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Processo n.º 710/2000 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O MUNICÍPIO DE GUIMARÃES interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 20 de Junho de 2000, que rejeitou o recurso contencioso de anulação que ele interpôs dos actos que identifica como segue:
(a). 'acto administrativo da criação do município de Vizela' e 'acto administrativo que dela promana ou é consequente da criação da comissão instaladora, praticados pela ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA e constantes da Lei n.º
63/98, de 1 de Setembro';
(b). 'acto administrativo do CONSELHO DE MINISTROS de nomeação da Comissão Instaladora do Município de Vizela, da designação do seu Presidente e da atribuição dos seus poderes e competências', constante da Resolução n.º 161-A/98
(2ª série), publicada no Diário da República, II série, de 6 de Outubro de 1998.
O MUNICÍPIO RECORRENTE, na resposta ao convite que o relator lhe fez para indicar, entre o mais, 'as normas legais que pretende ver apreciadas ratione constitutionis, devendo, no caso de questionar a constitucionalidade de determinada interpretação de certos preceitos legais, enunciar essas interpretações de forma clara e perceptível, em termos de este Tribunal, se, acaso, as vier a julgar incompatíveis com a Constituição, as poder enunciar na decisão a proferir como sentidos (ou interpretações) com que esses normativos não podem ser aplicados pelo tribunal recorrido, nem pelos operadores jurídicos, por serem violadoras da Constituição', começou por identificar como 'normas usadas pelo acórdão recorrido', sem mais especificações, as seguintes:
(a). a norma do artigo 16º, n.º 2, da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (LOSTA); e b). a norma do artigo 4º, n.º 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF). Nessa resposta, o MUNICÍPIO RECORRENTE acrescentou, 'em conclusão', que 'a interpretação dada às normas citadas [reportava-se às normas dos referidos artigos 16º, n.º 2, e 4º,.n.º 1, alínea a)] (...) fere o artigo 268º, n.º 4, da Constituição'. E, depois de referir que 'o acórdão recorrido [...] afronta manifestamente todas as normas constitucionais citadas', termina pedindo que se dê provimento ao recurso, 'julgando-se inconstitucional, por violação do artigo
268º, n.º 4, da Constituição da República, a interpretação dada pelo acórdão recorrido ao artigo 57º, § 4º, do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo
(RSTA), ao artigo 4º, n.º 1, alínea a), Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e ao artigo 16º, n.º 2, da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (LOSTA), no sentido de que estes impedem a apreciação contenciosa do acto de criação de um município – no caso consubstanciado na Lei 63/98, de 1 de Setembro, e na Resolução 161-A/98 do Conselho de Ministros, publicada no Diário da República, II série, de 6 de Outubro de 1998'.
O MUNICÍPIO RECORRENTE, no que se refere à questão de constitucionalidade das normas acabadas de indicar (e só isto aqui importa, e não também o que diz respeito aos vícios assacados aos actos impugnados no recurso contencioso), concluiu como segue a alegação que apresentou neste Tribunal:
1ª. Os referidos actos [reporta-se aos actos impugnados no recurso contencioso] relevam da função administrativa, estando subordinados à lei ordinária, não são actos políticos ou de governo ou, pelo menos, não são actos essencialmente políticos.
2ª. Quer se adira doutrinalmente à doutrina da 'listagem dos actos de governo', que entre nós não se fez – quer se opte pela qualificação jurídica que define esses actos genericamente como aqueles que derivam directamente da actividade resultante do exercício de competências constitucionalmente atribuídas – como, face à ausência daquela listagem, entre nós tem de suceder – não tem natureza política o acto de criação de um município, pois essa criação não deriva directamente da Constituição, mas da lei ordinária, tenha ou não valor reforçado.
3ª. Os 'actos de governo' só podem estar subtraídos ao controle dos tribunais quando tiverem carácter 'essencialmente político', devendo estar submetidos ao controle da jurisdição contenciosa, designadamente do Tribunal Constitucional, quando se devam subordinar à lei ordinária.
4ª. O artigo 57º, § 4º, do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo
(RSTA), ao aludir a 'manifesta ilegalidade do recurso' não pode ser interpretado no sentido de impedir a apreciação contenciosa de 'actos de governo' cujo conteúdo não seja essencialmente político, como sucede com os que aqui analisamos.
5ª. De facto, os actos recorridos não podem considerar-se 'actos praticados no exercício da função política' nos termos e para os efeitos do artigo 4º, n.º 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), não sendo admissível, tão-pouco no domínio dos princípios, atingir-se uma solução – como aquela a que se chega através do acórdão recorrido – em que os corpos administrativos ficariam desprotegidos e desarmados contra o arbítrio do governo ou do parlamento.
6ª. Deve considerar-se ferida de inconstitucionalidade material, por violação do artigo 268º, n.º 4, da Constituição, qualquer tentativa de subtrair à apreciação contenciosa os 'actos administrativos com móbil político', pelo menos aqueles que não sejam de conteúdo essencialmente político, como é o caso dos actos impugnados, por pretensamente se enquadrarem na delimitação negativa de competência estabelecida pelo artigo 4º, n.º 1, alíneas a) e b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e pelo artigo 16º, n.º 2, da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (LOSTA).
7ª. O acórdão recorrido, ao rejeitar os recursos interpostos contra aqueles actos, por entender, embora sem o dizer expliciter, que eles não são consentidos pelo artigo 57º, § 4º, do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (RSTA) e pelo artigo 4º, n.º 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), pelo artigo 16º, n.º 2, da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (LOSTA), afronta manifestamente todas as normas constitucionais citadas e designadamente furta esses actos à tutela jurisdicional efectiva, denegando o direito do recorrente à impugnação de actos administrativos lesivos dos seus direitos e interesses, pelo que a interpretação dada a essas normas excluindo a possibilidade de distinção para tal efeito de 'actos políticos' em relação a 'actos essencialmente políticos', viola ainda o artigo 268º, n.º 4, da Constituição [...].
8ª. Nestes termos [...] deve conceder-se provimento ao recurso, julgando-se inconstitucional, por violação do artigo 268º, n.º 4, da Constituição da República, a interpretação dada pelo acórdão recorrido aos artigos 57º, § 4º, do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (RSTA), ao artigo 4º, n.º 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e ao artigo 16º, n.º 2, da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (LOSTA), no sentido de que estes impedem a apreciação contenciosa dos actos recorridos consubstanciados na Lei 63/98, de 1 de Setembro, e na Resolução 161-A/98 do Conselho de Ministros, publicada no Diário da República, II série, de 6 de Outubro de 1998.
O PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, na sua alegação, começou por suscitar a questão prévia do não conhecimento do recurso, argumentando que, no caso, «ao recorrente estava ainda aberta a porta do recurso jurisdicional para o Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo», já que
«a decisão impugnada não versou sobre 'conflito de competência'». Acrescentou que talvez 'pudesse ainda questionar-se a legitimidade/representatividade da entidade recorrente neste processo', perguntando-se sobre a existência de
'lesividade de interesses, na perspectiva da população e do território anteriormente à Lei n.º 63/98 e após a sua vigência'; e dizendo, quanto à representatividade, que a Câmara Municipal de Guimarães não se encontra 'directa e formalmente habilitada pela Assembleia Municipal, que é o órgão intrínseca e organicamente representativo dos munícipes (de todos eles, inclusive dos que pela Lei n.º 63/98 deixaram de pertencer ao concelho de Guimarães)'. Disse, depois, que «a natureza da competência constante do artigo 161º, alínea c), da Constituição da República é 'política e legislativa'», «o que só por si seria bastante para confirmar a bondade da solução acolhida pelo acórdão recorrido». E concluiu como segue:
1. Deverá, na procedência das questões prévias, ser o recurso rejeitado; ou
2. A conhecer-se do objecto do mesmo, deverá julgar-se improcedente, por ser pacífico que o recurso interposto para o Supremo Tribunal Administrativo não incidiu sobre acto cujo conhecimento caiba à jurisdição administrativa, e porque não se verificou vício de violação de norma constitucional. O PRIMEIRO MINISTRO, na sua alegação, depois de suscitar a questão do não conhecimento do recurso, acrescentou que 'o acto pelo qual se procede à criação de um município, enquanto acto relativo à organização política do Estado (com a valoração que o Poder Local tem na Constituição de 76), é um acto que se insere inequivocamente no exercício da função política'. A questão do não conhecimento do recurso sintetizou-a o PRIMEIRO MINISTRO como segue:
1. O presente recurso deve ser rejeitado por carência de objecto no que diz respeito à interpretação que levou à rejeição do recurso contencioso de anulação relativo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 161-A/98, publicada em 6 de Outubro, porquanto a rejeição do recurso quanto a este acto nada teve a ver com a sua qualificação – incontestavelmente integrado no exercício da função administrativa – mas antes com a constatação da ausência do pressuposto processual legitimidade activa não se descortinando aplicação de norma inconstitucional.
2. O presente recurso também deve ser rejeitado por não se encontrar presente o pressuposto previsto nos artigos 280º/1/b) da Constituição e 70º/1/b) da Lei do Tribunal Constitucional, uma vez que não foi suscitada, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma agora questionada [refere-se à norma constante do artigo 4º, n.º 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais].
3. Finalmente, o presente recurso deve ser rejeitado por carência de objecto tendo em conta que não se dirige a uma norma mas antes a um acto judicial, ou seja, o raciocínio subjacente ao presente recurso é um raciocínio de censura da
'ratio decidendi' subjacente ao acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de
20 de Junho de 2000, e não de oposição à aplicação de uma norma reputada inconstitucional e, enquanto tal, posta em causa nos autos de recurso contencioso de anulação. Termos em que deve o presente recurso ser rejeitado.
O RECORRENTE foi ouvido sobre as questões prévias suscitadas pelos recorridos. Reportando-se apenas à alegação do Presidente da Assembleia da República, o recorrente disse, em síntese, o seguinte:
(a). que, «mesmo quando a interposição directa do recurso para o Tribunal Constitucional se não devesse interpretar como renúncia tácita ao recurso ordinário [...] certo é que, interposto este recurso, aliás recebido sem qualquer reparo, e havendo já decorrido o prazo do recurso ordinário, deve ter-se por preenchido o requisito 'exaustão do recurso ordinário'»;
(b). que suscitou, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade da Lei n.º 63/98;
(c). que o recorrente é o Município de Guimarães, e não a respectiva Câmara Municipal, não tendo a respectiva Assembleia Municipal 'competência, nem legitimidade, nem representatividade para intentar acções em nome do Município'.
2. Cumpre decidir. E decidir, antes de mais, se deve conhecer-se do recurso.
II. Fundamentos:
3. A questão do conhecimento do recurso:
3.1. Para decidir a questão de saber se deve ou não conhecer-se do recurso, importa começar por resumir o caso dos autos, o qual, no que para este efeito importa, pode sintetizar-se assim:
(a). A Assembleia da República, através da Lei n.º 63/98, de 1 de Setembro, criou o município de Vizela, com sede em Vizela, que ficou a pertencer ao distrito de Braga (artigo 1º, n.º 1) e a ser constituído pelas freguesias indicadas no seu artigo 2º.
(b). Com vista à instalação dos órgãos do município de Vizela, foi também criada uma comissão instaladora (artigo 3º, n.º 1), composta por cinco membros designados pelo Governo (artigo 3º, n.º 2), a este cabendo também designar, de entre os membros da comissão, o presidente da mesma (artigo 3º, n.º 3).
(c). O Conselho de Ministros, através da Resolução n.º 161-A/98 (2ª série), de
24 de Setembro de 1998 (publicada no Diário da República, II série, de 6 de Outubro de 1998), designou os membros da comissão instaladora criada pela Lei n.º 63/98, de 1 de Setembro, com indicação do respectivo presidente (n.º 1 da Resolução), e definiu os poderes deste (n.º 2).
(d). Foi na sequência da publicação da Lei n.º 63/98, de 1 de Setembro, e da Resolução n.º161-A/98 (2ª série), de 24 de Setembro de 1998, que o município recorrente interpôs o recurso contencioso de anulação de que emergiu o presente recurso de constitucionalidade.
(e). O Ministério Público, a folhas 96 a 98 dos autos, promoveu que o recurso contencioso de anulação fosse rejeitado, 'por manifesta ilegalidade na respectiva interposição (artigo 57º, § 4º, do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo)'.
(f). O município recorrente, notificado desse parecer, disse, inter alia, que
'deve considerar-se ferida de inconstitucionalidade material por violação do artigo 268º, n.º 4, da Constituição qualquer tentativa de subtrair à apreciação contenciosa os actos administrativos com móbil político, como é o caso dos actos impugnados, por pretensamente se enquadrarem na delimitação negativa de competência estabelecida pelo artigo 4º, n.º 1, alíneas a) e b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e pelo artigo 16º, n.º 2, da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo' (cf. fls. 100 a 104).
(g). O acórdão recorrido rejeitou o recurso contencioso de anulação, por ilegalidade, com a seguinte fundamentação: o acto de criação do município de Vizela e da respectiva comissão instaladora 'relevam das funções política e legislativa, sendo a primeira exercida através da segunda', por isso que, 'nos termos do artigo 4º, n.º 1, alíneas a) e b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais', estão tais actos 'excluídos da jurisdição administrativa'. Quanto ao n.º 1 da mencionada Resolução n.º 161-A/98 – sublinhou o Tribunal recorrido –, o município recorrente 'não detém [...] qualquer interesse directo, pessoal e legítimo em tal invalidade, por outras palavras, não possui legitimidade activa para o efeito'; e quanto ao n.º 2 da mesma Resolução – ponderou o aresto –, trata-se de um 'regulamento emanado do Governo, susceptível de ser impugnado através do pedido de declaração de ilegalidade', 'mas se acaso se tratasse de acto administrativo, então o município recorrente não tem legitimidade para o recurso nos termos que atrás foram apontados relativamente ao n.º 1 da Resolução em causa'.
3.2. Prosseguindo, sublinha-se que a Constituição e a lei apenas cometem ao Tribunal o controlo da constitucionalidade de normas jurídicas, e não também o da avaliação da conformidade com a Constituição de actos de outra natureza. Por isso, nos recursos para si interpostos de decisões de outros tribunais, ele não pode ir ajuizar se a própria decisão impugnada ou os actos cuja legalidade se discuta no processo de que emergiu o recurso, acaso, violam a Lei Fundamental.
Vale isto por dizer que, no presente caso, o Tribunal não pode decidir se o acórdão recorrido (ou os actos que foram contenciosamente impugnados perante o Supremo Tribunal Administrativo) violam ou não a Constituição.
Ora – recorda-se –, as normas jurídicas que o recorrente impugna neste recurso são a do artigo 57º, § 4º, do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo
(RSTA); a do artigo 4º, n.º 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF); e a do artigo 16º, n.º 2, da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (LOSTA).
Só que, tal como o Primeiro Ministro sustenta na sua alegação, o recorrente, antes de proferido o acórdão recorrido, não suscitou a inconstitucionalidade do
§ 4º do artigo 57º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (RSTA). E pôde fazê-lo, pois o Ministério Público, a cujo parecer o recorrente pôde responder – e ao qual, efectivamente, respondeu – invocou, justamente, essa norma para sustentar a rejeição do recurso, em virtude de, em seu entender, ser manifesta a ilegalidade da respectiva interposição [cf. 3.1., alíneas e) e f)].
Por isso, se nada mais houvesse que impedisse o conhecimento do recurso, sempre faltaria, relativamente a este artigo 57º, § 4º, o pressuposto da suscitação da sua inconstitucionalidade, durante o processo [cf. os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional].
Quanto à norma do artigo 16º, n.º 2, da Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo (LOSTA), constante do Decreto-Lei n.º 40.768, de 8 de Setembro de
1956, mesmo que nada mais obstasse ao conhecimento do recurso, também o Tribunal dele não poderia conhecer nessa parte, uma vez que ela não foi aplicada pelo acórdão recorrido, nem podia sê-lo, pois esse normativo – que prescreve que 'não são susceptíveis de recurso contencioso' '[...] os actos de governo de conteúdo essencialmente político' – foi revogado pelo artigo 121º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, como, de resto, sustentam, na sua alegação, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro Ministro [No sentido de que este artigo se acha revogado, cf. SANTOS BOTELHO, Contencioso Administrativo. Anotado. Comentado. Jurisprudência, Coimbra, 1995, páginas 389 e 391].
Por conseguinte, se outro obstáculo processual não houvesse, o Tribunal, apenas poderia conhecer da questão de constitucionalidade que tem por objecto a norma constante do artigo 4º, n.º 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), interpretado 'no sentido de que [ele] impede a apreciação contenciosa do acto de criação de um município'. E isto, porque
(contrariamente ao que sustenta o Primeiro-Ministro) deve entender-se que essa questão de inconstitucionalidade foi suscitada, durante o processo, embora o tenha sido em termos não muito adequados, pois o modo de dizer utilizado pelo recorrente [cf. supra, 3.1., alínea f)] podia deixar dúvidas sobre se ele queria, verdadeiramente, suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa. Ao que acresce que a própria alegação de recurso não é muito conclusiva a tal respeito (cf., especialmente, as conclusões 6 e 7). Simplesmente, a interpretação apontada foi a que o recorrente indicou na resposta ao convite que o relator lhe fez para aperfeiçoar o requerimento de interposição do recurso. E foi com essa interpretação que o acórdão recorrido a aplicou, por entender que esse acto (o acto de criação de um município) 'releva das funções política e legislativa, sendo a primeira exercida através da segunda', por isso que, 'nos termos do artigo 4º, n.º 1, alíneas a) e b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais', esteja 'excluído da jurisdição administrativa'.
Mas foi só com essa interpretação que o acórdão recorrido aplicou o dito artigo
4º, n.º 1, alíneas a) e b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, pois, como decorre do que se disse atrás [supra 3.1., alínea g)] e o Primeiro-Ministro sustenta na sua alegação, a rejeição do recurso contencioso de anulação, na parte em que ele tinha por objecto o acto constante da Resolução do Conselho de Ministros n.º 16-A/98 (2ª série), publicada no Diário da República, II série, de 6 de Outubro de 1998, não se fundou nesse mencionado artigo 4º, n.º
1, alínea a), mas, antes e desde logo, no entendimento de que o recorrente carecia de legitimidade para impugnar contenciosamente tal acto.
Deve, assim, entender-se que o recorrente suscitou, durante o processo, a inconstitucionalidade do artigo 4º, n.º 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), interpretado 'no sentido de que [ele] impede a apreciação contenciosa do acto de criação de um município'. Não procede, por isso, a questão prévia de não conhecimento do recurso, nesta parte, pelo fundamento invocado pelo Primeiro Ministro, ou seja, com o fundamento de que a questão de inconstitucionalidade, que tem aquele normativo por objecto, não foi suscitada durante o processo.
3.3. Como o acórdão recorrido aplicou aquele artigo 4º, n.º 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), interpretado 'no sentido de que [ele] impede a apreciação contenciosa do acto de criação de um município', cuja inconstitucionalidade o recorrente suscitou durante o processo, cabe, então, perguntar se o Tribunal deve conhecer do recurso nessa parte.
Formula-se a pergunta, porque, como se deixou dito atrás, o Presidente da Assembleia da República, suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso, alegando que, no caso, «ao recorrente estava ainda aberta a porta do recurso jurisdicional para o Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo», já que «a decisão impugnada não versou sobre
'conflito de competência'».
Tem razão o Presidente da Assembleia da República, como vai ver-se.
De facto, os recursos previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (é dizer: os recursos fundados em que determinado tribunal aplicou como ratio decidendi da decisão recorrida uma norma, cuja inconstitucionalidade o recorrente suscitou durante o processo) 'apenas cabem de decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam' (excepção feita, naturalmente, aos recursos 'destinados a uniformização de jurisprudência'). E, para este efeito, entende-se que se acham esgotados todos os recursos ordinários, 'quando tenha havido renúncia, haja decorrido o respectivo prazo sem a sua interposição ou os recursos interpostos não possam ter seguimento por razões de ordem processual' (cf. o dito artigo 70º, nºs 2 e 4). Pois bem: dos 'acórdãos proferidos em recurso directamente interposto para a Secção que não sejam da competência do Plenário' cabe recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo [cf. o artigo 24º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais]. Tal recurso para o Pleno só não é admissível de acórdãos que decidam 'em segundo grau de jurisdição' ou 'sobre conflitos de jurisdição ou de competência' (cf. artigo 104º, n.º 1, da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos). Ora, no presente caso, o acórdão recorrido rejeitou o recurso contencioso de anulação, por ilegalidade, com a seguinte fundamentação: o acto de criação do município de Vizela e da respectiva comissão instaladora 'relevam das funções política e legislativa, sendo a primeira exercida através da segunda', por isso que, 'nos termos do artigo 4º, n.º 1, alíneas a) e b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais', tais actos estão 'excluídos da jurisdição administrativa'. Quanto ao n.º 1 da mencionada Resolução n.º 161-A/98 – sublinhou o Tribunal recorrido –, o município recorrente 'não detém [...] qualquer interesse directo, pessoal e legítimo em tal invalidade, por outras palavras, não possui legitimidade activa para o efeito'; e quanto ao n.º 2 da mesma Resolução – ponderou o aresto –, trata-se de um 'regulamento emanado do Governo, susceptível de ser impugnado através do pedido de declaração de ilegalidade', 'mas se acaso se tratasse de acto administrativo, então o município recorrente não tem legitimidade para o recurso nos termos que atrás foram apontados relativamente ao n.º 1 da Resolução em causa' [cf. supra, 3.1., alínea g)].
Vale isto por dizer que o aresto sob recurso, no ponto em que, para rejeitar o recurso contencioso de anulação, se fundou no mencionado artigo 4º, n.º 1, alínea a), o que decidiu foi que o acto de criação de um município está excluído da jurisdição administrativa. Não decidiu, porém, sobre nenhum 'conflito de jurisdição ou de competência'.
Acontece que o recorrente não renunciou ao recurso para o Pleno e, quando, em 5 de Julho de 2001, interpôs o presente recurso de constitucionalidade, ainda se não tinha esgotado o prazo para interpor aquele outro recurso: de facto, como o acórdão recorrido (de 20 de Junho de 2000) lhe foi notificado por carta registada de 28 de Junho de 2000 (4ª feira), a notificação deve considerar-se feita no dia 1 de Julho de 2000 (sábado), pelo que o prazo de dez dias para interpor o recurso para o Plenário começou a correr no dia 3 de Julho de 2000
(2ª feira), só terminando, por isso, no dia 13 desse mesmo mês e ano (cf. o artigo 102º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, conjugado com os artigos 685º, n.º 1, 143º, nºs 1 e 2, 144º, n.º 1, e 254º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Aliás, o recorrente também não contesta que o acórdão recorrido ainda admitisse recurso ordinário. O que diz é que, «mesmo quando a interposição directa do recurso para o Tribunal Constitucional se não devesse interpretar como renúncia tácita ao recurso ordinário [...] certo é que, interposto esse recurso, aliás recebido sem qualquer reparo, e havendo já decorrido o prazo do recurso ordinário, deve ter-se por preenchido o requisito 'exaustão do recurso ordinário'».
Simplesmente, o recorrente não tem razão quando tal sustenta. Na verdade, atento o teor do artigo 70º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional, a interposição do recurso de constitucionalidade dentro do prazo destinado à interposição do recurso ordinário não vale – e, por isso, não pode ser interpretada – como renúncia tácita a este último recurso. A renúncia de que o preceito fala só pode ser uma renúncia expressa, pois só desse modo se compreende que os recursos ordinários se considerem esgotados, tanto quando
'tenha havido renúncia' aos mesmos, como quando 'haja decorrido o respectivo prazo sem a sua interposição'. Acresce que o facto de ter, entretanto, decorrido o prazo para a interposição do recurso ordinário não é suficiente para, como pretende o recorrente, se dever ter «por preenchido o requisito [da] 'exaustão do recurso ordinário'». Isso só seria assim, se o recurso de constitucionalidade apenas tivesse sido interposto depois de transcorrido o prazo para a interposição daqueloutro recurso (embora, obviamente, dentro do prazo destinado
à sua própria interposição). Por último, é irrelevante que o recurso de constitucionalidade tenha sido 'recebido sem qualquer reparo', pois a decisão que o admitiu não vincula este Tribunal, e as partes podem impugná-la nas suas alegações (cf. o artigo 76º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional).
Procede, pois, esta questão prévia suscitada pelo Presidente da Assembleia da República.
Em conclusão: não tendo havido exaustão dos recursos ordinários que no caso cabiam, não pode conhecer-se do recurso interposto (cf. o n.º 2 do citado artigo
70º).
4. Uma nota final: Uma vez que procede a questão prévia de não conhecimento do recurso, fundada na inexistência de exaustão dos recursos ordinários que no caso cabiam; e o Presidente da Assembleia da República não sustentou, propriamente, a ilegitimidade do recorrente, nem a irregularidade da representação, limitando-se a levantar tais questões; seria inútil ir decidir se, no caso, e como ele sugere, falta 'legitimidade/representatividade da entidade recorrente neste processo'.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do recurso interposto.
Lisboa, 9 de Maio de 2001 Messias Bento Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida