resto, no transcrito Acórdão nº 479/98 - revestem natureza processual, a verdade é que, ainda que se considere que elas regulam, numa determinada perspectiva, direitos, liberdades ou garantias (sobre a natureza e conteúdo da inibição do falido, ver Oliveira Ascensão Efeitos da Falência sobre a pessoa e negócios do falido in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 55, Dezembro de 1995, págs. 647 a 652, e Luís Carvalho Fernandes, O novo regime da inibição do falido para o exercício do comércio, in Direito e Justiça, vol. XIII, tomo 2, 1999, págs. 7 a 13), não assumem elas qualquer carácter inovatório, o que afasta a respectiva inconstitucionalidade orgânica (limitam-se a reproduzir soluções jurídicas já constantes de outras normas que foram revogadas pelo mesmo diploma legal em que elas se inserem).
Aliás, sempre se haveria de concluir pela suficiência da autorização legislativa constante do artigo 4º da Lei nº 16/92, de 6 de Agosto, para a edição das normas questionadas, pois o que nelas se determina corresponde a mera regulamentação do instituto da inibição do falido, em forma em tudo semelhante ao regime já anteriormente vigente, que o legislador parlamentar não pretendeu seguramente que viesse a ser alterado.
Não pode, pois, proceder a invocada inconstitucionalidade orgânica.
III – DECISÃO
6. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) UC’s.
Lisboa, 8 de Maio de 2001 Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa