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Processo n.º 372/00
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - L... foi condenada por acórdão do 2º Juízo do Tribunal de Círculo de Setúbal, de 8 de Março de 1999, pela prática de um crime continuado de falsificação de documento, p.p. no artigo 228º, nº1, alínea b), do Código Penal de 1982, e artigo 256º, nº1, alínea b) do Código Penal de 1995, verificada a conduta mais grave no domínio deste último, em 12 meses de prisão, e de um crime de burla qualificada, p.p. ao tempo como burla simples pelo artigo 213º, nº1, do Código Penal de 1982, mas com a conduta mais grave verificada no domínio do Código Penal de 1995, previsto no artigo 218º, nº1, com a pena concreta de 2 anos e 6 meses de prisão. Foi ainda a arguida condenada a pagar à assistente - E..., S.A. -, o montante de
23.873.442$30, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, desde 1 de Junho de 1996 até integral ressarcimento, à taxa legal, sem prejuízo da sua compensação com os valores a crédito da arguida por salários não pagos. Efectuado o competente cúmulo jurídico foi a arguida condenada na pena unitária de três (3) anos de prisão, suspensa na sua execução por três anos, na condição de pagar à ofendida, no prazo de quinze dias a contar do trânsito em julgado, o montante de 3.000.000$00, a imputar nos valores em dívida.
2. - Com o assim decidido não se conformaram a assistente e a arguida, que interpuseram o competente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Em sede de alegações escritas o magistrado do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, suscitou a questão da falta de legitimidade da assistente para interpor recurso, fundamentando-a do seguinte modo:
'... a assistente, nas conclusões da sua douta motivação restringe o seu recurso
às questões atinentes à medida da pena aplicada. Efectivamente, pese embora ter, ao longo da douta motivação, questionado também a qualificação jurídico-penal dos factos imputados a L..., ressalta à evidência que, quando das conclusões da douta motivação, a recorrente restringiu o recurso
às questões atinentes à medida da pena de prisão e sua substituição pela pena de suspensão da execução da pena de prisão, aliás na linha do que já resultava do intróito da sua douta motivação ...'
(...) De acordo com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Outubro de 1997
(D.R., I-A Série, de 10/08/99), foi firmada a seguinte jurisprudência: O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir. No caso dos autos, o Ministério Público não interpôs recurso e a assistente não demonstrou interesse em agir. Dado que o douto despacho de admissão dos recursos, de fls. 544, não constitui caso julgado formal, nada obsta a que, quando da conferência a que alude o artigo 419º, nº4, alínea d) do C.P.P., o Supremo Tribunal de Justiça conheça da invocada ilegitimidade da assistente para recorrer, decidindo pela sua ilegitimidade.' Também a arguida suscitou nas suas alegações a questão prévia da inadmissibilidade do recurso da assistente, por ilegitimidade, entendendo que esta carece de interesse em agir relativamente às questões suscitadas no seu recurso. Em resposta à questão prévia veio a assistente defender a admissibilidade do recurso, dizendo, em suma, o seguinte:
(...)
'd) A doutrina firmada no Assento n.º 8/99, de 10/8, não tem influência no caso sub iudice, uma vez que o que está essencialmente em causa é uma divergência em relação à qualificação jurídico-penal dos factos, que a arguida comprovadamente cometeu, feita pelo acórdão recorrido. e) Como é sublinhado, logo de entrada, no Assento n.º 8/99, de 10/8, 'não está em crise a legitimidade do assistente, desacompanhado do MP, no concernente à natureza condenatória ou absolutória da decisão de que recorre nem quanto à divergência sobre a qualificação jurídico-penal operada na mesma decisão'. Nestes termos o presente recurso é inteiramente admissível, podendo e devendo ser conhecido. f) Mas, ainda que, por absurdo - que apenas se admite em benefício do patrocínio
-, se entendesse aplicável ao presente recurso a jurisprudência consagrada neste aresto, para além de ir contra o papel e a função tradicionalmente reconhecidos aos assistentes no nosso processo penal, contende com os princípios e garantias constitucionais, em especial o princípio do Estado de Direito e a garantia dos direitos e liberdades fundamentais decorrentes dos artigos 2º e 9º da Constituição da República Portuguesa (CRP), afrontando o direito fundamental que hoje é expressamente reconhecido ao ofendido, no artigo 32º, nº7, da CRP, de intervir no processo penal, nos termos da lei. g) O papel e a função desempenhados pelo ofendido constituído assistente são públicos e decorrem de direitos, liberdades e garantias consagrados, quer na Lei Fundamental, quer na lei ordinária. O direito ao recurso é precisamente um deles.'
3. - O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 27 de Abril de 2000, decidiu negar provimento ao recurso da arguida e não conhecer do recurso interposto pela assistente, confirmando na íntegra o acórdão recorrido.
É do seguinte teor a decisão recorrida, na parte respeitante ao não conhecimento do recurso interposto pela assistente:
'Sustenta a assistente que o acórdão recorrido não fez uma interpretação correcta das normas dos artsº 40º, 70º e 71º do Código Penal, e por isso defende que a arguida deve ser condenada numa pena de prisão efectiva que se situa próximo do limite máximo da medida penal abstractamente aplicável, e que é de 5 anos. Nas suas alegações de recurso a Exmª Procuradora-Geral Adjunta suscita a ilegitimidade da assistente para interpor o presente recurso, uma vez que carece de interesse em agir, porquanto se limita a impugnar a medida e espécie da pena aplicada à arguida. E, efectivamente, assim é, uma vez que a assistente na sua motivação restringe o seu recurso às questões atinentes à medida da pena de prisão e à sua substituição pela pena de suspensão da execução da pena de prisão. Circunstância, aliás, que a arguida, também questiona nas suas alegações e como atrás se deixou referido. Ora, este S.T.J. por acórdão de 30.10.97, D.R. I-A Série, de 10.08.99, fixou a seguinte jurisprudência: O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir. In casu, o Ministério Público não interpôs recurso, logo a assistente agiu isoladamente, e por si só, sem, todavia, demonstrar o segundo requisito que lhe conferiria legitimidade, isto é, a assistente não demonstrou interesse em agir. Daqui se infere que a assistente carece de legitimidade para recorrer.
É certo que os recursos, por despacho de fls. 544 foram admitidos - quer o da arguida quer o da assistente -, mas, porque tal despacho não constitui caso julgado formal nada impede que nesta fase processual - a ditada pelo disposto no artigo 419º, nº4, al. d), do C.P.P. - o Tribunal conheça da invocada ilegitimidade da assistente para recorrer. Assim, considerando o preceituado no último acórdão de fixação de jurisprudência citado, e o disposto no art.º 401º, nº2 do C.P.P. decide-se que a assistente não tem legitimidade para recorrer, e por via disso, não se conhece do recurso por si interposto.'
4. - Inconformada com a decisão, na parte respeitante ao não conhecimento do recurso por si interposto, veio a assistente, ao abrigo da alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, tendo por objecto a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 69º, n.ºs 1 e 2, alínea c), e 401º, nº1 alínea b), e nº2, do Código de Processo Penal, na interpretação fixada pelo 'Assento' n.º 8/99, publicado no Diário da República, I série-A, de 10 de Agosto de 1999, que, no seu entendimento, na aplicação feita pelo acórdão recorrido, ofende os princípios consagrados nos arts. 2º, 9º, alínea b), e 32º, nº7, da Constituição.
Oportunamente, a recorrente apresentou alegações que rematou com as seguintes conclusões:
'1. A interpretação erigida em jurisprudência obrigatória pelo Assento n.º 8/99 do STJ assenta numa incompreensão da figura do assistente em processo penal, violadora, não apenas do princípio do Estado de direito nas suas diversas decorrências, como também do direito de o ofendido intervir no processo penal, constitucionalmente consagrados nos artigos 2º, 9º, alínea b), e 32º, n.º 7, CRP.
2. A figura e o papel do assistente em processo penal – em especial, na parte que concerne ao direito de recurso na situação sub iudice – consente e exige uma interpretação diversa, conforme à Constituição.
3. Não são exactos os pressupostos de que parte o acórdão do STJ em que foi proferido o assento n.º 8/99.
4. Com efeito, sem negar o papel primordial do Ministério Público no exercício e direcção da acção penal, esta não constitui função 'exclusiva' ou 'privativa' do Ministério Público.
5. O direito de intervir no processo penal, agora expressamente reconhecido ao ofendido pelo artigo 32º, n.º 7, CRP, já se entendia decorrer dos princípios do Estado de direito, designadamente na vertente da garantia dos direitos e liberdades fundamentais, da defesa da democracia política participativa, bem como na garantia de efectivação do acesso ao direito e aos tribunais.
6. O reconhecimento constitucional expresso de um direito fundamental com tal conteúdo impõe, no mínimo, que qualquer alteração futura desse estatuto pelo legislador ordinário, como qualquer interpretação do mesmo, não possa ser feita sem a observância dos princípios constitucionais.
7. É à luz destes princípios que deve firmar-se a posição e o papel do assistente, como um verdadeiro sujeito processual, com atribuições próprias, permitindo-lhe a lei, em determinadas situações, agir sozinho ou até contra o Ministério Público.
8. Nos limites da lei, o assistente não subordina a sua intervenção no processo
à actividade do Ministério Público, podendo, por isso, codeterminar a decisão final do mesmo.
9. Os particulares, enquanto vítimas, podem intervir no processo penal com dois objectivos claramente distintos: ou com um objectivo meramente civil, para serem indemnizados; ou com um objectivo penal de colaboração com o Estado na efectivação da responsabilidade penal.
10. O reforço da consistência do estatuto do ofendido evidencia o interesse público que existe na constituição dos assistentes, o carácter público da colaboração que deles se espera na acusação pública e no auxílio às funções exercidas pelo Ministério Público no processo.
11. A colaboração que se espera do assistente na acção penal – única que se lhe pode admitir, dada a natureza pública desta acção – tem natureza também ela pública.
12. O 'carácter constitutivo autónomo da intervenção dos assistentes', muito mitigado durante o inquérito, torna-se evidente a partir da acusação, sendo, porém, ainda reforçado na instrução, julgamento e na fase dos recursos.
13. O direito de intervenção processual do assistente não pode deixar de incluir o direito ao recurso, já que este nada mais é do que o próprio processo na fase do recurso: perante uma decisão recorrível, o direito ao recurso é o direito ao processo e à intervenção no processo, pelo que impedir o recurso do assistente é coarctar-lhe o direito à intervenção no processo.
14. Quando exerce o seu direito de recurso, designadamente para reexame da espécie da pena ou da medida da pena, o assistente realiza um interesse público, que tem por finalidade a busca da solução justa, do direito concreto para o caso, esteja ou não acompanhado pelo Ministério Público no recurso.
15. A possibilidade ampla de recurso por parte do assistente é a que melhor satisfaz o princípio da legalidade, possibilitando o controlo judicial sobre o juízo do Ministério Público em não recorrer.
16. As cláusulas gerais que delimitam o direito de recurso do assistente – das decisões 'que os afectem', de decisões 'contra eles proferidas', não podendo recorrer quem 'não tiver interesse em agir' – hão-de ser interpretadas à luz do interesse público que fundamenta a sua intervenção.
17. Uma decisão que o assistente tem por desajustada dos fins das penas, por, em seu entender, a punição não lograr alcançar esses fins, realizando assim a justiça no caso concreto, é, sem dúvida, uma decisão que o afecta, que é contra ele proferida, o que lhe confere legitimidade para o recurso.
18. E, uma vez que o reexame dessa decisão é uma questão que só pode ser resolvida através do processo penal, no caso através do recurso, impõe-se concluir que o assistente tem 'interesse em agir', entendido este como a necessidade objectivamente justificada de recorrer à acção judicial, de usar do processo, de instaurar e fazer prosseguir a acção.
19. Não é, pois, legítimo proceder ao preenchimento valorativo das referidas cláusulas gerais relativas ao recurso com arrimo a interesses meramente pessoais, particulares, do assistente, procurando caso a caso interesses individuais pretensamente violados ou em perigo de violação, para só aí encontrar a legitimidade, porque tal solução está em gritante contradição com a natureza jurídico-pública do instituto da assistência penal.
20. Esta é, porém, a solução plasmada no Assento STJ n.º 8/99, que sujeita a legitimidade do assistente para recorrer a duas condições, a saber, estar acompanhado ou desacompanhado pelo Ministério Público e ter ou não ter interesse
'concreto e próprio' em agir.
21. A Constituição reconhece ao ofendido o direito de intervir no processo, não lhe exigindo qualquer outro 'interesse concreto e próprio' que, aliás, na questão penal em si e por si – e só essa questão, como se viu, pode estar em discussão –, o assistente nunca terá.
22. Os interesses a que o assento alude respeitam a repercussões da decisão penal em matéria não penal, que não raras vezes nem existem, traduzindo-se, isso sim, em exigência que a Constituição não permite e que restringem inadmissivelmente o direito que esta reconhece ao ofendido.
23. A interpretação plasmada no Assento STJ n.º 8/99 viola os princípios constitucionais que decorrem da Constituição, designadamente, do artigo 2º, da afirmação da República Portuguesa como 'um Estado de direito democrático (...) baseado no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais (...), visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa'; do artigo 9º, alíneas b) e c), do texto constitucional, em que se prevêem, como tarefas fundamentais do Estado, 'garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático', 'defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais'; e do artigo 20º, n.º 1, que garante a efectivação do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
24. Viola também frontalmente o direito fundamental (com a respectiva garantia) de o ofendido a intervir no processo, nos termos da lei, previsto no artigo 32º, n.º 7.da Constituição.
25. Trata-se de um entendimento desrazoável e inadequado, que contende com o princípio da proporcionalidade necessariamente envolvido na garantia dos direitos fundamentais e que decorre ainda dos princípios do Estado de Direito.'
(As conclusões sob os n.ºs 24 e 25 correspondem aos n.ºs 30 e 31 do originar entregue pela recorrente, com deficiente numeração)
Nas contra-alegações o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
'1. Não implica violação do preceituado nos artigos 32º, n.º 7, 20º e 13º da Constituição da República Portuguesa a interpretação normativa, plasmada no acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/99, que se traduz em restringir a legitimidade do assistente para impugnar autonomamente o segmento da decisão condenatória, referente exclusivamente à escolha e medida concreta da pena imposta ao arguido, condicionando-a à invocação e demonstração de um específico interesse em agir.
2. Na verdade, tal restrição ao direito ao recurso – que não pode considerar-se
ínsito no direito de acesso à justiça, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa – não traduz esvaziamento do 'núcleo essencial' da intervenção consentida ao ofendido no processo penal.
3. Do mesmo modo que a diferenciação de estatutos processuais, no que a tal matéria respeita, entre o assistente e a acusação pública não viola o princípio da igualdade, dado que – em princípio – a medida concreta da pena, fixada ao arguido, tem exclusiva ligação com a realização do ius puniendi e a consumação dos fins das penas, matéria situada no cerne do interesse público e cometida aos
órgãos do Estado competentes para a sua realização.
4. Termos em que deverá improceder o presente recurso, em consonância com o juízo de constitucionalidade da norma que dele é objecto.'
Também a arguida apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
1. - O presente recurso, interposto do acórdão do STJ de 27 de Abril de
2000, na parte em que decidiu não conhecer do recurso interposto pela assistente, ao abrigo da alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, tem por objecto a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigo 69º, n.ºs 1 e 2, alínea c), e 401º, nº1, alínea b), e nº2, do Código de Processo Penal, na interpretação fixada pelo acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Outubro de 1997
(publicado no Diário da República, I série-A, de 10 de Agosto de 1999), que a recorrente entende afrontar os princípios consagrados nos arts. 2º, 9º, alínea b), 20º, nº1, e 32º, nº7, da Constituição. As normas dos artigos 69º e 401º do Código de Processo Penal, na parte impugnada, dispõem o seguinte:
'Artigo 69º
(Posição processual e atribuições dos assistentes)
1. Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei.
2. Compete em especial aos assistentes: a. (...) b. (...) c. Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito.'
'Artigo 401º
(Legitimidade e interesse em agir)
1. Têm legitimidade para recorrer: a. (...) b. O arguido e o assistente, de decisões contra eles proferidas. c. (...)
1. Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.'
Ora, o acórdão recorrido aplicou estas normas na interpretação dada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Outubro de 1997 (publicado no Diário da República, I série-A, de 10 de Agosto de 1999), que firmou a seguinte jurisprudência obrigatória:
'O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.'
Não está em causa no presente recurso de constitucionalidade o direito de o ofendido por certo tipo de crime se constituir assistente no processo penal e, nessa veste processual, acompanhar a respectiva tramitação, nem sequer se impugna a legitimidade do assistente para interpor recurso, desacompanhado do Ministério Público, quanto à natureza condenatória ou absolutória da decisão, nem sobre a qualificação jurídico-penal operada na decisão recorrida. O que se questiona é tão somente o exercício de um direito autónomo ao recurso pelo assistente, relativamente à espécie e medida da pena aplicada ao arguido, enquanto se lhe exige uma específica e concreta demonstração de um particular interesse em agir, que não se reconduza à pura e simples invocação da qualidade de assistente no processo penal, posto que se entendeu no acórdão recorrido que, tendo a assistente, nas conclusões da sua motivação, restringido o recurso às questões atinentes à medida da pena de prisão e à sua substituição pela pena de suspensão da execução da pena, esta situação caía no âmbito de aplicação do acórdão de fixação de jurisprudência referido e, nessa medida, só tinha legitimidade para recorrer isoladamente – desacompanhada do Ministério Público – se demonstrasse interesse em agir, o que não sucedeu.
2. - Diferentemente do que sucede entre nós, como sublinha Figueiredo Dias, 'na generalidade dos países europeus continentais só muito excepcionalmente se admite a intervenção dos particulares na acção penal, ao lado do Ministério Público ou mesmo a ele subordinados; a intervenção do particular quando admitida, é o quase sempre só nas perdas e danos que decorra do processo penal' (in 'Da legitimidade do sócio de uma sociedade por quotas para se constituir assistente em processo por crime cometido contra a sociedade', Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XIII, nºs 1 e 2, pág.
140).
Na verdade, no nosso direito processual o ofendido sempre teve particular intervenção, designadamente no exercício da acção penal em paralelo com o Ministério Público, na instrução do processo e no julgamento - sendo decisiva para a sua intervenção a qualidade de titular do interesse jurídico-penal protegido pela norma incriminadora -, como sucedia no âmbito do Código de Processo Penal de 1929, mesmo na vigência do Decreto-Lei nº 35007, de
13 de Outubro de 1945, que restringiu a intervenção do assistente. Nos termos do Código de Processo Penal de 1987 a intervenção processual dos ofendidos – entendendo-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação – e dos demais particulares mencionados no artigo 68º, depende da sua prévia constituição como assistentes no processo crime. Face ao que dispõe o artigo 69º, nº1, «os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção», o que poderia levar a pensar-se - e muitas vezes leva –, que estamos apenas perante um mero auxiliar do Ministério Público, sem qualquer autonomia. Só que, como se salientou no acórdão deste Tribunal nº 690/98 (publicado no Diário da República, II série, de 8 de Março de 1999):
'... não se pode aceitar uma concepção tão redutora; o assistente surge como um verdadeiro sujeito processual, com atribuições próprias, permitindo-lhe a lei, pelo menos em determinadas situações, agir sozinho ou até contra o Ministério Público (cfr., por ex., artigos 69º, nº 2, 287º, nº 1, b), e 401º, nº 1, b), do CPP). Ainda que com limites, é certo, os assistentes, pelo menos nessa medida, não subordinam totalmente a sua actuação à do MP. Certo que ao MP compete o exercício da acção penal, colaborando com o tribunal na descoberta da verdade e na valorização do direito (cfr. artigo 53º, nº 1, do CPP). Mas, nos casos referentes a crimes particulares, a sua actividade encontra-se desde logo condicionada pela apresentação da queixa e constituição como assistente pelo ofendido, e nos crimes semi-públicos, depende também da formalização da queixa pelo ofendido. É nos crimes públicos - como o dos autos - que o MP não se encontra já condicionado por qualquer actividade do ofendido, passando a ser a intervenção do assistente desnecessária para desencadear ou prosseguir o processo; a intervenção do ofendido (ou seus representantes ou sucessores) passa a ser uma faculdade, na discricionariedade deste. Mas não fica como tal eliminada ou descaracterizada; como no próprio preâmbulo do CPP se pode ler, 'o reforço da consistência do estatuto do assistente, com a intenção manifesta de consolidar o papel de um dos protagonistas no campo da conflitualidade real', foi uma das tónicas deste sistema processual.'
Nesta perspectiva, o actual Código de Processo Penal, nos casos de procedimento criminal por crime de natureza pública, atribui ao assistente o poder de intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo diligências necessárias, e confere-lhe o direito de deduzir acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial daqueles (cfr. artigos 69º, nº2, alínea a) e b), e 284º), e, findo o inquérito, caso o Ministério Público não deduza acusação, pode requerer a abertura da instrução (cfr. artigo 286º, nº1 e 287º nº1 alínea b)). Também ao assistente é reconhecido o direito de interpor recurso das decisões que o afectem, mesmo que o Ministério Público não o tenha feito, nos termos dos artigos 69º, nº2, alínea c) e 401º, nº1, alínea b).
3. - Ora, invoca a recorrente que a interpretação fixada pelo acórdão uniformizador de jurisprudência das normas dos artigos. 69º, n.ºs 1 e 2, alínea c), e 401º, nº1 alínea b), e nº2, do Código de Processo Penal, no sentido de condicionar o direito ao recurso por parte do assistente à demonstração de um concreto e próprio interesse em agir quando, desacompanhado do Ministério Público, pretenda impugnar a espécie e medida da pena aplicada, além de inadequada e desproporcionada, viola os princípios do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva consagrados no artigo 20º, nº1, da Constituição, bem como afronta o direito fundamental de o ofendido intervir no processo, nos termos da lei, previsto no artigo 32º, nº7 da Constituição.
Vejamos:
É indiscutível a existência de um legítimo interesse específico do ofendido em se constituir assistente no processo penal, mesmo no âmbito dos crimes públicos, e que encontra a sua consagração no direito de acesso à justiça, tutelado no artigo 20º da Constituição. Sobre esta questão, ainda que referente a outro problema, pronunciou-se este Tribunal no já citado acórdão 690/98 e, posteriormente no acórdão nº 27/2001, de
30 de Janeiro de 2001, publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Março último. Escreveu-se naquele aresto:
'O artigo 20º, nº 1, dispõe que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos», o que, como este Tribunal tem entendido, implica o reconhecimento da garantia da via judiciária, a qual se estende necessariamente a todos os direitos e interesses legítimos, ou seja, a todas as situações juridicamente protegidas.' Assim, e como se pode ler no Acórdão nº 24/88, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., pág. 525 e segs.):
«A articulação deste preceito com as injunções contidas no artigo 206º, onde, em termos genéricos, se prescreve que 'incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos', e no artigo 268º, nº 3, onde se garante aos interessados recurso contencioso, designadamente 'para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido', impõe que dele se faça uma interpretação alargada, ou seja, no sentido de que a garantia judiciária assegura o acesso aos tribunais não só para defesa de direitos, mas também de interesses legalmente protegidos.» Nesta perspectiva, o que há que averiguar é se a constituição de assistente «põe judiciariamente em acto algum direito ou interesse juridicamente protegido», nos termos do Acórdão nº 24/88, citado, e no qual se respondeu pela forma seguinte:
«E sem necessidade de lançar mão de outros argumentos que se poderiam extrair dos artigos 49º e 217º, nº 1, da Constituição ou da autonomia que o assistente goza em matéria de audiência, de interrogatório, de alegações e de recursos relativamente ao Ministério Público, pode desde já afirmar-se que a lei proteja o interesse do ofendido em contribuir para a sujeição a julgamento do ou dos autores do crime de que foi vítima.
Este interesse é juridicamente protegido através do próprio instituto do assistente e do direito à sua constituição e dos diversos poderes de intervenção processual que a lei, como se viu, amplamente lhe reconhece.
E a ponderação de que no caso de crimes públicos, a acção penal exercida para defesa do interesse público violado pela conduta criminosa, se há-de considerar como da própria comunidade, mercê da sua dimensão sócio-jurídica, não invalida que com este interesse possa coexistir um outro do ofendido, a que a lei dispensa protecção.»
Há-de reconhecer-se, assim, a legítima existência de um interesse específico do ofendido em constituir-se assistente em processo penal, mesmo nos crimes públicos, e que encontra a sua consagração no artigo 20º da CRP. Densificando este entendimento, que se enraíza na tradição jurídica portuguesa, viria a revisão constitucional de 1997 a consagrar, de forma mais explícita, no novo n.º 7 do artigo 32º da CRP, que «o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei», o que necessariamente implica uma colaboração no exercício da própria acção penal, que se não pode limitar a uma mera actuação como parte civil; e se esta alteração constitucional não tem relevância directa nos presentes autos, por a decisão recorrida lhe ser anterior, não deixa ela de iluminar a concepção jurídica que estava já subjacente ao preceituado no referido artigo 20º.'
Isto não significa, porém, que os preceitos constitucionais atribuam um estatuto processual ao ofendido/assistente com uma tal autonomia de molde a que se possa afirmar que a limitação do direito ao recurso imposta pela interpretação do acórdão uniformizador de jurisprudência - exigindo-lhe a demonstração de um específico e concreto interesse em agir, como condição para impugnar certa decisão (no caso um segmento da decisão da 1ª instância) -, esvazia o núcleo essencial da intervenção deste sujeito processual na tramitação do processo penal e colida com o seu direito de acesso à justiça.
É certo que com a Revisão Constitucional de 1997 (Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro), o reconhecimento daquele interesse específico passou a constar expressamente do nº7 do artigo 32º da Constituição, que estabelece que 'o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei'.
Porém, este preceito, limita-se a consagrar de forma ampla e genérica o direito do ofendido de intervir no processo penal, atribuindo
à lei ordinária a acção modeladora desse direito, que passa necessariamente pela legitimidade de o ofendido se constituir assistente no processo, e pela definição do seu estatuto processual: delimitação dos direitos, deveres e ónus processuais inerentes.
É verdade que esta atribuição à lei ordinária não legitima o legislador a proceder a um 'esvaziamento' do núcleo essencial da intervenção do assistente no processo penal, mas, também, não é isso que está em causa nos autos.
A interpretação constante do acórdão de fixação de jurisprudência, aplicada na decisão recorrida, ao condicionar o recurso do assistente à demonstração de um concreto e próprio interesse em agir, quando, desacompanhado do Ministério Público, pretenda impugnar a espécie e medida da pena aplicada, não afecta o núcleo essencial da intervenção do ofendido no processo penal nem coloca em crise o direito ao recurso por parte do assistente, pois não é absoluta, apenas incidindo sobre os pressupostos do recurso e. além disso, respeita a matéria que tem fundamentalmente a ver com o exercício pelos
órgãos do Estado do 'ius puniendi' relativamente ao arguido e com a realização dos fins constitucionais e legais das penas.
Como salienta o magistrado do Ministério Público nas suas alegações, por via desta restrição não fica o assistente impedido de recorrer autonomamente da decisão atinente à medida concreta da pena imposta ao arguido, apenas se lhe comina um específico ónus de demonstração de um particular interesse em agir no que a tal matéria concerne. Ou seja, o assistente pode impugnar tal segmento da decisão proferida, desde que mostre que da concreta escolha da medida da pena aplicada ao arguido lhe decorre específica e concreta lesão de interesses pessoais relevantes.
De resto, se a tutela constitucional conferida pelos preceitos em causa pode legitimar a inconstitucionalidade de soluções desproporcionadas e restritivas da legitimidade de certos parentes ou sucessores do ofendido, como no caso do acórdão nº 690/98, já citado, não implica a inexigência de um verdadeiro interesse em agir de simples lesados pelo facto ilícito, por forma a inviabilizar-se a aquisição do estatuto de assistente a quem não seja titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, como resulta do acórdão nº 647/98 (publicado no Diário da República, II série, de 3 de Março de 1999), onde se entendeu que em certos tipos penais – no caso o crime de desobediência – estão exclusivamente em causa interesses específicos do Estado, sendo apenas este o ofendido, carecendo de legitimidade para agir quem pretenda intervir no processo como assistente.
Acresce que, a dimensão garantística do processo penal, face à sua repercussão nos direitos e liberdades fundamentais do arguido, obsta, por um lado, a um entendimento de tal processo como um verdadeiro processo de partes e, por outro, não proporciona uma perspectiva de total simetria entre os direitos do arguido e do assistente no que se refere ao modo de concretização das garantias de acesso à justiça (cfr. acórdão nº 27/2001, já citado).
Não se surpreende, assim, que a aludida interpretação das normas dos arts. 69º, nº1 e 2, alínea c), e 401º, nº1, alínea b), e nº2, do Código de Processo Penal, seja inadequada e afecte de forma irrazoável e desproporcionada o direito do ofendido intervir no processo penal, consagrado nos artigos. 20º, nº1 e 32º, nº7 da Lei Fundamental.
4. - Do mesmo modo, não se mostram afrontados os princípios consagrados nos artigos 2º e 9º, alínea b) e c) da Constituição, uma vez que se concluiu que a limitação imposta ao assistente não afecta o núcleo essencial da intervenção do ofendido como assistente na tramitação do processo penal, não se vislumbrando qualquer possibilidade de afectação do princípio da confiança, ínsito no do Estado de direito democrático.
III
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, que se fixam em 10 unidades de conta. Lisboa, 9 de Maio de 2001 Alberto Tavares da Costa Messias Bento José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Declaração de voto
Votei vencido, por entender que as normas conjugadas dos artigos
69º, nº 1 e nº 2, alínea c), e 401º, nº 1, alínea b), e nº 2, do Código de Processo Penal, na interpretação fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Outubro de 1997, tirado para uniformização de jurisprudência e publicado no Diário da República, I Série-A, de 10 de Agosto de 1999, violam o preceituado nas disposições combinadas do artigo 20º, nº 1, e 32º, nº 7, da Constituição da República Portuguesa.
Conforme tive já ocasião de largamente demonstrar, em declaração de voto junta ao Acórdão nº 450/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., tomo II, págs. 1311 e segs.), o ofendido, ainda que no âmbito de um crime público, é titular de um interesse legalmente protegido - é também titular do interesse que a lei penal quis proteger com a incriminação. Nesse mesmo sentido se afirmara já no Acórdão nº 24/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., pág. 525):
Este interesse é juridicamente protegido através do próprio instituto do assistente e do direito à sua constituição e dos diversos poderes de intervenção processual que a lei, como se viu, amplamente lhe reconhece. E a ponderação de que, no caso de crimes públicos, a acção penal exercida para defesa do interesse público violado pela conduta criminosa se há-de considerar como da própria comunidade, mercê da sua dimensão sócio-jurídica, não invalida que com este interesse possa coexistir um outro do ofendido, a que a lei dispensa protecção.
Na referida declaração de voto, tive ocasião de referir que a recente evolução do entendimento sobre o papel da vítima no processo criminal - nomeadamente no âmbito dos direitos que lhe são constitucionalmente garantidos - não permite mais ignorar que ela «deixou de ser espectadora passiva do desenrolar da política criminal; em muito poucos anos ganhou um intensificado protagonismo», sendo certo que «a clássica relação bipolar Estado-delinquente tornou-se tripolar: Estado-delinquente-vítima», pelo que «a nova dimensão vitimológica ocupa os legisladores e os criminologistas» (Mário Raposo, A vítima e a nova política criminal, Boletim do Ministério da Justiça, nº 366, Maio de
1987, pág. 5).
Essa evolução viria a densificar-se, na revisão constitucional de
1997, no novo nº 7 do artigo 32º da Constituição, segundo o qual «o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei», assim complementando o nº
1 do artigo 20º da mesma Lei Fundamental, que assegura o acesso aos tribunais para defesa, não apenas dos direitos, mas também dos «interesses legalmente protegidos».
Ora, a remissão para a lei, constante do nº 7 do artigo 32º, sendo compreensível, tendo em conta a particular ordenação do processo penal e as suas especiais características, não pode ser interpretada como permitindo privar o ofendido daqueles poderes processuais que se revelam decisivos para a defesa dos seus interesses - o poder de acusar e o poder de recorrer da sentença absolutória ou da sentença que entenda não fazer actuar o poder punitivo do Estado de forma minimamente satisfatória.
Nesta conformidade, teria concedido provimento ao recurso.
Luís Nunes de Almeida