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Processo n.º 677/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção no Tribunal Constitucional
1. O Ministério Público interpôs recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da sentença do Tribunal do Trabalho do Barreiro, de 19 de Novembro de 2009, que recusou aplicação à norma vertida na alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, que alterou o Código do Trabalho, na versão constante da “Declaração de Rectificação” n.º 21/2009, de 18 de Março.
Prosseguindo o recurso, o Ministério Público apresentou alegações, em que se pronunciou no sentido de dever conhecer-se do objecto do recurso e confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida, nos termos das conclusões seguintes:
“1. A Lei nº 74/98, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 2/2005, de 24 de Janeiro, nº 26/2006, de 30 de Junho e nº 42/2007, de 24 de Agosto, define e circunscreve rigorosamente o âmbito em que podem ser feitas rectificações a diplomas legais.
2. Subjacente, a um tal quadro jurídico, está a preocupação de assegurar que se não alterem diplomas fora do quadro definido pelos requisitos constitucionais e legais que legitimem uma tal alteração.
3. A Declaração de Rectificação nº 21/2009, no entanto, procedeu a alterações substanciais no texto do diploma que, aparentemente, vinha rectificar (Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprovou o novo Código do Trabalho), designadamente “recuperando” matéria contra-ordenacional que deixara, entretanto, de vigorar no ordenamento jurídico, por força da versão inicial da referida Lei.
4. Na verdade, relativamente ao presente recurso, havia contra-ordenações de natureza laboral, que se encontravam contempladas no Código de Trabalho de 2003, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto, bem como na Regulamentação do mesmo Código, aprovada pela Lei 35/2004, de 29 de Julho.
5. Posteriormente, certos factos, por força da Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprovou o actual Código do Trabalho, na sua versão original (cfr. art. 12, nº 1, alíneas a) e b) da lei preambular que aprovou o novo Código do Trabalho), deixaram de ser considerados “ilícitos”, não podendo, portanto, nenhum Tribunal, ou entidade competente, proceder contra-ordenacionalmente com base nesses factos, após a publicação daquela Lei.
6. Com efeito, nos termos do art. 12, nº 3, alínea a), da versão original da Lei 7/2009, o Código de Trabalho de 2003 foi revogado e, nos termos da alínea b), do nº 1 da mesma disposição, o Regulamento do mesmo Código de Trabalho, também.
7. No entanto, no elenco das excepções, previstas no nº 6, alínea m), deste mesmo art. 12º, excepcionaram-se expressamente os arts. 212º a 280, sobre segurança e saúde no trabalho, do Regulamento do Código de Trabalho – Lei 35/2004, devendo, em consequência, a revogação destes preceitos apenas produzir efeitos a partir da entrada em vigor do diploma que regulasse a mesma matéria.
8. Não se fazia, contudo, qualquer referência, na mesma disposição, ao art. 484º do referido Regulamento, que considerava os factos previstos no art. 219º, nº 5, como constituindo uma contra-ordenação grave, pelo que tal preceito ficou abrangido pela revogação genérica do Regulamento do Código de Trabalho, efectuada pelo art. 12º, nº 1, alínea b), da Lei 7/2009.
9. Num terceiro momento, houve, finalmente, uma “inovação” incriminatória (através da repristinação de normas), por meio de uma “rectificação” retroactiva (cfr. alterações introduzidas ao art. 12º, nº 6, alínea m) da lei preambular que aprovou o novo Código do Trabalho, pela Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março).
10. Ora, uma tal actuação do legislador acaba por infringir, inapelável e negativamente, os princípios da não retroactividade da lei penal (e contra-ordenacional), da igualdade e da segurança jurídica, inerente ao modelo do Estado de Direito Democrático, protegidos pela Constituição da República Portuguesa (cfr. artigos 2º, 9º, alínea b), 13º e 29º, nºs 1, 3 e 4 do texto constitucional).
11. Na verdade, a pretensa “rectificação”, com a vultuosa dimensão da que foi efectuada pela Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março de 2009, ultrapassa largamento o âmbito de aplicação que a Constituição autoriza e que a lei rigorosamente delimita para este efeito.
12. Deve, pois, julgar-se inconstitucional a norma vertida na alínea a), do nº 3, do artigo 12º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, na versão constante da Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março de 2009, por violação dos princípios da não retroactividade da lei penal (e contra-ordenacional), da igualdade e da segurança jurídica, inerente ao modelo do Estado de Direito Democrático, protegidos pela Constituição da República Portuguesa (cfr. artigos 2º, 9º, alínea b), 13º e 29º, nºs 1, 3 e 4 do texto constitucional).
13. Crê-se, pois, de manter o juízo de inconstitucionalidade feito pelo Tribunal a quo, com as consequências legais daí decorrentes.”
Não houve contra-alegações por parte da recorrida A. Ldª.
3. Diversamente do que sucedeu com outras decisões submetidas a apreciação do Tribunal a propósito da validade da “Declaração de Rectificação” n.º 21/09, a sentença recorrida apenas recusou aplicação ao seu conteúdo com fundamento em inconstitucionalidade. Seja na fundamentação – em que, no essencial, reproduziu a doutrina do Acórdão n.º 490/09 deste Tribunal –, seja no dispositivo, a razão da recusa do efeito rectificativo resultante da alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, na versão da referida “Declaração de Rectificação”, resultou da sua ofensa ao princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição e não por desconformidade à Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro (a chamada “lei formulária”).
Assim, independentemente do que em geral se pense sobre a matéria, não parece colocar-se no presente processo a questão de saber se deve ou não conhecer-se do recurso por inutilidade fundada em “alternatividade” de fundamentos (vid., por exemplo, Acórdão n.º 584/09).
4. Como o Exmo. Procurador-Geral Adjunto refere nas alegações apresentadas, nos casos em que conheceu do mérito, designadamente no Acórdão n.º 490/09 (rectificado pelo Acórdão n.º 601/09) invocado na sentença recorrida, e no Acórdão n.º 628/09, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, o Tribunal julgou inconstitucional a norma em causa no presente recurso, por violação do princípio da segurança jurídica inerente ao modelo do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, com os seguintes fundamentos:
«I – No presente caso, a rectificação da redacção da alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, resulta na manutenção em vigor, sem qualquer hiato, da tipificação como contra-ordenação constante do artigo 671.º, n.º 1, do Código de Trabalho de 2003, das condutas previstas no seu artigo 273.º, n.º 1, apesar da revogação genérica deste diploma efectuada pelo artigo 12.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro.
II – Sendo a segurança jurídica um dos fins do Estado de direito democrático, as pessoas devam saber com o que contam, pelo que as normas jurídicas não devem, em princípio, ter efeito retroactivo, constituindo uma violação da confiança legítima que as pessoas devem depositar na ordem jurídica a punição como contra-ordenação de comportamentos ocorridos anteriormente à sua tipificação legal.
III – No caso sub iudicio, a norma impugnada repõe a punição como contra-ordenação de uma conduta, após o legislador ter afastado o seu sancionamento contra-ordenacional, retroagindo essa reposição ao momento desse afastamento, mantendo, assim, sem qualquer interrupção, tal sanção; ou seja, aqui o efeito retroactivo da lei não determina a punição de um facto praticado anteriormente à sua tipificação como contra-ordenação, mas elimina a descontra-ordenação de uma determinada conduta efectivada pelo legislador em data posterior à prática do facto.
IV – Vigorando em matéria contra-ordenacional, tal como em matéria penal, no domínio da sucessão de leis, a regra da imposição da aplicação da lei mais favorável, em obediência a uma ideia de desnecessidade de intervenção destes instrumentos sancionatórios, o acto legislativo de descontra-ordenação compromete o Estado perante os cidadãos, no sentido de que já não serão sancionados os respectivos comportamentos, mesmo que praticados em data em que tal punição se encontrava prevista na lei.
V – Este compromisso não pode ser quebrado, apesar do Estado verificar que se equivocou ao abandonar o sancionamento como contra-ordenação daquelas condutas, em defesa da fiabilidade da actividade de um Estado de direito democrático.»
Não se suscitando no presente recurso qualquer questão nova que deva ser apreciada, reitera-se aqui esta jurisprudência, inteiramente aplicável ao caso em apreço.
4 - Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica, inerente ao modelo do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, a norma da alínea a) do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro (que aprovou a revisão do Código do Trabalho), na redacção que lhe foi conferida pela Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março.
b) Consequentemente, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o juízo de inconstitucionalidade adoptado na decisão recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2011.- Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.