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Procº nº 168/01 ACÓRDÃO Nº 189/01
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
I – RELATÓRIO
1. – P... interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que negou provimento ao recurso por si interposto em matéria penal do acórdão do Colectivo da Vara Mista de Coimbra e concedeu provimento ao recurso cível de O ... condenando P... no pagamento de 500.000$00 a título de danos patrimoniais.
2. - O arguido P..., juntamente com outros arguidos, foi julgado e condenado na Vara Mista de Coimbra como autor de 6 crimes de falsificação de documento, previsto e punido pelos artigos 255º, alínea a) e
256º, nº1, alínea a) e nº 3, do Código Penal (CP), na pena de 18 meses de prisão por cada um; como autor de 1 crime de falsificação de documento, p. e p. nas mesmas disposições legais, na pena de 24 meses de prisão; como autor de 3 crimes de burla qualificada, especialmente atenuados, previstos e punidos nos artigos
217º, 218º, nº1, 206º, 72º e 73º do CP, na pena de 9 meses de prisão, por cada um; como autor de 2 crimes de burla qualificada, previsto e punido nos artigos
217º e 218º, nº1, do CP, na pena de 14 meses de prisão, por cada um. Efectuado o respectivo cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, tendo sido declarado perdoado um ano de tal pena única.
O recurso interposto por P... para o STJ foi rejeitado por despacho do relator, de fls. 2379, do seguinte teor:
'Não admito o recurso interposto pelo arguido P... para o S.T.J. por a tal obstar o art. 400º nº1, als. e) e f) do CPP - art. 432º al. b) CPP'.
Notificado do despacho de rejeição, P... veio reclamar para o Presidente do STJ por entender que a interpretação feita na decisão reclamada da norma do artigo 400º, nº1, alínea f) do Código de Processo Penal
(CPP) não ser conforme à Constituição, porquanto a interpretação daquele normativo que decorre da Lei Fundamental é aquela que aponta para que mesmo havendo concurso de infracções a soma das molduras abstractas dos crimes em concurso não ultrapasse os 8 anos. Este entendimento, segundo o reclamante é corroborado pelo lugar paralelo das regras de fixação da competência dos tribunais para julgamento (artigo 14º, nº2, alínea b) do CPP), onde se estabelece que o Tribunal Colectivo julgará os crimes 'cuja pena máxima, abstractamente aplicável, for superior a 5 anos de prisão, mesmo quando, no caso de concurso de infracções, seja inferior ao limite máximo correspondente a cada crime'. Tal entendimento é ainda confortado pelo absurdo da situação em que um arguido viesse a ser condenado pela prática de dez crimes de burla qualificada em concurso real com dez crimes de falsificação agravada que, em cúmulo jurídico levam a uma condenação de 12 anos de prisão: seria absurdo, no entender do reclamante, tal acórdão da Relação não poder ser recorrível por nenhum dos crimes ultrapassar a moldura legal abstracta dos 8 anos de prisão.
3. – O Presidente do STJ, por decisão de 24 de Janeiro de 2001, resolveu indeferir a reclamação uma vez que a decisão reclamada respeita o direito ao recurso em processo penal, que não é uma faculdade ilimitada e não ofende as garantias de defesa do arguido, pois fica garantido o recurso em um grau, não sendo por isso admissível recurso de uma decisão proferida pela relação (onde se concretiza já o recurso em um grau), pela qual se condena o arguido em crime cuja moldura penal não ultrapasse os 8 anos de prisão, mesmo em caso de cúmulo jurídico.
Notificado desta decisão, o reclamante veio pedir a aclaração da decisão, pedido que foi indeferido pelo despacho de 15 de Fevereiro de 2001, por se ter entendido que não havia qualquer nulidade na decisão reclamada e que tal decisão não continha qualquer obscuridade ou ambiguidade susceptível de aclaração.
P... interpõe o presente recurso de constitucionalidade, pretendendo que o Tribunal 'aprecie e declare a inconstitucionalidade, por violação dos art.ºs 13º, 20º e 32º da CRP, da norma constante do art.º 400º, 1, al. f) do CPP, na interpretação acolhida pela Relação de Coimbra e corroborada pelo Sr. Conselheiro Relator, emitida no sentido de que o predito inciso normativo só permite a existência de recurso das relações para o Supremo Tribunal de Justiça quando exista um crime punível com uma moldura superior a oito anos, considerando irrecorrível a decisão exarada em processo que conheça de concurso de infracções onde a soma das molduras abstractas ultrapasse o sobredito limite'.
4. - O recurso foi admitido e, neste Tribunal foi determinada a apresentação de alegações.
O recorrente concluiu as suas pela forma seguinte:
1. 'A leitura interpretativa feita pelo Tribunal da Relação de Coimbra e pelo Supremo Tribunal de Justiça do inciso normativo inserido na al. f) do nº 1 do art. 400º do CP Penal, mostra-se desconforme à Constituição, designadamente aos princípios recolhidos nos arts. 13º, 20º e 32º.
2. Efectivamente tal orientação colide frontalmente com a correcta hermenêutica uma vez que postula a emergência de situações em absoluto incompreensíveis.
3. De facto permite que um condenado em pena suspensa beneficie de dois graus de recurso e inviabiliza tal garantia a um arguido eventualmente condenado em pena concreta superior a oito anos de prisão.
4. Tal consequência constitui, liquida e meridianamente, um desrespeito frontal ao princípio da igualdade consagrado no art. 13º da CRP já que trata em franca desigualdade situações que deveriam, no mínimo, receber idêntico tratamento.
5. Ao potenciar a erupção do predito tipo de solução, sem que exista o necessário lastro ético-axiológico que a legitime, a interpretação verberada do preceito em análise viola os limites do referido princípio da igualdade.
6. Mais: essa violação conhece como inelutáveis repercussão e refracção a negação de um direito ao recurso constitucionalmente ancorado, em geral, no artº
20º da CRP e especificamente, no que tange ao processo penal, no art. 32º do mesmo diploma fundamental:
7. Incisos constitucionais que, ao menos reflexamente, também se mostram violados. Termos em que na procedência da argumentação supra expendida deve ser declarada inconstitucional a interpretação sufragada pela Relação de Coimbra e pelo STJ, devendo ser extraídas as inevitáveis repercussões legais e processuais.'
Pelo seu lado, o Ministério Público também alegou, formulando as seguintes conclusões:
1. Não pode considerar-se ínsito 'direito ao recurso', afirmado pelo nº 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, o irrestrito acesso ao Supremo, em triplo grau de jurisdição, relativamente a todas as decisões condenatórias confirmadas, em via de recurso, pela Relação.
2. Não constitui solução legislativa arbitrária ou discricionária - e, como tal, violadora do princípio da igualdade - a que se traduz em desconsiderar - para efeitos de acesso ao Supremo - a relevância do concurso de crimes, num caso em que a pena única, concretamente cominada ao arguido, se situa manifestamente abaixo do limite de 8 anos de prisão que - nos termos do artº 400º, nº 1, f) do Código de Processo Penal, condiciona a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões das relações que hajam confirmado o decidido em 1ª instância.
3. Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTOS
5. – No presente recurso questiona-se a inadmissibilidade de recurso de acórdãos condenatórios proferidos pelas relações e que confirmem decisões de primeira instância, em processo crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções.
Com efeito, o recorrente entende que a interpretação feita na decisão recorrida da alínea f) do nº1 do artigo 400º do CPP viola os artigos 13º, 20º e 32º da Constituição. Esta interpretação violadora da Lei Fundamental corresponderia à proibição de recurso para o STJ, sempre que a decisão se reporte a crime que não seja punível com pena superior a 8 anos, mesmo que em concurso de crimes.
Vejamos o teor da norma cuja constitucionalidade vem questionada:
'Artigo 400º
(Decisões que não admitem recurso)
1. Não é admissível recurso: a. [...]; f) De acórdãos condenatórios proferidos em recurso, pelas relações, que confirmem a decisão de primeira instância, em processo crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções; g) [...].'
A questão que o recorrente suscita na sua reclamação para o Presidente do STJ é, afinal, a da não consagração, no caso, de um terceiro grau de jurisdição, pretendendo com a interpretação normativa que considera conforme à Constituição abrir esse terceiro grau de recurso.
Porém, não tem razão.
6. – A Constituição da República Portuguesa não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia da existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes espécies.
Importa, todavia, averiguar em que medida a existência de um duplo grau de jurisdição poderá eventualmente decorrer de preceitos constitucionais como os que se reportam às garantias de defesa, ao direito de acesso ao direito e à tutela judiciária efectiva.
Não pode deixar de se referir que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem tratado destas matérias, estando sedimentados os seus pontos essenciais.
Assim, a jurisprudência do Tribunal tem perspectivado a problemática do direito ao recurso em termos substancialmente diversos relativamente ao direito penal, por um lado, e aos outros ramos do direito, pois sempre se entendeu que a consideração constitucional das garantias de defesa implicava um tratamento especifico desta matéria no processo penal. A consagração, após a Revisão de 1997, no artigo 32º, nº1 da Constituição, do direito ao recurso, mostra que o legislador constitucional reconheceu como merecedor de tutela constitucional expressa o princípio do duplo grau de jurisdição no domínio do processo penal, sem dúvida, por se entender que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa.
Porém, mesmo aqui e face a este específico fundamento da garantia do segundo grau de jurisdição no âmbito penal, não pode decorrer desse fundamento que os sujeitos processuais tenham o direito de impugnar todo e qualquer acto do juiz nas diversas fases processuais: a garantia do duplo grau existe quanto ás decisões penais condenatórias e também quanto às respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou a quaisquer outros direitos fundamentais (veja-se, neste sentido, o Acórdão nº 265/94, in
'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 27º V., pág. 751 e ss).
Embora o direito de recurso conste hoje expressamente do texto constitucional, o recurso continua a ser uma tradução das garantias de defesa consagradas no nº1 do artigo 32º (O processo criminal assegura todas as garantias de defessa, incluindo o recurso). Daí que o Tribunal Constitucional não só tenha vindo a considerar como conformes á Constituição determinadas normas processuais penais que denegam a possibilidade de o arguido recorrer de determinados despachos ou decisões proferidas na pendência do processo (v.g., quer de despachos interlocutórios, quer de outras decisões, Acórdãos nºs
118/90,259/88,353/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, nºs 15º,pg.397;
12º, pg.735 e 19º, pg.563, respectivamente, e Acórdão nº 30/2001, sobre a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação particular quando o Ministério Público acompanhe tal acusação, ainda inédito), como também tenha já entendido que, mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição, assim se garantindo a todos os arguidos a possibilidade de apreciação da condenação pelo STJ (veja-se, neste sentido, o Acórdão nº209/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º. V., pg. 553)
Uma tal limitação da possibilidade de recorrer tem em vista impedir que a instância superior da ordem judiciária accionada fique avassalada com questões de diminuta repercussão e que já foram apreciadas em duas instâncias. Esta limitação à recorribilidadade das decisões penais condenatórias tem, assim, um fundamento razoável.
7. – No caso em apreço, como se referiu, o recorrente entende que a interpretação feita na decisão recorrida, da alínea f) do nº1 do artigo 400º do CPP viola os artigos 13º, 20º e 32º da Constituição, uma vez que a lei atende apenas como patamar máximo para não admitir o recurso a condenação por crime a que seja aplicável pena não superior a 8 anos, mesmo que haja concurso de infracções.
O artigo 400º do CPP foi alterado pela Lei nº 59/98, de
25 de Agosto, diploma que veio introduzir modificações no processo penal e deu à alínea f) a redacção que ainda mantém. De acordo com a proposta de revisão do processo penal (Lei nº 157/VII, Diário da Assembleia da República, IIª Série-A, nº27, de 28 de Janeiro de 1998), as modificações introduzidas na legislação processual penal visavam obter melhorias nos objectivos de economia processual, de eficácia e de garantia, que já informavam a anterior regulamentação.
Assim, e nos termos da exposição de motivos daquela proposta de lei, introduziram-se modificações destinadas a dar mais consistência e eficácia aos meios disponíveis, de entre elas se assinalando as de maior relevo para o caso: pretendeu-se restituir ao STJ a função de tribunal que apenas conhece de direito, mas com excepções; manteve-se a tramitação unitária dos recursos, mas sem haver um único modelo de recurso; faz-se um uso discreto do princípio da «dupla conforme», harmonizando objectivos de economia processual com a necessidade de limitar a intervenção do STJ a casos de maior gravidade; retoma-se a ideia da diferenciação orgânica, apenas fundada no princípio de que os casos de pequena e média gravidade não devem, por norma, chegar ao Supremo Tribunal de Justiça, etc. (cf. Sobre esta matéria, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 12ª Edição, pg. 754).
A norma que vem questionada refere-se claramente à moldura geral abstracta do crime que preveja pena aplicável não superior a 8 anos: é este o limite máximo abstractamente aplicável, mesmo em caso de concurso de infracções que define os casos em que não é admitido recurso para o STJ de acórdão condenatórios das relações que confirmem a decisão de primeira instância.
Significa isto que o patamar a partir do qual a decisão da relação é irrecorrível é o que fixa em pena não superior a 8 anos a pena aplicável a determinado crime, independentemente de, no caso, terem sido várias as infracções cometidas em concurso. Relevante, para efeitos de
(in)admissibilidade de recurso é a pena aplicável ao crime cometido e não a soma das molduras abstractas de cada um dos crimes em concurso.
Como já se referiu, mesmo em processo penal, a Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer acto do juiz e, mesmo admitindo-se o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência, no processo penal, da exigência constitucional das garantias de defesa, tem de aceitar-se que o legislador penal possa fixar um limite acima do qual não seja admissível um terceiro grau de jurisdição: ponto é que, com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido.
Ora, no caso dos autos, o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido consiste no direito a ver o seu caso examinado em via de recurso, mas não abrange já o direito a novo reexame de uma questão já reexaminada por uma instância superior.
Existe, assim, alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso. No caso, o fundamento da limitação
– não ver a instância superior da ordem judiciária comum sobrecarregada com a apreciação de casos de pequena ou média gravidade e que já foram apreciados em duas instâncias – é um fundamento razoável, não arbitrário ou desproporcionado e que corresponde aos objectivos da última reforma do processo penal.
Tem, por isso de se concluir que a norma do artigo 400º, nº1, alínea f) do CPP não viola o princípio das garantias de defesa, constante do artigo 32º, nº1 da Constituição.
8. – Mas também não viola o princípio do acesso ao direito e à tutela judicial efectiva, constante do artigo 20º, nem o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º, ambos da Constituição.
De facto, o artigo 20º estabelece que 'a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos' e ainda que 'todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo' (nºs 1 e 4). Ora, no caso em apreço, a questão foi objecto de apreciação por duas instâncias, pelo que não se pode afirmar que tenha havido violação do preceito, uma vez que dele apenas resulta que o legislador terá de assegurar imperativamente e sem restrições o acesso a um grau de jurisdição.
Também quanto ao princípio da igualdade não foi violado uma vez que a limitação estabelecida na norma questionada não se afigura como arbitrária ou desproporcionada, sendo admissível desde que não atinja o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido que, como de referiu, não abrangem o direito ao exame de questão já reexaminada em duas instâncias.
Por último, importa referir que a situação paralela mencionada pelo recorrente – a do critério para fixação da competência dos tribunais para julgamento - não tem que ser invocado para apreciar a limitação a um triplo grau de jurisdição, uma vez que não se trata de situações essencialmente iguais que exijam tratamento igual. No caso do artigo 14º trata-se da distribuição da competência funcional e material entre o tribunal colectivo e o tribunal singular. No caso do artigo 400º, trata-se de uma limitação do direito de recurso cujos parâmetros e finalidades são inteiramente diferentes dos que subjazem á questão da distribuição de competência, pelo que não faz sentido invocar aqui o princípio da igualdade.
De acordo com o exposto, a norma da alínea f) do nº1 do artigo 400º do CPP não viola nem o artigo 13º nem o artigo 20º ou o artigo 32º, todos da Constituição da República Portuguesa, não sendo assim inconstitucional.
III – DECISÃO
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide julgar não inconstitucional a norma do artigo 400º, nº1, alínea f) do Código de Processo Penal e, em consequência, negar provimento ao presente recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 unidades de conta.
Lisboa, 3 de Maio de 2001 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida