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Proc. nº 397/2000
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. O Ministério Público junto do Tribunal Criminal da Comarca do Porto deduziu acusação contra T..., imputando-lhe a prática de sete crimes de emissão de cheque sem provisão, previstos e puníveis pelo artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro. A lesada, C..., SA, deduziu pedido cível, no montante de 12.134.754$00.
O Tribunal Criminal da Comarca do Porto, por sentença de 3 de Julho de 1998, julgou extinto o procedimento criminal, por força da descriminalização da conduta operada pelo Decreto-Lei nº 316/97, de 19 de Novembro, condenando a arguida a pagar à lesada uma indemnização no valor de 8.703.926$00, acrescida de juros.
2. T... interpôs recurso da sentença de 3 de Julho de 1998 para o Tribunal da Relação do Porto, sustentando nas respectivas alegações que a conduta da arguida, não constituindo crime em face do Decreto-Lei n.º 316/97, de
19 de Novembro, também não constituía crime em face do Decreto-Lei nº 454/91, de
28 de Dezembro, na redacção originária, pelo que não devia ter sido condenada no pagamento de indemnização cível.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 13 de Janeiro de
1999, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
3. T... interpôs recurso do acórdão de 13 de Janeiro de 1999 para o Supremo Tribunal de Justiça.
O recurso não foi admitido, por despacho de 10 de Fevereiro de 1999, nos termos do disposto nos artigos 6º, nº 2, da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, e
400º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal, na redacção anterior à conferida por aquela lei.
T... reclamou do despacho de 10 de Fevereiro de 1999, sustentando que o artigo 6º, nº 2, da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, tal como foi interpretado e aplicado no despacho reclamado, viola os artigos 32º, nº 1, e 20º da Constituição.
A reclamação foi deferida, por despacho de 5 de Junho de 1999. Porém, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 10 de Maio de 2000, decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso, em virtude de o mesmo ter sido interposto de decisão que não o admitia, nos termos dos artigos 6º, nº 2, da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, e 400º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal, na redacção anterior à conferida por aquela lei.
4. T... interpôs recurso do acórdão de 10 de Maio de 2000 para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 6º, nº
2, da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, e 400º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal, na redacção anterior à conferida por aquela lei.
Junto do Tribunal Constitucional a recorrente alegou, concluindo o seguinte:
1ª Através do presente recurso, pretende-se ver apreciada a questão da
(in)constitucionalidade das disposições conjugadas do n° 2 do artº 6° da Lei n°
59/98, de 25 de Agosto, e do art° 400º, n° 1, alínea d), do Código Penal de
1987, quando aplicadas com a interpretação e o alcance que lhes foi dado pelo Supremo, uma vez que, no entender da recorrente, elas violam o disposto no art°
3º, nº 1, da C.R.P., bem como o princípio constitucional consagrado no art° 20° da Lei Fundamental;
2ª As recentes alterações ao CPP em matéria de recursos demonstram que o legislador não terá deixado de considerar a iniquidade do regime anterior, uma vez que, em derradeira análise, não foi o princípio da realização da Justiça que justificara o regime da supressão do duplo recurso, mas apenas a declarada finalidade de diminuir o volume de trabalho dos tribunais superiores;
3ª Mas quando a questão se coloca em relação às consequências práticas da aplicação do regime do C.P.P. de 87, aos casos em que o recurso incide sobre matéria da sentença relativa à indemnização civil, é patente que as garantias defesa ficam ainda mais prejudicadas;
4ª Na verdade, estando o julgamento da matéria cível confiado aos tribunais de competência especializada criminal, mal seria se as garantias de recurso ficassem diminuídas nesta sede, relativamente ao regime previsto na lei civil, quando aqueles tribunais não estão dotados do mesmo nível de preparação técnico-jurídica que se reconhece aos tribunais de competência especializada cível, para a apreciação e julgamento das matérias próprias do direito civil e comercial;
5ª A questão da inconstitucionalidade do regime da limitação do direito de recurso a uma única instância é deste modo deslocada das normas do C.P.P. de 87 para a citada norma transitória do diploma que veio introduzir a reforma do Código;
6ª O problema já não é agora o da simples apreciação dos fundamentos ou do critério do legislador de 87 (que criou um regime de recursos assente, basicamente, numa
única possibilidade de impugnação das decisões judiciais desfavoráveis), mas sim o da situação concreta que decorre, para a recorrente, num processo já pendente de recurso à data da entrada em vigor da nova lei, que se vê impedida de beneficiar de um regime de duas instâncias de recurso, acabado de consagrar, em consequência de uma excepção prevista numa norma transitória dessa mesma lei.
7ª Por outras palavras, enquanto na vigência do Código de 87 se entendia que o regime de um único grau de recurso constituída uma limitação válida imposta pelo legislador ao direito de defesa de um arguido, com as alterações introduzidas pela nova lei veio declaradamente reconhecer-se que o regime anterior não assegurava, de forma efectiva, esse mesmo direito;
8ª Não terá sido por acaso que, na exposição de motivos da proposta de lei que o Governo apresentou à A.R., para a aprovação da cit. Lei n° 59/98, a propósito da caracterização do regime dos recursos no C.P.P. de 87, se afirmava que 'houve certamente a consciência de que o projecto se aproximava, em alguns capítulos, dos limites constitucionais';
9ª Como é evidente, estando hoje legalmente consagrado, para a hipótese dos autos, um sistema de duplo grau de recurso, constitui uma clara violação do princípio da igualdade (previsto no artº 13° da C.R.P.) o estabelecimento de uma excepção na aplicação desse regime aos processos que, à data da entrada em vigor da nova lei, já estivessem pendentes de recurso;
10ª Aliás, à data da entrada em vigor do novo regime, ele deve aplicar-se imediatamente a todos os processos pendentes, salvo se daí resultar uma limitação ao direito de defesa do arguido (o que não acontece na situação em análise), ou não for possível respeitar a harmonia e a unidade dos actos processuais decorrentes da pendência do recurso (o que também não era o caso) - cfr. artº 5° do C.P.P.;
11ª Isto significa que a norma do n° 2 do artº 6° da Lei n° 59/98 enferma de um vício de inconstitucionalidade, igualmente por violação das citadas disposições dos artºs 20° e 32°, n° 1, da C.R.P., na medida em que limita injustificadamente as garantias de defesa da recorrente e a impede de exercer a faculdade - entretanto consagrada na lei - de interpor recurso para o Supremo do acórdão da Relação do Porto;
12ª Acresce que o comando da referida norma resulta também na violação do princípio vertido no citado n° 1 do artº 5° do C.P.P., ao qual está sujeita em virtude da sua natureza 'paraconstitucional';
13ª Sendo assim, com a entrada em vigor da nova lei, toma-se agora forçoso concluir que o direito de defesa da recorrente se encontra limitado sem qualquer fundamento constitucionalmente relevante;
14ª Por isso é que a citada norma n° 1 do artº 6° da Lei n° 59/98, de 25 de Agosto, não pode deixar de se considerar inconstitucional (cfr. artº 277° da C.R.P.), quando interpretada no sentido em que, estando um processo pendente à data da entrada em vigor dessa lei, e tendo já sido interposto recurso da sentença, ela veio limitar injustificadamente o direito de o demandado civil recorrer para o Supremo do acórdão da relação que confirmou o julgado em primeira instância;
15ª E estando ferida do apontado vício de inconstitucionalidade, os Tribunais devem abster-se de a invocar ou de a aplicar;
16ª O douto acórdão de que agora se recorre vem precisamente fundamentado na disposição da referida norma, pelo que, apreciada que seja, como se espera, a inconstitucionalidade de tal normativo, quando interpretada no referido sentido, tudo se deve passar como se o mesmo não existisse;
17ª Ao caso dos autos caberá pois a regra do n° 1 do cit. artº 6° da Lei n° 59/98, onde expressamente se consignou - na linha do princípio vertido no art° 5°, n°
1, do C.P.P. - que 'as alterações ao Código de Processo Penal introduzidas pelo presente diploma são aplicáveis aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor'.
O Ministério Público contra-alegou, tirando as seguintes conclusões:
1° Não é inconstitucional a norma transitória constante do n° 2 do artigo 6° da Lei n° 59/98, de 25 de Agosto, enquanto considera aplicável a versão originária do Código de Processo Penal de 1987 aos recursos interpostos de decisões proferidas antes da entrada em vigor da nova versão do Código de Processo Penal.
2° Não viola qualquer preceito ou princípio constitucional a norma constante do artigo 400°, n° 1, alínea d) da versão originária do Código de Processo Penal, enquanto estabelece, relativamente aos recursos em processo de adesão, o princípio da recorribilidade em apenas um grau das decisões proferidas sobre a indemnização arbitrada ao lesado.
3° Termos em que deverá improceder o presente recurso.
Por último, a recorrida C..., SA, contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
1 - O n° 2 do artigo 6° da Lei 59/98, de 25 de Agosto conjugado com o artigo
400°, n° 1 alínea d) do Código de Processo Penal de 1987 quando aplicado com a interpretação que lhe foi dado pelo Supremo Tribunal de Justiça, não viola qualquer disposição constitucional.
2 - O n° 1 do artigo 32° da Constituição da República Portuguesa assegura as garantias de defesa no âmbito do direito criminal.
3 - No caso dos autos não estão em causa direitos penalmente protegidos mas tão somente uma indemnização de natureza cível.
4 - O artigo 20° da Constituição da República Portuguesa assegura o acesso por todos ao direito e ao tribunais para defesa dos seus direitos e interesse legítimos, prescreve ainda o princípio do direito a uma justiça célere.
5 - Jamais a Recorrente viu ao longo do presente processo limitado de qualquer forma o seu acesso ao direito e aos Tribunais.
6 - A interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça ao n° 2 do artigo 6° da Lei 59/98, de 25 de Agosto conjugado com o artigo 400°, n° 1 alínea d) do Código de Processo Penal, não violou, qualquer disposição constitucional.
Cumpre decidir.
II Fundamentação
5. Os preceitos impugnados têm a seguinte redacção: Artigo 400º do Código de Processo Penal
(Decisões que não admitem recurso)
1. Não é admissível recurso:
(...) d) De acórdãos das relações em recurso de decisões proferidas em primeira instância;
(...)
Artigo 6º da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto
1. As alterações ao Código de Processo Penal introduzidas pelo presente diploma são aplicáveis aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor.
2. Exceptuam-se do disposto no número anterior os processos em que tenha sido interposto recurso da sentença, nos termos do artigo 411º, nº 3, do Código de Processo Penal, os quais continuarão a reger-se pelas disposições anteriormente vigentes.
(...)
6. O Tribunal Constitucional já apreciou diversas vezes a questão que se relaciona com o sistema de recursos em matéria cível no processo penal
(cf. Acórdãos nºs 201/94 - D.R., II Série, de 20 de Maio de 1994; 548/94;
138/98, 722/98; e 429/99, inéditos). Anteriormente (nos arestos citados), o Tribunal Constitucional não apreciou a conformidade à Constituição do artigo
400º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal. No entanto, o Tribunal apreciou sempre nos Acórdãos mencionados, dimensões normativas de outros preceitos do Código de Processo Penal (artigo 400º, nº 2, articulado com os artigos 427º, 432º e 433º), nos termos dos quais o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça relativo à matéria cível no processo penal não é admitido, nos casos em que, se tal pedido corresse termos nos tribunais civis, seria admissível o recurso por força dos critérios de admissibilidade do recurso constante do Código de Processo Civil.
No Acórdão nº 429/99, depois de invocar a jurisprudência contida no Acórdão nº 201/94, o Tribunal Constitucional sublinhou o seguinte: Com efeito, ao sistema de adesão subjazem razões de economia processual, de uniformização de julgados (ou, dito de outro modo, de coerência entre a decisão civil e a decisão penal) e de celeridade processual (cf., sobre esta matéria, Jorge Ribeiro de Faria, Indemnização por perdas e danos arbitrada em processo penal - o chamado processo de adesão, 1978, p. 117 e ss; germano marques da silva, Direito processual penal , I, 1993, p. 254). Mas a apreciação num mesmo processo - no processo penal - da questão criminal e da questão civil funda-se, essencialmente, na existência de uma conexão entre os dois ilícitos, resultante da unidade do facto simultaneamente gerador de responsabilidade civil e de responsabilidade penal (cf. Jorge Ribeiro de Faria, ob.cit., p. 59 e ss., e Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º vol., 1974, p. 540 e ss., onde se refere como razão de ser do sistema de adesão a 'natureza tradicionalmente absorvente do facto que dá causa às duas acções'). É essa unidade que justifica um julgamento global do caso, fundamental para a coerência e racionalidade da decisão final. Ora, o julgamento no processo penal do pedido de indemnização civil implicará a aplicação a este último das regras do processo penal quanto a recursos, exactamente para obter os resultados de coerência e celeridade processual referidos. São alheias à lógica dos recursos em processo penal as regras de recurso do processo civil que se referem ao valor da acção. O facto de no processo penal prevalecer sobre a realização do interesse das partes uma dimensão, insusceptível de avaliação pecuniária, de reparação dos danos do crime, tanto no plano colectivo como no do ofendido, implica que a sujeição de uma causa ao processo penal, nomeadamente por opção do autor da queixa quanto ao pedido de indemnização civil (artigo 72º, nº 2, do Código de Processo Penal), tenha como consequência uma dimensão relativamente à qual não prevalece a afectação do sistema dos recursos pelo valor da alçada. Esta dimensão distinta do objecto processual condiciona, consequentemente, os critérios do respectivo sistema de recursos. Porém, estes critérios não se encontram questionados em si mesmos neste processo, mas apenas na medida em que, quanto ao pedido de indemnização civil, não são adoptados os critérios do valor da alçada. Assim, sob a pura perspectiva da igualdade, pela qual a recorrente pretende que seja apreciada a questão, não há, obviamente, qualquer tratamento diferenciado de situações idênticas. Com efeito, o pedido de indemnização civil deduzido no processo penal é processualmente tratado de modo idêntico à causa penal e sujeito aos seus critérios processuais de recurso, justificados pela dignidade pública da justiça penal. Nessa medida, não é legítima a pretendida identidade entre as duas situações, dado que existem razões justificadoras de um diferente tratamento, em razão do facto gerador de eventual responsabilidade civil ter natureza criminal.
Por outro lado, nesse aresto afirmou-se também o seguinte: Mas não é procedente invocar uma limitação dos direitos de defesa decorrente de a acção cível seguir termos no processo penal, em que se encontram asseguradas, na máxima plenitude, por imposição constitucional, as garantias de defesa. O facto de o sistema de recursos no processo penal obedecer a outros critérios não diminui as garantias de defesa relativamente ao processo civil. A perspectiva da recorrente, a ser aceita, implicaria a conclusão, sem qualquer fundamento constitucional, de que o sistema de recursos no processo penal seria menos garantístico para a defesa do que no processo civil, apesar de funcionar num processo penal, globalmente, mais garantístico do que o processo civil.
O Tribunal Constitucional, na jurisprudência citada, concluiu sempre pela não inconstitucionalidade das normas que fundamentam o recurso em matéria cível no processo penal por violação da igualdade, segundo as quais não será admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça relativo à matéria cível quando a questão penal não admita tal recurso, independentemente do valor da acção e da sua articulação com a alçada do tribunal.
É este o entendimento que agora também se seguirá, remetendo-se para a fundamentação dos arestos mencionados.
Conclui-se, pois, que o artigo 400º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal, na redacção originária, interpretado no sentido de não ser admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que, de acordo com o artigo 678º do Código de Processo Civil, seria admissível, não é inconstitucional.
7. A recorrente sustenta, porém, uma outra questão de constitucionalidade que tem por objecto a norma do artigo 6º, nº 2, da Lei nº
59/98, de 25 de Agosto. Tal questão consiste em saber se é uma diminuição de garantias constitucionalmente proibida o determinar-se a aplicação do direito anterior menos favorável (e segundo o recorrente inconstitucional por violação da igualdade relativamente ao processo civil), por este não permitir, pura e simplesmente, recorrer nos casos de acórdãos proferidos pelas Relações relativamente a recursos, quando, após a revisão do Código de Processo Penal de
1998, o recurso, em semelhantes casos, seria admissível. Com efeito, o recurso só é excluído no caso de acórdãos absolutórios [artigo 400º, nº 1, alínea d)] que confirmem decisões de primeira instância, permitindo-se, ainda, em todos os outros casos, um novo grau de recurso, embora fundamentalmente relacionado com a matéria de direito (artigo 434º do Código de Processo Penal)
Seria, assim, para o recorrente, uma inconstitucionalidade normativa o estabelecimento para os processos pendentes de um regime menos garantístico quando a lei processual nova veio atribuir uma outra amplitude ao direito de recurso (violação dos artigos 20º e 32º da Constituição). E será, também, uma violação da igualdade no tratamento de situações idênticas, a aplicação da lei antiga ou da nova conforme o momento da propositura da acção.
O recorrente coloca, assim, a questão da constitucionalidade normativa na perspectiva da violação das garantias de defesa e da igualdade.
A solução que vigorava antes da revisão de 1998 do Código de Processo Penal, quanto aos recursos penais e cíveis conexos, não estava, como se referiu, ferida de inconstitucionalidade na perspectiva da violação da igualdade
(tanto mais que se tratava de um tipo de casos em que nem sequer estava limitado o recurso em matéria de facto para a Relação). Na verdade, o artigo 400º, nº 1, alínea d), referia-se ao recurso para o Supremo de decisões da Relação (que em recurso conhecia da matéria de facto e de direito, nos termos do artigo 428º do Código de Processo Penal) proferidas em recursos de decisões, em primeira instância, do tribunal singular. Não são, pois, violadas as garantias de defesa pela aplicação do regime anterior ao da Lei nº 59/98, uma vez que esse regime não é inconstitucional, pelas razões invocadas.
No que se refere à violação da igualdade da própria norma de direito transitório, há que não confundir a violação de tal princípio com a necessária, natural e inerente, diferença de tratamento conferida por regimes legais que se sucedem no tempo. Se uma determinada solução normativa (não violadora da Constituição) for revogada por uma outra naturalmente diferente (também ela não inconstitucional), não se poderá sem mais afirmar que consubstancia uma violação do princípio da igualdade a circunstância de coexistirem situações às quais foi (e ainda é, na fase transitória) aplicável o regime antigo e situações às quais já se aplica o regime novo. Levado às últimas consequências, o argumento da recorrente implicaria que iniciada a vigência de uma reforma legislativa, ela teria de se aplicar a todas as situações apreciadas a que o regime anterior fosse aplicável. Ora, tal entendimento é insustentável, como já se demonstrou numa situação substancialmente idêntica à que agora se analisa (a então recorrente invocava também a violação do princípio da igualdade numa situação de sucessão de regimes legais). O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 580/99 (D.R., II Série, de 21 de Fevereiro de 2000), já teve oportunidade de afirmar o seguinte: Colocada a questão neste plano, importa ter presente que o legislador tem uma ampla liberdade no que respeita à alteração do quadro normativo vigente num dado momento histórico. Na verdade, o legislador, de acordo com opções de política legislativa tomadas dentro de uma ampla zona de autonomia, pode proceder às alterações da lei que se lhe afigurarem mais adequadas e razoáveis, tendo presente, naturalmente, os interesses em causa e os valores ínsitos na ordem jurídica. Uma alteração legislativa pode operar, consequentemente, uma modificação do tratamento normativo conferido a uma dada categoria de situações. Com efeito, as situações abrangidas pelo regime revogado são objecto de uma valoração diferente daquela que incidirá sobre as situações às quais se aplica a lei nova. Nesse sentido, haverá situações substancialmente iguais que terão soluções diferentes. Contudo, não se pode falar neste tipo de casos de uma diferenciação verdadeiramente incompatível com a Constituição. A diferença de tratamento decorre, como resulta do que se disse, da possibilidade que o legislador tem de modificar (revogar) um quadro legal vigente num determinado período. A intenção de conferir um diferente tratamento legal à categoria de situações em causa é afinal a razão de ser da própria alteração legislativa. O entendimento propugnado pela recorrente levaria à imutabilidade dos regimes legais, pois qualquer alteração geraria sempre uma desigualdade. Ora, tal posição não é reclamável pelo princípio da igualdade no quadro constitucional vigente.
Assim, o critério constante do artigo 6º, nº 2, da Lei nº 59/98, de
25 de Agosto, não é arbitrário ou desprovido de racionalidade. Pelo contrário, e diferentemente do que sustenta a recorrente, esse critério tem uma finalidade evidente que consiste precisamente em obstar à quebra de harmonia e unidade dos vários actos do processo [cf. artigo 5º. nº 2, alínea b), do Código de Processo Penal], determinando a aplicação, nos processos pendentes, do regime relativo à admissibilidade dos recursos vigente no momento em que foi interposto recurso por declaração na acta (tal recurso será, então, admissível ou não em função do regime vigente na data da sua interposição).
A norma em apreciação não viola, nesta medida, o princípio da igualdade.
Improcedem, pois, os argumentos da recorrente, nesta parte.
8. Mas à questão da constitucionalidade suscitada pela recorrente subjaz um problema (que se encontra manifestamente implícito nas alegações produzidas), que importa agora afrontar.
De acordo com a perspectiva da recorrente (perspectiva essa pressuposta pela decisão recorrida), o recurso que não era admissível em face do artigo 400º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal, na versão originária. Sê-lo-ia à luz da redacção conferida a esse preceito pela Lei nº 59/98.
Colocada a questão nestes termos, é legítimo suscitar o problema de saber se não se deverá submeter ao disposto no artigo 29º, nº 4, in fine, da Constituição, este tipo de casos, aplicando-se, então, obrigatoriamente o regime mais favorável ao arguido (a recorrente aflora, dir-se-ia tacitamente, esta questão, invocando o artigo 5º do Código de Processo Penal). Estará, assim, posto em causa, por eventual violação do artigo 29º, nº 4, in fine, da Constituição, o próprio critério de aplicação da lei no tempo, constante do mencionado artigo 6º, nº 2, da Lei nº 59/98.
A esta hipótese poder- se- ia, desde logo, objectar com a circunstância de a matéria em questão respeitar ao processo penal, enquanto o artigo 29º, nº 4, da Constituição, apenas se referir ao direito penal substantivo.
Uma tal visão do problema não pondera, porém, que existem normas processuais penais materiais que, assim como as normas de direito penal, também afectam os direitos fundamentais. É o caso paradigmático das normas relativas à prisão preventiva, mas é também, segundo alguma doutrina, o caso das normas referentes aos graus de recurso, na medida em que conferem (ou não) possibilidades acrescidas de o arguido ver o seu caso reapreciado e decidido em sentido favorável (cf., quanto a este aspecto, Taipa de Carvalho, Sucessão de leis penais, 2ª ed. revista, 1997, p. 260 e ss., onde esse Autor autonomiza as normas processuais penais formais das normas processuais penais materiais; cf, também, Jorge de Figueiredo Dias, Direito processual penal, lições coligidas por Maria João Antunes, 1988, p. 80 e ss, em que o Autor afasta a possibilidade de recurso à analogia no direito processual penal 'na medida imposta pelo conteúdo de sentido do princípio da legalidade e, portanto, sempre que o recurso venha a traduzir-se num enfraquecimento da posição ou numa diminuição dos direitos processuais do arguido').
Relativamente às normas processuais penais que afectam (ou que são susceptíveis de afectar) direitos fundamentais poderá existir, assim, justificação para a aplicação do princípio de imposição da retroactividade da lei penal mais favorável. Os princípios da necessidade e da intervenção mínima do Direito, no que respeita à limitação dos direitos, liberdades e garantias
(artigo 18º, nº 2, da Constituição), decorrente do princípio geral da liberdade, e ainda o princípio da igualdade, subjacentes à solução da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, poderão justificar, também, a aplicação de tal regra constitucional no âmbito das denominadas normas processuais penais materiais, uma vez que aí está igualmente em causa a tutela de direitos, liberdades e garantias (cf. Taipa de Carvalho, ob.cit., p. 101 e ss.).
Independentemente da solução adoptada quanto ao problema anteriormente referido, na decisão do caso dos autos, importa ter presente o seguinte: a recorrente não interpôs recurso na qualidade de arguida, mas sim na qualidade de demandada e condenada em matéria cível, pois a questão penal, nos presentes autos, fora já definitivamente decidida; a recorrente pretende agora, apenas, a reapreciação da questão cível.
Ora, as partes civis beneficiam, como se disse supra, do maior garantismo do processo penal no que respeita à defesa e prova dos factos, não sendo a sua posição prejudicada relativamente ao processo civil. Porém, tal benefício do processo de adesão não as transfigura em sujeitos de processo penal em sentido próprio, para todos os efeitos, nomeadamente para o efeito de aplicação das garantias constitucionais específicas do direito penal e do direito processual penal material. Esse mesmo benefício resulta apenas da circunstância de a questão em apreciação no processo penal (a mesma que fundamenta o pedido cível) ser objecto de toda uma tramitação processual, cujo maior garantismo global se repercute (por via de um princípio de aquisição, inerente ao princípio da adesão) nas condições de apreciação e de decisão da dimensão cível do objecto do processo. Tal não significa, porém, como já se disse, que as partes civis assumam plenamente o estatuto de sujeitos do processo penal. Na verdade, a auto-limitação do poder legislativo e a garantia de igualdade relativamente à interferência em direitos fundamentais do arguido que explica a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável não é de igual modo justificada e exigida pela matéria da reparação de danos civis (cf., quanto ao fundamento da aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, José de Sousa e Brito, A lei penal na Constituição, Estudos sobre a Constituição, 2º vol., 1978, p. 254; Maria Fernanda Palma, Direito penal, parte geral, 1994, pp. 129 a 137; e Claus Roxin, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 3ª edição, 1997, p. 122 e ss).
Assim, não poderá a parte civil invocar, enquanto tal, uma prerrogativa só susceptível de ser reconhecida, desde logo em termos constitucionais, ao arguido, enquanto tal.
Desse modo, também nesta perspectiva, não se verifica a inconstitucionalidade do artigo 6º, nº 2, da Lei nº 59/98.
III Decisão
9. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 18 de Abril de 2001 Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Bravo Serra (com a declaração de que não subscrevo na sua integralidade o ponto
8. Do presente acórdão) José Manuel Cardoso da Costa