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Processo n.º 645/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
1. A. foi condenado no Tribunal da Comarca de Coimbra (Vara Mista) na pena única de 4 anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução por igual tempo, pela prática de um crime de associação criminosa previsto e punido pelo artigo 89.º, n.ºs 1 e 3, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e outro de falsificação de documento, na forma consumada e continuada, previsto e punido pelos artigos 255.º, alínea a) e 256.º, n.ºs 1, alínea a) e 3 do Código Penal (CP).
Esta decisão foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17 de Março de 2010 que, além do mais, julgou improcedentes as questões de inconstitucionalidade colocadas pelo arguido.
Deste acórdão interpôs o arguido recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), com vista à apreciação da constitucionalidade da norma retirada da interpretação conjugada dos artigos 34.º, n.ºs 1 a 3 do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras (RJIFA – Decreto-Lei n.º 376-A/89, de 25 de Outubro) com o artigo 89.º, n.ºs 1 a 3 do RGIT (Lei 15/2001, de 5 de Junho), com referência ao disposto no artigo 1.º, n.º 1, do CP, na interpretação concreta daqueles preceitos efectuada pelas instâncias segundo o qual poderiam ser punida por aquele último preceito (artigo 89.º, n.ºs 1 e 3 do RGIT) condutas (introdução no consumo de álcool e bebidas alcoólicas sem o prévio pagamento do IEC devido) que não se encontravam previstas nem qualificadas naquele primeiro diploma (RJIFA), apenas tendo entrado no mundo jurídico-penal através do Decreto-Lei n.º 300/99, de 5 de Agosto, cuja entrada em vigor se operou em 1 de Fevereiro de 2000.
2. Notificado para o efeito, o recorrente produziu alegações que rematou com as seguintes conclusões:
“(...)
1. À data dos factos, as infracções fiscais aduaneiras encontravam-se previstas no RJIFA, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 376-A/89 de 25 de Outubro e só as que em tal diploma se previam – e nem todas, pois sempre estariam excluídas as que revestissem mera natureza contra-ordenacional – poderiam constituir elementos constitutivos do crime de associação criminosa previsto no art.º 34 daquele Diploma Legal;
2. A conduta, no quadro da associação criminosa, imputada ao recorrente não se encontrava abrangida por aquele Diploma Legal, já que só veio a ser tipificada e criminalmente sancionada pelo DL 300/99 de 5 de Agosto, com data de entrada em vigor prevista para 1.02.00, sendo que o crime de associação criminosa susceptível de abranger a nova realidade incriminatória só foi criado com a entrada em vigor dos art.º 89.º, n.ºs 1 e 3 da Lei 15/2001 de 5 de Junho, preceitos estes que as instâncias consideraram aplicáveis ao caso vertente para fundamentar a condenação do ora recorrente;
3. Por que o princípio da legalidade impede a aplicação retroactiva da lei penal substantiva (art.º 1.º, n.º 1, do Código Penal), em consonância com o travejamento constitucional (art.º 29, n.º 1, da Constituição da República), segue-se que a norma retirada da interpretação conjugada dos art.ºs 34.º, n.ºs 1 e 3 do RJIFA (DL 376-A/89 de 25 de Outubro) com o disposto no art.º 89, n.ºs 1 e 3 do RGIT (Lei 15/2001 de 5 de Junho), se interpretada no sentido de, por força do disposto no art.º 2, n.º 4, do Código Penal, poder ser punida por estes últimos preceitos (art.º 89.º, n.ºs 1 e 3 do RGIT) associação criminosa para a prática – no período de 1995 a 1998 – de actos de introdução no consumo de álcool e bebidas referidas alcoólicas sem o prévio pagamento do IEC devido, só criminalmente tipificados a partir da entrada em vigor do DL 300/99 de 5 de Agosto e, consequentemente, só a partir de então poderem integrar o crime de associação criminosa previsto naquele art.º 89, n.ºs 1 e 3 da Lei 15/2001 de 5 de Junho, ofende materialmente a Constituição e os princípios constitucionais da legalidade previstos no art.º 29, n.º 1, da CRP e a garantia da irretroactividade na aplicação da lei substantiva criminal.
Por que tal norma foi assim aplicada pelas instâncias, requer-se, em acto de fiscalização concreta deste Tribunal, a declaração da inconstitucionalidade material de tal norma, nos termos em que foi interpretada e aplicada, por violação dos preceitos e dos princípios constitucionais indicados.
(…).”
3. O Ministério Público contra-alegou, tendo concluído nos seguintes termos:
“1. As instâncias, maxime o acórdão recorrido, entenderam – entendimento insindicável por este Tribunal Constitucional – que a associação criminosa, em causa – crime pelo qual o arguido foi condenado – tinha por objecto a prática de crimes aduaneiros previstos e punidos no RJIFA e posteriormente no RGIT.
2. Assim, tratando-se de condutas criminalmente puníveis desde o início e não apenas a partir da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 300/99, de 5 de Agosto, a dimensão normativa que o recorrente pretende ver apreciada é radicalmente diferente da efectivamente aplicada.
3. Faltando, pois, um requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, não deverá tomar-se conhecimento do mesmo.
4. Estando o crime de associação criminosa que tem por objecto a prática de crimes aduaneiros, previsto, na altura dos factos, no artigo 34.º do RJIFA e agora no artigo 89.º do RGIT, foi este último o regime aplicado por ser o que se mostrava mais favorável ao arguido.
5. Não se vislumbra, assim, qualquer violação dos princípios da legalidade e da irretroactividade da lei penal, consagrados no artigo 29.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição.”
4. Suscitando as alegações do Ministério Público uma questão que obsta ao conhecimento do objecto do recurso, foi ouvido sobre ela o recorrente, que nada disse.
É esta questão, que consiste em não ter sido aplicada pela decisão recorrida a norma que o recorrente refere ou com o sentido que refere, que cumpre apreciar em primeiro lugar.
5. A questão que o recorrente traz ao Tribunal Constitucional tem como elemento nuclear que se permita punir como associação criminosa fundar ou participar numa organização destinada à prática de factos que, à data, não eram configurados como crime, só o vindo a ser posteriormente. Como se diz no requerimento de interposição do recurso - lugar onde, aliás, fica definido o objecto do recurso de constitucionalidade - e é repetido nas alegações, o que se quer ver sindicado na perspectiva da constitucionalidade é a norma retirada da interpretação conjugada dos artigos 34.º, n.ºs 1 a 3 do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras (RJIFA – Decreto-Lei n.º 376-A/89, de 25 de Outubro) com o artigo 89.º, n.ºs 1 a 3 do RGIT (Lei 15/2001, de 5 de Junho), com referência ao disposto no artigo 1.º, n.º 1, do Código Penal, na interpretação segundo a qual poderiam ser punida por aquele último preceito (artigo 89.º, n.ºs 1 e 3 do RGIT) condutas (introdução no consumo de álcool e bebidas alcoólicas sem o prévio pagamento do IEC devido) que não se encontravam previstas nem qualificadas como crime naquele primeiro diploma (RJIFA), apenas tendo entrado no mundo jurídico-penal através do Decreto-Lei n.º 300/99, de 5 de Agosto, que entrou em vigor em 1 de Fevereiro de 2000.
Sucede que não foi com esse sentido que a norma foi aplicada, sendo inteiramente procedente a argumentação do Ministério Público.
É certo que, dos diversos diplomas que regulam a matéria relativa ao regime fiscal relativo ao imposto sobre o álcool e bebidas alcoólicas – Decretos-Leis n.ºs 117/92, de 12 de Junho, 52/93, de 26 de Fevereiro, 103/93, de 5 de Abril e 300/99, de 5 de Agosto, e Decreto-Lei n.º 300/99 – apenas neste último (artigo 37.º) estão previstos crimes fiscais, uma vez que, quer no Decreto-Lei n.º 117/92 (artigo 24.º), quer no Decreto-Lei n.º 103/93 (artigo 31.º), as únicas infracções previstas são contra-ordenações. E é também certo que pelo menos parte dos factos delituosos – entre 1995 e 1999 – ocorreu antes da entrada em vigor daquele Decreto-Lei n.º 300/99. Deste modo, o afirmado pelo arguido teria pertinência – embora tivesse então de discutir-se se essa violação do princípio da legalidade penal seria questão de que o Tribunal pode conhecer em fiscalização concreta – se as condutas em ordem a cuja prática se considerou constituída a organização fossem aquelas que o recorrente pressupõem.
Porém, isso não corresponde ao decidido nas instâncias, maxime, no acórdão, ora recorrido. Efectivamente, o arguido foi pronunciado por um crime de associação criminosa previsto à data da prática dos factos no artigo 34.º, n.ºs 1 e 3 do RJIFA (e hoje no artigo 89.º, n.ºs 1 e 3 do RGIT), por referência ao crime de contrabando de circulação qualificado previsto e punido pelos artigos 7.º, 8.º, 22.º, n.º 1 e 23.º, alíneas c) e d) do RJIFA, hoje previsto e punido nos artigos 7.º, 8.º, 12.º, 93.º, n.º 1 e 97.º, alínea b) do RGIT. E foi por isso, por esse projecto criminoso organizado, que foi punido pelo crime de associação criminosa.
Isso torna-se particularmente evidente quando o acórdão recorrido, enfrentado uma das linhas argumentativas do recorrente explicita que os crimes objecto da associação criminosa eram os crimes de contrabando de circulação qualificado e o crime de quebra de marcas e selos, relativamente aos quais foi julgado prescrito o procedimento criminal, mas que isso não obsta à verificação do elemento típico da associação.
Portanto, as condutas projectadas (crimes da associação) em função das quais se considerou constituída a associação criminosa (crime de associação) sempre constituíram ilícito penal: o crime de contrabando de circulação qualificado previsto, quer no RJIFA, quer no RGIT. A referência aos demais diplomas legais apenas tem sentido e se mostrava relevante, precisamente, quanto àquele crime de contrabando.
Foi, também em relação a este crime (além de outros) que o procedimento criminal foi declarado extinto por prescrição, aplicando-se, na altura, o regime do RJIFA por ser o que se mostrava mais favorável aos arguidos (fls. 8074). Aliás, é o próprio arguido que, na motivação do recurso para a Relação, reconhece tal incriminação ao dizer que “por outro lado, tendo sido proferido despacho transitado em julgado a considerar prescrito o procedimento criminal pelo crime (contrabando de circulação qualificado) objecto da invocada associação criminosa, tem que se ter por impossível construir a figura de um crime de associação sem existência do objecto”.
Assim, ao contrário do que o recorrente afirma quando enuncia a questão da constitucionalidade que pretende ver apreciada por este Tribunal, a conduta que esteve na base da sua pronúncia e condenação pelo crime de associação criminosa, sempre constituiu crime não “tendo entrado no mundo jurídico-penal através do Decreto-Lei n.º 300/99, de 5 de Agosto”. Tendo o Tribunal Constitucional de aceitar o entendimento acolhido na decisão recorrida – uma vez que não cabe na sua competência questionar se os factos constituem ou não crime e, no caso afirmativo, qual – tem de convir-se, como excepciona o Ministério Público, que a dimensão normativa efectivamente aplicada, não é aquela que foi proposta pelo recorrente ao julgamento de fiscalização concreta de constitucionalidade.
Assim, faltando um requisito de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, não deve tomar-se conhecimento do recurso.
Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso e condenar o recorrente nas custas, em doze unidades de taxa de justiça.
Lisboa, 24 de Março de 2011.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.