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Processo n.º 151/11
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é reclamante A.e reclamado o Ministério Público, o primeiro reclamou, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho de 18 de Janeiro de 2011 que não admitiu recurso para o Tribunal Constitucional.
2. O reclamante recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa da sentença de 1ª instância que o tinha condenado numa pena de quinze meses de prisão, concluindo o seguinte:
«Chegados aqui entendemos que a pena de quinze meses é desproporcional ao caso concreto e deverá por V.Exas. ser reduzida para os 8 meses de prisão e neste caso substituída por prisão por dias livres previsto no artigo 45º do CP.
Nestes termos e em conclusão o tribunal devia ter dado como provado que o arguido tem a seu cargo dois filhos menores de idade e padece de uma deficiência física grave, pelo que devia ter aplicado a pena prevista no artigo 44º nº 2 do CP que acabou por violar, e em todo o caso reduzir a mesma para os 8 meses de prisão, o que não fez pelo que devera a douta sentença recorrida ser substituída por outra, nos termos sobreditos assim se fazendo a sã e costumada Justiça!»
3. O Tribunal da Relação de Lisboa concedeu provimento parcial ao recurso, revogando a sentença recorrida quanto à pena aplicada e condenando o recorrente numa pena de oito meses de prisão.
Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional para apreciação:
«da norma do artigo 44º nº 2 do CP quando interpretado normativamente no sentido de que no cumprimento da pena, entre a opção do seu cumprimento na habitação ou na prisão, as finalidades da punição prevalecem à doença ou às deficiências graves do ser humano, por violação do artigo lº e 32º nº 1 da nossa Lei Fundamental.
A questão foi suscitada na motivação e na conclusão única do seu recurso».
4. Foi então proferida a decisão reclamada, onde se lê:
«O arguido veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, do acórdão proferido por este tribunal a fls. 89 a 101, com fundamento na al. b) do nº1 do art.º 70º da Lei 28/82 de 15/11, para «apreciação da norma do artigo 44º nº2 do C. Penal quando interpretado normativamente no sentido de que no cumprimento da pena entre a opção do seu cumprimento na habitação ou na prisão, as finalidades da punição prevalecem à doença ou ás deficiências graves do ser humano, por violação do art.º1 e 32º, nº1 da nossa Lei Fundamental». Mais alega que a questão foi por si suscitada na motivação e na conclusão única do seu recurso.
O recurso com fundamento na alínea b) do nº1 do referido preceito legal cabe «das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo» e por isso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer – nº2 do art.º 72º da mesma lei.
Torna-se pois necessário que a inconstitucionalidade da norma impugnada ou da sua interpretação tenha sido suscitada durante o processo e que o tribunal recorrido sobre ela se tenha pronunciado em concreto e com base nela tenha decidido.
Lendo e relendo a motivação e a conclusão do recurso que foi interposto pelo arguido e do qual este tribunal conheceu, constata-se que em momento algum o arguido suscita a inconstitucionalidade do art.º 44º, nº2 do C. Penal quando interpretado no sentido por ele agora indicado ou noutro qualquer sentido e, por isso, não conheceu este tribunal em concreto da questão da inconstitucionalidade da interpretação do art.º 44º, nº2 do C. Penal (e não 45º, nº2 como por lapso consta do acórdão, lapso esse que supra se corrigiu), nem proferiu decisão de acordo com a interpretação que o arguido pretende ver reconhecida como inconstitucional».
5. Esta decisão foi objecto da presente reclamação, argumentando-se o seguinte:
«Refere o douto despacho que ora se reclama que “Em momento algum se suscita a inconstitucionalidade do art.º 44º nº 2 da CP nem se proferiu decisão de que o arguido pretende ver reconhecida”.
Isso é verdade. Contudo, motivou-se:
“Pelo que, sempre que a pena vá além duma tal medida dada pela culpa do agente, ela já terá então deixado de constituir sanção, conforme a sanção penal prevista no art. 11º do Código Penal, assente na responsabilidade pessoal do agente e uma resposta ao ilícito pessoal deste, para passar a constituir uma resposta a imperativos que são totalmente estranhos ao agente e ao seu ilícito, como o serão certamente os necessidades de intimidação e defesa social.
Tal concepção, estaria não apenas em contradição com o carácter pessoal da responsabilidade mas ainda – pela degradação do delinquente a mero objecto dos fins de política criminal que implica – com o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º da Constituição da República Portuguesa) e - pela possibilidade que assim vem abrir de dois factos de idêntica gravidade virem a ser punidos com penas de magnitude diferentes, consoante as exigências de intimidação e prevenção geral (que de resto são, pela sua natureza, variáveis consoante o momento e o lugar) – com o próprio princípio da igualdade perante a lei (art. 13º da Constituição da República Portuguesa)”.
E na verdade, nesta passagem da motivação pelo menos intrinsecamente, o recorrente ora reclamante, invocou que se as «finalidades da punição prevalecem à doença ou às deficiências graves do ser humano», tal interpretação de degradação do delinquente a mero objecto dos fins de política criminal que implica, viola o «princípio da dignidade da pessoa humana (art.º 1º da Constituição da República Portuguesa)».
Por isso se referiu que a interpretação que se fez intrinsecamente do artigo 44º nº 2 al. c) do CP. foi inconstitucional por violação da dignidade humana.
Ora se a norma tivesse sido aplicada e interpretada de acordo com o princípio constitucional previsto no artigo 1º da CRP, não deveria o arguido ter sido condenado a prisão efectiva padecendo de uma deficiência grave como comprovadamente padece.
Se em liberdade já é difícil a sua “sobrevivência” seguramente que em reclusão a mesma será um “inferno”, se atentar-mos que a lei permite o seu cumprimento na sua residência com controlo à distância.
Daí que face à surpresa da douta decisão não pode o ora reclamante suscitá-la em tempo (de forma expressa), mas tão só de forma tácita, o que, este tribunal deveria ter aceitado conforme jurisprudência maioritária do Tribunal constitucional.
Donde entender-mos, sempre ressalvado o devido respeito por douta e superior opinião, que a questão de constitucionalidade suscitada o foi em termos processuais correctos por forma a ser admitido o recurso para o Venerando Tribunal Constitucional».
6. Neste Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação, sustentando, entre o mais, que:
«(…) vendo a peça processual onde o recorrente diz ter suscitado a questão, aí não se vislumbra a enunciação, de forma adequada, de qualquer questão de inconstitucionalidade relacionada com o artigo 44.º do Código Penal».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
O Tribunal da Relação de Lisboa não admitiu o recurso de constitucionalidade com fundamento na não suscitação prévia, durante o processo, da norma indicada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. Ou seja, “do artigo 44.º n.º 2 do CP quando interpretado normativamente no sentido de que no cumprimento da pena, entre a opção do seu cumprimento na habitação ou na prisão, as finalidades da punição prevalecem à doença ou às deficiências graves do ser humano”.
Para contrariar tal fundamento, o reclamante argumenta que suscitou a questão de constitucionalidade “tão só de forma tácita”, o que o Tribunal da Relação de Lisboa “deveria ter aceitado conforme jurisprudência maioritária do Tribunal constitucional”.
De acordo com o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, impendendo sobre o recorrente o ónus de suscitar a questão de constitucionalidade «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Da motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa e da respectiva conclusão resulta que o recorrente não suscitou a inconstitucionalidade da norma indicada no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade. O ónus da suscitação prévia e de forma adequada da questão de inconstitucionalidade não se compadece com uma suscitação “tácita”. Diferentemente do alegado pelo reclamante, o Tribunal Constitucional vem entendendo, de forma reiterada, que, quando se questiona a constitucionalidade de determinada interpretação de uma disposição legal, necessário é que se identifique essa interpretação em termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os destinatários delas e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada com um tal sentido (Acórdão n.º 106/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Tal não sucede, de todo, na peça processual indicada em cumprimento da parte final do n.º 2 do artigo 75.º-A da LTC, nem resulta tão pouco da conclusão única do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, destacada expressamente pelo recorrente. Nesta passagem, o recorrente conclui apenas que o tribunal de 1.ª instância “acabou por violar” o artigo 44.º, n.º 2, do Código Penal.
Em face do exposto, é de concluir que o recorrente não cumpriu o ónus de suscitação prévia e de forma adequada da questão de constitucionalidade cuja apreciação pretendia, pelo que há que confirmar o despacho objecto da presente reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 9 de Março de 2011.- Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Gil Galvão.