Imprimir acórdão
Proc.º n.º 659/2000.
2.ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Pelo Tribunal de comarca de Coimbra intentaram M e Licª E e marido, Licº A, contra P - Gabinete de Projectos, Ldª, acção, seguindo a forma de processo sumário, peticionando que fosse decretada a resolução de um contrato de arrendamento celebrado entre autores e ré e incidente sobre uma fracção autónoma de um prédio urbano sito na freguesia da Sé Nova, concelho de Coimbra, em virtude de, segundo o alegado, a dita ré ter, desde há mais de 18 meses contados da data da propositura da acção, deixado de exercer a sua actividade no locado.
Por sentença proferida pela Juíza do 3º Juízo Cível daquele Tribunal em 23 de Novembro de 1998, foi a acção julgada procedente e, em consequência, decretada a resolução do contrato de arrendamento em causa, e isso porque, em síntese, se entendeu que, destinando-se o locado ao exercício de uma profissão liberal, o senhorio desfrutava do direito de pedir a resolução do arrendamento baseada no encerramento do locado por mais de um ano.
Inconformada com o assim decidido apelou a ré para o Tribunal da Relação de Coimbra, sustentando na alegação que produziu, inter alia, que a alínea h) do nº 1 do artº 64º do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, deveria ser considerada inconstitucional do ponto de vista orgânico, pois que nela se eliminou a expressão «consecutivamente» constante da alínea h) do nº 1 do artº 1093º do Código Civil, sem que Lei nº 42/90, de 10 de Agosto (que autorizou o Governo a alterar o regime jurídico do arrendamento urbano), isso tivesse previsto.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 14 de Dezembro de
1999, julgou improcedente a apelação, discreteando assim no que tange à suscitada questão de inconstitucionalidade:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................
Sustenta a recorrente que a Lei nº 42/90, de 10.8, não conferiu ao Governo poder para legislar em matérias de causas de extinção da relação de arrendamento urbano, e que deixando aquela norma de contar o período de um ano de modo ‘consecutivo’, veio aumentar as hipóteses de resolução do contrato.
A mencionada Lei, que concedeu ao Governo autorização para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano, dispõe no artigo 2º: «As alterações a introduzir ao abrigo da presente autorização legislativa devem obedecer às directrizes seguintes: a) - Codificação dos diplomas existentes no domínio do arrendamento urbano, por forma a colmatar lacunas, remover contradições e solucionar dúvidas de entendimento ou de aplicação resultantes da sua multiplicidade».
Para a questão que nos ocupa, e como atrás assinalámos, a eliminação do advérbio ‘consecutivamente’ referida na al. h) do art. 1093º do C.C., revogado pelo art. 3º do preâmbulo do DL nº 321-B/90, teve em vista pôr cobro às dúvidas anteriormente suscitadas, como as resultantes da utilização da coisa locada por escassos dias, existindo decisões jurisprudenciais que consideravam interrompido o encerramento do estabelecimento quando ele abria de longe em longe.
O que o legislador quis foi expôr claramente que o encerramento se prolongue por forma contínua durante um ano, assim acolhendo a tese da mais evoluída doutrina e jurisprudência, a de que não descaracteriza o encerramento uma abertura fortuita, ocasional, do estabelecimento.
É assim, indiscutível, que não se trata de uma inovação relativamente ao direito anterior, mas antes de uma clarificação, acabando com a dúvida existente, de acordo com uma das directrizes apontadas: «... solucionar dúvidas».
Dúvidas de entendimento a que a expressão ‘multiplicidade’ (de diplomas respeitantes ao arrendamento rural) se não refere, antes resultando de uma incorrecta redacção da anterior norma, impondo-se acabar com elas, e para o fazer estava o Governo autorizado.
Como se entendeu no Ac. do T. Constitucional nº 311/93, «as lacunas, as contradições e as dúvidas são, assim, as que a aplicação dos textos legais haviam posto a descoberto. Tais lacunas, contradições e dúvidas deviam ser corrigidas em consonância com os ditames da ciência do direito e aproveitando os ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, naturalmente».
Daí que, a nosso ver, a norma impugnada não tenha vindo a aumentar as hipóteses de resolução de contrato uma vez que se trata de uma clarificação da norma anterior, não estando, pois, violada a directriz parlamentar ínsita na apontada al. a) do art. 2º da Lei nº 42/90, como sustenta a recorrente.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................'
Deste aresto pretendeu a ré recorrer para o Tribunal Constitucional e, não sendo o recurso admitido, reclamou para este último órgão de administração de justiça que, por intermédio do seu Acórdão nº 326/2000, deferiu a reclamação.
2. Determinada a feitura de alegações, rematou a ré a por si produzida com as seguintes «conclusões»:-
' a) - Quer a decisão da primeira instância, que decretou a resolução do contrato, quer o Acórdão da Relação de Coimbra, que a confirmou, fundaram-se, para tal efeito, numa norma inconstitucional: a alínea h), do nº 1, do artº 64 do RAU (introduzido pelo DL nº 321-B/90, de 15 de Outubro). b) - É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar em matéria do regime geral do arrendamento urbano, salvo autorização ao Governo (artº 165º, nº 1, alínea h)., da CRP). c) - Tendo o RAU, com a redacção dada àquela norma alterado o modo de contagem do prazo de encerramento do prédio, deixando de contar o período de um ano de modo consecutivo - como acontecia na anterior alínea h., do artº 1093º do CC - veio aumentar as hipóteses de resolução do contrato, sem ter autorização legislativa para o efeito, pelo que aquela norma está ferida de inconstitucionalidade orgânica. d) - A Lei nº 42/90 (de 10 de Agosto) não conferiu ao Governo poder para legislar em matéria de causas de extinção da relação de arrendamento urbano
(excepto quanto à transmissão por morte no arrendamento habitacional). e) - Essa Lei também não autorizou o Governo a legislar para solucionar dúvidas de entendimento, para além das expressamente previstas no seu artº 2º, alínea a), nem para uniformizar jurisprudência em matéria de arrendamento. f) - O Governo, ao dar aquela redacção à alínea h) do artº 64º, nº 1, também não preservou as regras socialmente úteis de protecção do arrendatário, como lhe impunha o artº 2º, al. c) da Lei 42/90. g) - No caso concreto foi aplicada uma norma inconstitucional ( a alínea . do nº
1 do artº 64º do RAU) para decretar a resolução do contrato de arrendamento, pelo que foi violado o artº 204º da CRP'
Por seu turno, os recorridos, na alegação que apresentaram, por um lado, invocaram que a questão de inconstitucionalidade referente à alínea h) do nº 1 do artº 64º do Regime do Arrendamento Urbano era, para o caso, absolutamente irrelevante, já que foi dado por assente que o locado se encontrou encerrado consecutivamente pelo período de, pelo menos, 18 meses, correspondentes ao lapso temporal compreendido entre Abril de 1996 e Novembro de
1997,razão pela qual, mesmo aplicando o preceito constante da alínea h) do nº 1 do artº 1093º do Código Civil, se haveria de decretar o despejo.
Por outro lado, e sem conceder quanto àquela questão, propugnaram pela improcedência do recurso de constitucionalidade.
Notificada a recorrente sobre a «questão prévia» suscitada pelos recorridos, veio a mesma dizer não terem os recorridos razão, pois que não corresponde à realidade demonstrada nos autos que o encerramento do locado por dezoito meses consecutivos, se operou antes se tendo provado que somente pela soma de vários períodos intercalares de encerramento se poderá chegar à conclusão de que o locado esteve encerrado durante um ano.
Assim, continua a recorrente, tem todo o sentido a prossecução do presente recurso de constitucionalidade.
Cumpre decidir.
II
3. Começar-se-á por tratar a «questão prévia» suscitada pelos impugnados.
Como se viu, segundo os mesmos, a questão de inconstitucionalidade que se pretende vir a ser resolvida pelo presente recurso é irrelevante para o caso já que, mesmo que porventura a norma ínsita na alínea h) do nº 1 do artº
64º do Regime de Arrendamento Urbano viesse a ser julgada inconstitucional, consequentemente devendo aplicar-se o normativo que aquela substituiu, ou seja, o constante da alínea h) do nº 1 do artº 1093º do Código Civil, sempre o despejo haveria de ser decretado, pois que a situação de facto dos autos cabia na previsão deste último normativo.
Ora, no tocante a este particular, há que ponderar que a questão consistente em saber se a matéria de facto apurada nos autos encontra, ou não, total arrimo na previsão da norma vertida na alínea h) do nº 1 do artº 1093º do Código Civil, é uma questão que se não insere nos poderes cognitivos deste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, sendo por demais
óbvio que este Tribunal não se poderá substituir à ordem dos tribunais judiciais para dilucidar o eventual problema de saber se a matéria de facto dada por assente poderia, ou não, com apelo àquela norma, constituir suporte para alcançar uma decisão de acordo com a qual a acção haveria de ser considerada procedente.
Não deixa de ser certo, porém, que se poderia sustentar que o acórdão tirado na Relação de Coimbra, de um dado modo, não teria, verdadeiramente e para a decisão do caso, convocado a omissão - que agora se surpreende na alínea h) do nº 1 do artº 64º do Regime do Arrendamento Urbano - da expressão «consecutivamente» que na alínea h) do nº 1 do artº 1093º do Código Civil era utilizada, pois que se limitou a conferir um determinado sentido ao que deve ser entendido como encerramento do locado.
Simplesmente, e quanto a este ponto, há que atentar em que o recurso foi, como se viu, determinado admitir por intermédio do Acórdão deste Tribunal nº 326/2000, pelo que, ex vi do nº 4 do artº 77º da Lei nº 28/82, se terá de considerar que o ali decidido fez caso julgado quanto à admissibilidade do recurso, razão pela qual, agora, nunca se poderia concluir pela inutilidade da vertente impugnação.
Improcede, desta arte, a «questão prévia» suscitada pelos recorridos.
4. Enfrente-se, agora, a questão de inconstitucionalidade sub iudicio.
Consiste ela, justamente, em saber se é, ou não, organicamente inconstitucional a norma constante da alínea h) do nº 1 do artº 64º do Regime do Arrendamento Urbano no segmento em que na mesma já se não utiliza o advérbio
«consecutivamente», que era utilizado norma vertida na alínea h) do nº 1 do artº
1093º do Código Civil quanto ao encerramento, por mais de um ano, de um prédio arrendado para exercício de profissão liberal, como forma de resolução, pelo senhorio, do contrato de arrendamento.
Na verdade, enquanto a norma ora questionada apresenta a seguinte redacção:- ARTIGO 64.º Casos de resolução pelo senhorio
1. O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário:
a)....................................................................................
......................................................................................;
b)....................................................................................
......................................................................................;
c)....................................................................................
......................................................................................;
d)....................................................................................
......................................................................................;
e)....................................................................................
......................................................................................;
f).....................................................................................
......................................................................................;
g)....................................................................................
......................................................................................; h) Conservar encerrado, por mais de um ano, o prédio arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, salvo caso de força maior ou ausência forçada do arrendatário, que não se prolongue por mais de dois anos;
2....................................................................................................................................................................................:
a)....................................................................................
......................................................................................;
b)....................................................................................
......................................................................................;
c)....................................................................................
......................................................................................, a alínea h) do nº 1 do artº 1093º do Código Civil estipulava que o senhorio só podia resolver o contrato [s]e conservar encerrado por mais de um ano, consecutivamente, o prédio arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, salvo caso de força maior ou ausência forçada do arrendatário, que não se prolongue por mais de dois anos.
5. De acordo com a perspectiva seguida pela recorrente, como já se assinalou, o vício de inconstitucionalidade residiria na circunstância de a norma ora sindicada, ao eliminar a expressão «consecutivamente», que constava da alínea h) do nº 1 do artº 1093º do Código Civil, veio permitir um «alargamento» da faculdade de resolução do contrato de arrendamento por parte do senhorio, porquanto deixou de ser exigido um decurso temporal sem interrupções quanto ao modo de contagem do período de encerramento do locado. E, ainda na óptica da recorrente, ao proceder a um tal «alargamento», sem que isso constasse da lei de autorização legislativa, o Governo, ao emitir o Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, introduziu uma alteração sem que, para tanto, estivesse credenciado parlamentarmente.
Será que é de aceitar esta perspectiva?
Adianta-se desde já que não.
Sendo inquestionável que, de harmonia com o disposto na alínea h) do nº 1 do artigo 168º da versão da Lei Fundamental decorrente da Lei de Revisão Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho (versão essa que era a vigente à data da emissão do Decreto-Lei nº 321-B/90), era da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização concedida ao Governo, legislar sobre a matéria atinente ao regime geral do arrendamento urbano, mister é - atendendo a que o Parlamento emitiu a Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, por intermédio da qual foi dada permissão ao Executivo para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano - que se saiba se este último diploma estabeleceu credencial bastante para a alteração de que curamos.
Estabeleceu-se na alínea a) do artº 2º dita Lei nº 42/90 que as alterações a introduzir ao abrigo da autorização legislativa por ela concedida deviam obedecer a determinadas directivas de harmonia com as quais o regime jurídico autorizado deveria proceder à [c]odificação dos diplomas existentes no domínio do arrendamento urbano, por forma a colmatar lacunas, remover contradições e solucionar dúvidas de entendimento ou de aplicação resultantes da multiplicidade do ou dos regimes pré-existentes.
5.1. Ora, é sabido que, tocantemente ao preceituado na alínea h) do nº 1 do artº 1093º do Código Civil, eram trilhados diferentes entendimentos quanto ao modo de contagem do período de encerramento, por um ano, do locado.
Assim, havia quem defendesse que esse período se havia de contar ininterruptamente, não havendo, assim, causa de despejo se, no decurso de um ano, se verificasse a abertura do locado onde se encontrava instalado o estabelecimento comercial ou industrial ou era exercida a profissão liberal, havendo, por outro lado, quem sustentasse que a abertura, por muitos escassos lapsos temporais, durante aquele período, não relevava para efeitos de se obstar
àquele despejo, pois que se haveria de considerar que essa circunstância não tinha virtualidade para impedir o aludido decurso (cfr., verbi gratia, os acórdãos, da Relação de Évora de 9 de Dezembro de 1976 sumariado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 270º, 274, da mesma Relação, de 12 de Junho de 1986, idem, nº 360º, 673, da Relação do Porto de 11 de Dezembro de 1979, idem, nº 293,
435, e da Relação de Coimbra de 10 de Abril de 1984, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano IX, 55).
Verifica-se, deste modo, que, quanto ao problema concernente ao modo de contagem do período de encerramento, por um ano, do locado destinado a comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, havia divergência de interpretação.
Tendo em conta o estipulado na já referida alínea a) do artº 2º da Lei nº 42/90, teve já este Tribunal (cfr. Acórdão nº 311/93, publicado na 2ª Série do Diário da República de 22 de Setembro de 1993 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º volume, 207 a 243) ocasião de discretear assim:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................
1.2. Mas, então, para decidir se as normas questionadas definem ou não o sentido e o alcance da autorização legislativa, há que saber o que deva entender-se por regime geral do arrendamento urbano.
Com efeito, só quanto a esse aspecto da disciplina jurídica de tal tipo de arrendamento era exigível que a Assembleia da República definisse a amplitude com que o Governo ficava autorizado a legislar (alcance), e, bem assim, as linhas de orientação por que este haveria de guiar-se na produção de normas estruturantes desse regime geral (sentido).
Pois bem:
Este Tribunal já teve ocasião de se debruçar sobre esta matéria. Fê-lo no acórdão nº 77/88, publicado no Diário da República, I série, de 28 de Abril de 1988, afirmando a propósito:
[...] a reserva em causa não se limita à definição dos ‘princípios’,
‘directivas’ ou standards fundamentais em matéria de arrendamento (é dizer, das
‘bases’ respectivas), mas desce ao nível das próprias ‘normas’ integradoras do regime desse contrato e modeladoras do seu perfil. Circunscrito o âmbito da reserva pela noção de ‘arrendamento rural e urbano’, nela se incluirão, pois, as regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade, definidoras (imperativa ou supletivamente) das relações (direitos e deveres) dos contraentes durante a sua vigência e definidoras, bem assim, das condições e causas da sua extinção - pois tudo isso é ‘regime jurídico’ dessa figura negocial. Por outras palavras, e em suma: cabe reservadamente ao legislador parlamentar definir os pressupostos, as condições e os limites do exercício da autonomia privada no âmbito contratual em causa. (Cf. também o acórdão nº
358/92, Diário da República, I-A série, de 26 de Janeiro de 1993).
E, mais adiante - depois de se sublinhar que esta reserva ‘não é esgotante e absoluta’, antes permitindo que ‘nesse domínio venham ainda a intervir outros órgãos com competência legislativa’ - disse-se, para o que aqui importa, mais o seguinte:
[...] é de entender a reserva como respeitando unicamente aos aspectos significativos, ou seja, verdadeiramente substantivos, do regime legal do contrato, mas permitindo a intervenção do Governo na regulamentação do que seja puramente adjectivo ou processual (em suma, ‘regulamentar’).
Como quer que seja, à Assembleia da República estará sempre reservada a definição das regras materiais aplicáveis à generalidade dos contratos de arrendamento rural e urbano, e tenham estes últimos como finalidade a habitação ou quaisquer outros fins. [Sobre o tema, cf. ainda os acórdãos nºs 154/88,
257/88, 243/89, 133/90, 141/90 e 246/90 (Diário da República, II série, de 19 de Setembro de 1988, 11 de Fevereiro de 1989, 30 de Maio de 1989, 4 de Setembro de
1990, 7 de Setembro de 1990, os cinco primeiros, e na I série, de 3 de Agosto de
1990, o último).
..........................................................................................................................................................................................................................................................................................
3. A alínea a) do artigo 2º:
3. 1. Dispõe-se aí: As alterações a introduzir ao abrigo da presente autorização legislativa devem obedecer às directrizes seguintes: a) Codificação dos diplomas existentes no domínio do arrendamento urbano, por forma a colmatar lacunas, remover contradições e solucionar dúvidas de entendimento ou de aplicação resultantes da sua multiplicidade.
3.2. Perguntam os requerentes:
Mas que lacunas? Em que matérias? Que contradições? Em que matérias? Que dúvidas de entendimento ou de aplicação? Em que matérias? E até onde e em que sentido foi o legislador autorizado a colmatar eventuais lacunas, ou a remover contradições, ou a solucionar as dúvidas de entendimento ou de aplicação?
Afirmam, depois, que a alínea a) atrás transcrita não dá resposta a estas interrogações.
E concluem:
O que dizer que estabelece uma autorização genérica, uma autorização legislativa que não define o seu sentido e a sua extensão.
3.3. No entender dos requerentes, pois, a autorização legislativa não esclarece quais sejam as lacunas que o Governo pode colmatar, nem quais as contradições que pode remover, nem quais as dúvidas que pode solucionar; da mesma forma que não indica em que sentido há-de colmatar as lacunas, remover as contradições e solucionar as dúvidas.
Sem razão, porém.
O Governo ficou autorizado a proceder à ‘codificação dos diplomas existentes no domínio do arrendamento urbano’ - ou seja: ficou autorizado a reunir num único diploma legal as soluções que se achavam dispersas por vários diplomas. E com um objectivo primordial: o objectivo de preencher as lacunas existentes e de redigir os textos legais, de modo a dissipar as dúvidas, que alguns deles suscitavam, e a eliminar as contradições que existiam nas ‘diversas soluções esparsas ao sabor de contingências ocorridas em décadas de evolução tumultuosa’ (cf. o preâmbulo do Decreto-Lei nº 321--B/90, de 15 de Outubro, editado no uso da mencionada autorização legislativa).
As lacunas, as contradições, e as dúvidas são assim, as que a aplicação dos textos legais haviam posto a descoberto. Tais lacunas, contradições e dúvidas deviam ser corrigidas ‘em consonância com os ditames da ciência do direito’ (cf. preâmbulo citado) e aproveitando os ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, naturalmente.
Escreveu-se, a propósito, no já citado preâmbulo do Decreto-Lei nº
321-B/90:
Nessa tarefa codificadora teve-se sempre a preocupação de valorar os textos anteriores perante a jurisprudência dos tribunais de Portugal: o verdadeiro direito surge apenas na decisão concreta, em cujo decurso, tantas vezes, se manifestam as deficiências de diplomas julgados perfeitos. Nesta linha e na medida do possível foram mantidos os textos anteriores quando, sobre eles, houvesse já uma concretização jurisprudencial que importasse conservar.
E nem poderia ser de outro modo, pois, no tocante à interpretação das leis, esse é o ensinamento da doutrina mais autorizada. Assim, escreve MANUEL DE ANDRADE (Sentido e Valor da Jurisprudência, Coimbra, 1973, p. 27):
[...] na dúvida, parte-se do princípio de que a lei se quis ater ao direito previgente; pois um legislador razoável, quando pretende introduzir inovações, costuma deixá-las bem vincadas na própria letra dos textos - nem se decide a inovar senão em dados pontos, sob pressão de exigências bastante razoáveis.
A norma em causa, contém, pois, o bastante para se saber a amplitude da reforma legislativa a empreender e o critério que a esta devia presidir.
Por isso, não viola ela o artigo 168º, nº 2, da Constituição.
3.4. O sentido fundamental da autorização legislativa - sentido que preside a toda ela, com ele se cumulando os demais critérios de orientação, que constam das restantes alíneas do artigo 2º sub iudicio - é, pois, este: o Governo, nas alterações legislativas a introduzir, há-de ater-se às soluções legais previgentes, codificando-as, clarificando-as e completando-as, de acordo com os ensinamentos da doutrina e da jurisprudência.
É a esta luz que a autorização legislativa, toda ela, há-de, por isso, ser avaliada.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................'
Também Menezes Cordeiro e Castro Fraga (in Novo Regime do Arrendamento Urbano, 111), Aragão Seia (Arrendamento Urbano, Anotado e Comentado, 2ª edição,302) e Pais de Sousa [Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.), 206] entendem que a eliminação do advérbio «consecutivamente» na alínea h) do nº 1 do Regime do Arrendamento Urbano teve por escopo eliminar as dúvidas que se colocavam quanto à contagem do prazo de um ano durante o qual se deveria entender que o locado destinado ao exercício de comércio ou indústria ou de profissão liberal se encontrava encerrado.
5.2. Pode, desta sorte, concluir-se que o Governo, aquando da edição do Decreto-Lei nº 321-B/90 aprovador do Regime do Arrendamento Urbano, ao proceder, na alínea h) do nº 1 do artº 64º desse Regime, àquela eliminação, não desbordou a autorização legislativa que balizava a sua actividade legiferante e que constava da Lei nº 42/90.
6. Alega a recorrente que com a redacção conferida à mencionada alínea h) não foram preservadas as regras socialmente úteis.
Sobre esta preservação debruçou-se o Tribunal Constitucional por mais de uma vez (cfr., desde logo, o já citado Acórdão nº 311/93 e, a título de exemplo, o Acórdão nº 658/98, publicado na 2ª Série do Diário da República de 22 de Março de 1999).
Pode, na verdade, ler-se neste último aresto:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................ A alínea c) do artigo 2º da Lei n.º 42/90, prevê, como directriz que o legislador do RAU deveria seguir, a ‘preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário’. O sentido desta directriz foi precisado pelo Tribunal Constitucional logo no Acórdão n.º 311/93 (publicado no Diário da República, n.º 170, de 22 de Julho de
1993) que julgou não inconstitucional a referida lei de autorização legislativa.
É este sentido o:
‘de que o Governo ficou credenciado para eliminar as regras que, visando embora a defesa do arrendatário, no entanto se revelavam socialmente imprestáveis, designadamente porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material. Não se pode, pois, divisar nessa alínea c) uma prescrição de manutenção de todas e cada uma das concretas regras do regime anterior do arrendamento urbano que fossem favoráveis ao arrendatário. Tal entendimento, restritivo e diverso do adoptado anteriormente pelo Tribunal não consideraria, desde logo, a limitação da alínea c) apenas às regras ‘socialmente úteis’, nem a natureza da fórmula empregue pelo legislador parlamentar, de molde a permitir ao Governo um juízo sobre a utilidade social das regras, ficando obrigado a preservar aquelas em relação às quais esse juízo fosse positivo. Aquela posição restritiva poderia, aliás, fazer o legislador da Lei n.º 42/90 incorrer numa contradição, entre as alíneas b) e c) do artigo 2º desse diploma, uma vez que qualquer facilitação do funcionamento da cessação do contrato - ainda que através da mera simplificação das suas regras processuais – deveria ser considerada violadora da referido imperativo legal de manutenção de todas e cada uma das concretas regras do regime do arrendamento favoráveis ao inquilino. Tem, pois, de entender-se que o legislador ficou habilitado pela alínea c) do artigo 2º da Lei n.º 42/90 a formular um juízo sobre a ‘utilidade social’ das regras do regime do arrendamento urbano, podendo eliminar ou reformular aquelas que se revelavam ‘socialmente imprestáveis, designadamente porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material’ (formulação adoptada no citado Acórdão n.º 311/93).
........................................................................................................................................................................................................................................................................................'
Neste ponto, e continuando a aderir ao sentido conferido à locução
«preservação das regras socialmente úteis» por este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, poderá, sem rebuços, dizer-se que, indubitavelmente, não é de entender como sendo socialmente útil a manutenção de um local arrendado onde, na prática, se não desenvolve qualquer actividade comercial e industrial ou se exerce qualquer profissão liberal, retirando-o do mercado de habitação, designadamente não permitindo que esse local seja posteriormente afectado a tais actividade ou exercício por banda de quem disso carece.
Termos em que se não lobriga padecer de inconstitucionalidade orgânica a norma ínsita na alínea h) do nº 1 do Regime do Arrendamento Urbano aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, condenando-se a recorrente nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 28 de Março de 2001 Bravo Serra Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma (sem embargo de uma divergência de fundo quanto ao Acórdão nº 311/93, votei este Acórdão com fundamento no alcance do conceito de 'regras socialmente úteis') José Manuel Cardoso da Costa