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Processo n.º 480/2010
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O “Banco A., SA. Sociedade Aberta”, intentou execução para pagamento de quanto certa contra B., sendo título executivo uma livrança. O executado deduziu oposição à execução, pedindo que a mesma fosse extinta, uma vez que, tendo sido a livrança objecto de um acordo de preenchimento, com um certo limite, o exequente violara tal acordo, preenchendo-o em montante superior ao referido limite.
Em 1ª instância foi a oposição à execução julgada parcialmente procedente, determinando-se a extinção da execução relativamente ao quantum que excedera o limite acordado. O juízo foi confirmado pelo Tribunal da Relação
Interpôs então o executado, B., recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, alegando fundamentalmente que a violação do pacto de preenchimento da livrança, por parte do credor, a tornaria inválida, pelo que a mesma não poderia valer como título executivo. A fundamentar a tese foram invocadas, quer a violação do artigo 10.º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças, quer a violação dos princípios atinentes ao direito cambiário e à hierarquia das normas constante da Constituição da República Portuguesa, relativamente a Convenções Internacionais por Portugal ratificadas.
Por acórdão datado de 20 de Maio de 2010, decidiu o Supremo negar a revista, por ter entendido, essencialmente, não ter ocorrido no caso qualquer violação do disposto no artigo 10.º da Lei Uniforme.
Desta decisão interpôs B. recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nas alíneas b) e i) do nº 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (doravante, LTC), pretendendo “ver apreciada e definida a inconstitucionalidade da decisão do Tribunal a quo ou recorrido que (…) decidiu negar a revista interposta”.
Dizia-se ainda, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, que, nas alegações do recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça se invocara expressamente que as decisões proferidas pelas instâncias ofendiam e violavam, de forma evidente, quer a Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, quer a Constituição da República Portuguesa e a hierarquia de normas nela prevista e estatuída, nomeadamente, as normas constantes dos seus artigos 8.º, 112.º e 204.º.
2. A 7 de Julho de 2010 decidiu-se sumariamente não conhecer do objecto do recurso, por se entender que, quanto à sua interposição ao abrigo da alínea i) do nº 1 do artigo 70.º da LTC, não ocorrera, no caso, qualquer desaplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua contraditoriedade com uma convenção internacional [nem sequer aplicação de norma em desconformidade com o anteriormente decidido, sobre a questão, pelo Tribunal Constitucional], e, quanto à interposição do recurso ao abrigo da alínea b) do nº 1 do mesmo artigo 70.º, não ter sido suscitada, durante o processo, uma qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Esclareceu ainda a Decisão Sumária que a estes dois fundamentos para a não admissão de recurso sempre acresceria um outro, a saber, o de que em circunstância alguma poderia o Tribunal – fosse ao abrigo do disposto na alínea b) ou na alínea i) do nº 1 do artigo 70.º da LTC – conhecer da constitucionalidade de decisões judiciais.
3. É desta Decisão Sumária que reclama para a conferência B., ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78.º-A da LTC.
Fundamentalmente, alega, na sua reclamação: que, quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da LTC, suscitou expressamente, no decurso do processo, uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, conforme o exigido pelo nº 2 do artigo 72.º da mesma LTC, pelo que não procede o argumento segundo o qual se pretenderia aqui a sindicância – estranha ao âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional – de uma decisão judicial e não de uma norma; e que, quanto ao recurso interposto ao abrigo da alínea i) do nº 1 do mesmo artigo 70.º, determinaria um “verdadeiro absurdo jurídico” entender-se, com o tinha feito a Decisão Sumária, não poder o Tribunal conhecer, por esta via processual, de decisões de aplicação de normas (alegadamente contrárias a convenções internacionais) e, ao mesmo tempo, entender-se que não cabia, pela via processual aberta pela alínea b) do referido preceito, o controlo das chamadas “inconstitucionalidades indirectas” [ou de violação, por parte de leis ordinárias, do disposto no artigo 8.º da CRP).
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Como acabou de ver-se, na reclamação apresentada contesta o reclamante a decisão sumária, quer na parte em que nela se não admitiu o recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC quer na parte em que nela se não admitiu o recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea i) desse mesmo preceito.
5. No que respeita ao recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, entendeu a decisão sumária, após excluir a possibilidade de, ao abrigo do disposto nessa alínea, o Tribunal Constitucional fiscalizar uma eventual “inconstitucionalidade indirecta” (por violação do artigo 8.º da Constituição) de uma norma de direito ordinário, com fundamento na sua contrariedade ao direito convencional, que não podia o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do recurso por falta de verificação do pressuposto processual de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, de qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Na sua reclamação, o reclamante discorda desse fundamento, entendendo que invocou expressamente (i) quais as normas da Constituição da República violadas; (ii) quais os princípios constitucionais violados e (iii) a violação do regime jurídico internacional das livranças constitucionalmente aceite, sugerindo que se atente às alegações e conclusões do recurso de revista interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, que transcreve.
Simplesmente, como se afirma na decisão sumária reclamada – onde se reproduz integralmente as conclusões das alegações do recurso de revista interposto para o Supremo Tribunal de Justiça –, em lugar algum desse articulado é suscitada, em termos processualmente adequados, qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Com efeito, não é pelo facto de se considerar a parte final da conclusão XXIV – onde se afirma – “[…] que expressamente o Recorrente aqui invoca” – que de tal ponto do articulado se passa a retirar a suscitação de uma questão de constitucionalidade. É justamente por essa parte final se revelar irrelevante que, na passagem indicada pelo reclamante, se optou por suprimi-la.
Também a referência que na decisão sumária é feita à conclusão XXVII teve como objectivo explicitar que, mesmo considerando as referências aí pontualmente feitas à Constituição, ainda assim se não poderia considerar satisfeito o pressuposto processual de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, de qualquer questão de constitucionalidade normativa, em termos de, como dispõe o n.º 2 do artigo 72.º da LTC, o tribunal que proferiu a decisão recorrida estar obrigado a dela conhecer. Nessa conclusão XXVII imputa-se a violação da Constituição à aplicação do regime geral das obrigações nas relações cambiárias, sendo que tal modo de proceder não satisfaz os requisitos exigidos pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, indicada na decisão sumária reclamada, relativamente ao ónus de suscitação prévia de uma questão de constitucionalidade normativa. A circunstância de o reclamante insistir, na reclamação, que, ao contrário do que diz a decisão sumária reclamada, terá aí suscitado uma questão de constitucionalidade normativa, revela apenas que continuam a ser desconhecidas as exigências concretas do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade. Como se afirma no
Ac. n.º 367/94, já citado na decisão sumária reclamada e disponível em www.tribunalconstitucional.pt, “[a]o questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição”. Ora, em lugar algum das conclusões das alegações do recurso de revista interposto para o Supremo Tribunal de Justiça é expressamente enunciada, de forma precisa e rigorosa, qual a específica dimensão normativa do regime geral das obrigações nas relações cambiárias cuja conformidade com a Constituição o recorrente, ora reclamante, pretendia que fosse apreciada.
Assim, é de confirmar o fundamento oferecido na decisão sumária reclamada para o não conhecimento do recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
6. No que respeita ao recurso interposto ao abrigo do disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, decidiu a decisão sumária rejeitá-lo com fundamento em a pretensão do recorrente se não inserir no âmbito do recurso previsto nessa alínea, afirmando ser inadmissível recurso de fiscalização concreta interposto de decisão que aplique norma de direito interno com fundamento na sua desconformidade com convenção internacional.
Entende o reclamante que tal interpretação do regime legal, sobretudo quando conjugada com a afirmação, feita na decisão sumária reclamada, de que ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o Tribunal Constitucional não pode fiscalizar uma eventual inconstitucionalidade indirecta (por violação do artigo 8.º da Constituição) de uma norma de direito ordinário, com fundamento na sua contrariedade ao direito convencional, levaria à necessidade de ponderar qual o sentido jurídico da lei, porquanto não ser apreciado o recurso por remissão a qualquer dessas alíneas determinaria um perfeito absurdo jurídico.
Não tem razão o reclamante.
A decisão sumária reclamada justificou, com remissão para jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional, por que razão recursos de decisões que apliquem norma de direito interno com fundamento na sua desconformidade com convenção internacional não se inserem no âmbito de aplicação da alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tal como delimitado no n.º 2 do artigo 71.º desse diploma. Daí não decorre de todo em todo que tal preceito fique esvaziado de conteúdo, pois ao abrigo da alínea i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC serão sempre, caso se verifiquem os demais pressupostos de admissibilidade, admitidos recursos de decisões que desapliquem norma constante de acto legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional (ou que, equacionado a questão dessa contrariedade, tenham feito aplicação de norma em sentido diverso ao anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional).
Com tal interpretação do regime legal não colide a afirmação, feita na decisão sumária reclamada, de que ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o Tribunal Constitucional não pode fiscalizar uma eventual inconstitucionalidade indirecta (por violação do artigo 8.º da Constituição) de uma norma de direito ordinário, com fundamento na sua contrariedade ao direito convencional. Antes pelo contrário. Se o legislador entendeu excluir expressamente do âmbito do recurso previsto na alínea i) n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tal como delimitado no n.º 2 do artigo 71.º da LTC, a apreciação da conformidade de norma de direito interno com uma convenção internacional, vir admitir que o Tribunal Constitucional pudesse proceder a essa apreciação ao abrigo de uma outra alínea – seja ela a da alínea b) ou qualquer outra – seria justamente contrariar o espírito do sistema, tal como configurado pelo legislador.
7. Não procedendo nenhum dos argumentos apresentados pelo reclamante para pôr em causa os fundamentos oferecidos pela decisão sumária reclamada para o não conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade por si interposto, é de confirmá-la.
Ao contrário do que afirma o reclamante, a interpretação que aí é feita – e aqui confirmada – da articulação entre as alíneas b) e i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC não é inconstitucional.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 24 de Março de 2011.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.